Entrevista. Homem em Catarse: “Se não há oferta, não há pessoas, não há vida”
Afonso Dorido lançou há dois anos, enquanto Homem em Catarse, ‘Viagem Interior’, um álbum que resultou da sua viagem pelo interior de Portugal e coloca a tónica no centralismo e desigualdade demográfica existentes no nosso país. Pois bem, em 2018, enquanto membro dos Indignu, também viu ganhar vida ‘Umbra’, dedicado aos incêndios que assolaram o território nacional, principalmente Pedrógão Grande, em 2017. De alguma forma, mesmo sem ser propositado, acaba por haver uma ligação entre os dois trabalhos até porque, segundo o próprio, o ‘Viagem Interior’ acaba por estar indirectamente ligado porque aborda o interior, mais massacrado por essas tragédias. Eis que, em Abril deste ano, lançou ‘Ao vivo na Porta 253’, um álbum, tal como o título indica, ao vivo, que funciona como uma espécie de retrospectiva pelo trabalho de Homem em Catarse. Num país ainda desigual e, demograficamente, a caminhar a dois ritmos distintos, aproveitamos a deixa para conversarmos, por telefone, sobre a falta de investimento cultural longe dos grandes pólos nacionais; as barreiras associadas à deslocação devido às portagens; o que é tentar lutar por algo e remar contra a maré quando, muitas das vezes, o interesse autárquico é completamente nulo ou incipiente e, claro, sobre os incêndios de 2017 porque, infelizmente, o resto do país só é lembrado quando uma calamidade acontece. No início de 2020 podemos aguardar uma surpresa, o novo álbum de Homem em Catarse, que será instrumental mas baseado num poema. Até porque, tal como Afonso relembrou,“a poesia é embrulhada em dedilhados atmosféricos.” Sem mais delongas, passemos, então, à entrevista.
Com o disco ‘Ao vivo na Porta 253’, houve a necessidade de se mostrar como era Homem em Catarse ao vivo? Toda a ambiência e o lado intimista dos concertos?
O objectivo deste trabalho foi, precisamente, passar para um registo discográfico a ambiência e a emoção que, normalmente, os concertos têm. Também acaba por ser uma retrospectiva, um olhar para trás e de colocar a tónica onde penso que o projecto acaba ,sempre, por ser mais sólido, que é ao vivo, e fazer uma retrospectiva com o ‘Viagem interior’, ‘Guarda rios’ e o primeiro EP. O ‘(Não és) açor’, por exemplo, faz parte do primeiro EP. Sim, foi registar o mais possível o concerto ao vivo de Homem em Catarse porque não houve trabalho de estúdio, foi tudo gravado ali, naquela tarde de Outubro de 2018. É o trabalho mais genuíno de todos, directamente gravado para o vinil o que se passou naquela tarde. O objectivo foi sobretudo esse e, também, fazer uma espécie de compilação de uma forma alternativa, diferente e ao vivo dos trabalhos que já existiam enquanto Homem em Catarse.
Até porque ao vivo acaba-se por se conhecer diferentes facetas das músicas e do artista. Uma música ao vivo nunca é igual duas vezes.
Se se quer conhecer Homem em Catarse tem de ser ao vivo, por isso é que este disco já fazia sentido há algum tempo. Em estúdio, é sempre uma coisa que funciona como um processo de maturação. Ao vivo conta o imediato, o ‘é agora ou não é’, por essa razão acaba por ser muito mais orgânico. O que vou sentindo das pessoas é que, pelo que dizem, até pelos últimos concertos, é que ao vivo é outra coisa. É muito melhor, sente-se ou percebe-se mais, portanto, para se conhecer Homem em Catarse tem de ser ao vivo. Este disco tenta passar essa realidade.
No disco ao vivo também contas com temas, como disseste, do ‘Viagem Interior’. Tematicamente faz a ponta com a questão da centralidade e da desertificação no nosso país. A nível cultural, nas tuas viagens, encontraste muitas desigualdades? Qual foi a realidade com que acabaste por te deparar?
Há locais que vão funcionando um pouco melhor a nível cultural. Estou a lembrar-me, por acaso, de um sítio onde ainda não toquei, mas que me parece que funciona culturalmente bem, a Guarda. Mesmo Évora, também, Mas, no geral, o que noto é que não há pessoas e as que se possam interessar apanham com esta resposta, “só tu ou mais três se interessam por este tipo de arte”. Ou por esta ou por aquela razão, portanto, se quiseres ver algo diferente tens de ir a outra cidade. Salvo raras excepções, não há muita oferta cultural e a que há é a oferta de emigrante: aquela oferta de Verão, de Agosto, em que se dá aquilo que as pessoas já conhecem. Não há aposta na contemporaneidade. A falta de pessoas é uma desculpa para que não se apostem em coisas novas. Basicamente, o que eu sinto é que se quiseres ver algo tens de ir a Lisboa ou ao Porto, quanto muito a cidades como Braga ou Coimbra. Há falta de pessoas e falta de mostra de novas coisas. Foi o que eu senti assim por alto.
