Entrevista. Hugo Gonçalves: “Não sou alguém a quem a mãe e o pai morreram e decidiu escrever um livro. Sou um escritor que decidiu pegar nesta matéria-prima, como já pegou em outras”

por Magda Cruz,    9 Junho, 2025
Entrevista. Hugo Gonçalves: “Não sou alguém a quem a mãe e o pai morreram e decidiu escrever um livro. Sou um escritor que decidiu pegar nesta matéria-prima, como já pegou em outras”
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Hugo Gonçalves