Mas interessante que tu és de Barcelos e estás perto de outros pólos como Braga ou Guimarães.
Aliás, eu vivo em Braga. Sou de Barcelos mas vivo em Braga.
Lá está! São que pólos que me parecem estar a ganhar, actualmente, um grande dinamismo cultural e, até, com grande capacidade e dinamismo jovem. Nesse sentido, notaste um choque quando saíste do teu centro?
Sim, é completamente diferente de Mirandela, Valpaços ou Penamacor em que não existe nada. Existem os incêndios, é, então, que as pessoas se lembram de que existe algo mais, mas depois de acontecer uma coisa dessas. Lembro-me, no entanto, do BB King tocar em Sabrosa, em Trás-os-Montes. Foi uma notícia incrível! Aliás, Sabrosa tem o Espaço Miguel Torga, sítio no qual já tive o prazer de tocar e que est+a a fazer um óptimo trabalho mas, em geral, tirando os pólos ou as cidades de média dimensão como Braga em que ainda acontece alguma coisa, é preciso ver que para lá do Marão, da Serra da Estrela ou profundo Alentejo é difícil encontrares seja o que for que acrescente algo novo. Existem poucas pessoas e há a desculpa de que como existem poucos, não vale a pena existir algo que não vá ao encontro dessas mesmas pessoas. Perpetua-se, assim, um ciclo em que é tudo igual. Se calhar, a fórmula não está correcta porque apostar nas coisas que acabam por não dar nada de novo às pessoas, nomeadamente a nível cultural, não resulta para que as populações fiquem nos locais. É recorrente tal acontecer e eu notei isso, essa falta de pessoas. Pior é para os que lá estão não existir nada de novo ou interessante. Se quiserem, têm de se deslocar centenas de quilómetros e, para verem algo novo, pagarem, ainda por cima, portagens. Também não se percebe como, salvo excepções, se quiseres ir a Viseu, a Covilhã ou à Guarda ou a Estremores, querendo ir por auto-estradas, tens de pagar portagens . Em Espanha, por exemplo, nos nossos vizinhos, só nas áreas das grandes metrópoles ou nas zonas de maior densidade populacional é que as pessoas têm de pagar para se deslocarem. Agora, eu quero ir ver um espectáculo a Viseu ou à Guarda e para lá chegar através de uma via rápida tenho de pagar para …Vai ser sempre uma barreira. Tens de pagar tanto ou mais para ir a Vila Real como ao Porto ou a Lisboa, isso aí é uma coisa que não se percebe.
Também faltam infraestruturas alternativas ao automóvel pessoal e às portagens das autoestradas (veja-se o que se fez com a ferrovia). E mesmo o autocarro, cujo o custo dos bilhetes já pesa, não garante uma boa ligação a outras cidades e vilas regionais que não sejam capitais de distrito.
Exactamente, parte logo daí. Há mil e umas barreiras e não há incentivos para que as coisas sejam mais equitativas. E repara que estamos só a falar a nível de cultura e de deslocamento de pessoas. Se falarmos de saúde, então… No hospital de Beja não há médicos de obstetrícia, por exemplo. Dizem que é por não haver tantas pessoas, mas existem pessoas. Enquanto o pensamento for assim, as coisas vão, gradualmente, ficando piores até não haver ninguém.
Para ti a desertificação será, então, a raiz, o cerne da questão. Onde tudo começa, portanto.
Sim, sim. A desertificação será o início do problema porque Portugal acaba por ficar desequilibrado. Acaba por haver uma desertificação inerente: se não há oferta, não há pessoas, não há vida. Faltam medidas de fundo desde há várias décadas para inverter a situação. É que não há mesmo, não há incentivos oficiais para que algo mude nesse aspecto. Cada vez há mais pessoas a viverem nos grandes centros e cada vez menos no interior.
Mas mesmo quando os incentivos falham, sentes que a população local já vai tendo uma maior consciência ou também acaba por colocar entraves a essa abertura cultural, por exemplo?
Acho que há um misto do que estás a dizer porque, às vezes, as pessoas querem permanecer no ciclo em que se encontram. Mas já há, no entanto, um grupo de pessoas que estiveram a estudar fora, nos grandes centros, e que regressam por qualquer motivo ou, não regressando, acabam por tentar, sentindo as suas raízes, fazer algo nas terras de origem. Por isso, acho que há um misto. Há pessoas novas que ainda conseguem olhar para a sua terra natal com apego e, digamos, com amor inerente, mas cada vez há menos jovens e menos nascimentos no interior. O desapego, consequentemente, vai aumentando. Acho que é, portanto, mais num grupo de pessoas de faixa etária elevada que já não acham piada e pensam que já não há nada a mudar. Por outro lado, acho que os jovens que restaram, que nasceram há 20 ou 30 anos, ainda conseguem ser uma salvação possível do interior, tentando procurar o desenvolvimento com a abertura de horizontes dos pólos de onde estudaram ou, então, tentando trazer algo de novo para as terras mais pequenas. Senti isso, nesse aspecto.
Além do ‘Viagem Interior’, enquanto Homem em Catarse, também lançaste o ‘Umbra’, enquanto integrante dos Indignu, que foca a questão dos Incêndios de 2017 e a grande calamidade adjacente. Achas que faz falta, actualmente, os artistas exprimirem uma consciencialização social nos seus trabalhos?
Acho que um artista deve ser, acima de tudo, livre, e deve falar ou escrever sobre qualquer assunto sobre o qual sinta necessidade. Não há, honestamente, uma predisposição para falar sobre Portugal ou não. O desequilíbrio social e demográfico é algo que vem de há muito e o disco acabou por sair há dois anos, mas continua, sempre, a ser actual uma vez que as coisas não mudaram, infelizmente. No caso dos Indignu foi algo que aconteceu, sentimos essa necessidade. Foi uma tragédia sem comparação nas últimas décadas, em Portugal, a nível de incêndios. Trata-se de uma casualidade porque os trabalhos anteriores da banda focavam a bipolaridade humana. Agora, o que têm ambos em comum, na minha opinião, a nível musical, é a portugalidade, mas não há uma decisão prévia de ser mais português ou de focar assuntos sobre o nosso país. É com naturalidade que isso acontece. Claro que somos portugueses e é normal abordarmos as questões do nosso local de origem, mas acho que a portugalidade existe nas veias que nos corre e, mais até, na musicalidade que nos sai nas nossas composições do que, propriamente, do facto de ser uma coisa pensada e deliberada. Acho que a portugalidade está-nos na alma, mas não é uma coisa que a gente decida. Quando sentimos vontade fazemos, nem sequer pensamos. Acho que é mais por aí.
Tens acompanhado a situação de Pedrógão?
Tenho acompanhado e sentindo que as coisas, realmente, não mudaram.Tive a oportunidade, no final do ano passado, de tocarmos onde ocorreram incêndios, em Outubro, e notei que nada se fez. Sinto que a única coisa que se fez foi limpar bermas de estrada para os automóveis não se incendiarem, o que está bem. Mas, no fundo, no que diz respeito a uma consciencialização colectiva de abertura para natureza, não sinto nada. Basta haver condições atmosféricas que permitam uma situação catastrófica ou trágica como a que houve e nota-se que está tudo por fazer. Felizmente, vou tocar, agora em Agosto, em Figueiró dos Vinhos, próximo de Pedrógão Grande, numa das zonas mais afectadas pelos incêndios. Aí sim, é uma excepção porque, a nível cultural, existem parcerias entre o município e sociedades livres. Está a tentar fazer-se o oposto do que falávamos, que é o panorama geral.
Tiveram algum feedback por parte das populações afectadas? Tiveram oportunidade de entrar em contacto com as pessoas afectadas pelos incêndios?
Não. Já agora, cheguei a ver num programa de televisão que havia sido feito um trabalho sobre os incêndios de Pedrógão. Já havia uma banda portuguesa que tinha feito um trabalho não só sobre Pedrógão mas sobre os acontecimentos de Outubro de 2017. Portanto, não sentimos enquanto Indignu, por parte das pessoas ou municípios afectados, qualquer ligação a isso. Mas também não o fizemos para que houvesse alguma reacção ou por causa disso.
Vamos ao início. Como é que a tua relação com a música começou? Até porque Barcelos é um pólo bastante interessante no que diz respeito à música e, também, ao rock.
Eu acho que Barcelos,mais do que o rock, acaba por ser um viveiro de influências e de várias correntes, não só o rock. Basicamente, eu comecei a tocar com 16 anos e até comecei com guitarra clássica. Posteriormente é tive o primeiro contacto com várias bandas que acabaram por resultar nos Indignu. Houve uma altura, sensivelmente em 2004, quando os indignu apareceram, que começou a surgir uma nova vaga de bandas em Barcelos, a querer tocar fora, a querer tocar em todo o país e, então, houve um movimento salutar de grupos novos a aparecer, incrivelmente, numa pequena cidade. Crescemos um bocado todos neste movimento, que Barcelos já tinha um movimento grande nos anos 90, e voltou agora a ter nesta nova vaga de 2004.
Tiveste formação musical?
Tive formação musical de guitarra clássica, na academia de Barcelos, e depois a nível de rock foi muito por ouvido. Mas sim, tive formação musical clássica, o que não tem nada a ver com o momento de agora, toco na guitarra eléctrica. Mas há um misto das duas coisas, percebes? Depois, a formação acabou por ser a estrada, os ensaios e as composições que me foram dando a experiência e conhecimento que tenho enquanto músico, hoje em dia.
Mas quem toca guitarra clássica facilmente passará a eléctrica. As influências, também, apanham-se sempre.
A influência acaba por estar sempre lá. Isso nota-se mesmo a tocar na guitarra eléctrica ou seja o que for. Aquilo que nós fomos e aquilo que nós aprendemos fica sempre em nós. De alguma forma, acabamos sempre por passar isso, seja qual for o instrumento em que estejamos a tocar, seja ele mais similar ou diferente do nosso instrumento base. Mas é um bocado por aí. Tive formação até certo ponto, claro que a formação é sempre importante para um músico, mas acho que é mais o know how dos anos que se passam a tocar que vão dando mais solidez. Acho que isso é mais importante. Não desfazendo a parte da formação que a pessoa teve, essa está sempre lá, mas tu podes ter muita formação e tocar fechado em quatro paredes. Aí, se calhar, nunca vais conseguir tocar para pessoas. Acho que é a tocar para pessoas que ganhas a maior formação, na minha opinião.
Por isso mesmo é que és um artista que gosta de tocar e funciona bem ao vivo…
Sim, sim. Eu gosto de tocar ao vivo e acho que há uma partilha que não acontece, por exemplo, no estúdio. Porque no estúdio estás a tocar fechado em quatro paredes e estás a tentar tocar o mais perfeito possível, já ao vivo estás a tocar o mais emocional possível. No estúdio também pode acontecer isso, como é óbvio, mas sentes sempre que pode haver mais um take. Ao vivo não, é dar tudo ali, no momento, na hora. Isso também é importante e tem ligação com o que estava a dizer, que a experiência do dia-a-dia é o mais importante.
Há coisas novas na calha para Homem em Catarse?
Sim, sim. Depois do Verão vou começar a trabalhar e terminar um novo disco que sairá, provavelmente, no primeiro trimestre de 2020. Portanto, há aí um novo disco de Homem em Catarse que verá a luz do dia em 2020. É conceptual, diferente dos anteriores e é nesse trabalho no qual, a partir de setembro, me vou focar a 100 por cento. Continuamos sempre a tocar ao vivo , e tenho uns concertos agora em Famalicão, no Devesa sunset [23 de Agosto], em Figueiró dos Vinhos [28 a 30 de Agosto em residência artística], em Santarém [31 de Agosto] e S.Pedro de Moel [31 de Agosto]. [a entrevista ocorreu a 16 de Agosto]. Esses concertos vão ser de apresentação do disco ao vivo e do ‘Viagem Interior’. Entretanto, no início do próximo ano, surgirá um novo disco e uma nova etapa. No álbum ‘Ao vivo na Porta 253’ também há essa reflexão, essa ponte de olhar para trás e fazer uma retrospectiva. A partir de agora, em 2020, vai surgir o novo trabalho, conceptual, baseado numa premissa, numa ideia, num poema. Neste caso,trata-se de trabalho que foi feito a partir de um poema.
Exacto, a poesia sempre esteve presente no teu trabalho…
Sim, apesar de ser um disco sem palavras, vai ser instrumental,tem essa ligação à poesia que, desde sempre, desde o início, pelo menos, esteve presente. Há uma frase que era muito utilizada por mim, “a poesia é embrulhada em dedilhados atmosféricos”, que continua a ser muito actual, vai ser sempre actual, basicamente.
Quanto aos assuntos tratados nesta entrevista, a questão do centralismo tal como a questão dos incêndios interligam-se e ainda são bastante actuais, infelizmente.
Sim, a nível de Indignu e aos acontecimentos de Pedrógão há uma ligação ao 15 de Outubro. No último disco da banda, o ‘Umbra’, há uma música que se chama ‘Foi em Outubro’, e há uma ligação, sobretudo, a esse 15 de Outubro emocional porque foi na altura em que os Indignu estavam a gravar o ‘Umbra’ que aconteceram esses incêndios. No entanto, no meu caso, onde eu vivo, em Braga, imaginei que se fiquei um bocadinho apavorado com um incêndio perto de casa, imagino aquelas pessoas que ficaram com a vida destruída completamente. A ligação basicamente é essa. Quanto a Homem em Catarse, acaba por estar indirectamente ligado porque o último é um disco que fala do interior e o interior acaba por ser mais massacrado por essas tragédias. O trabalho, como disseste, acaba por estar ligado a todas essas questões.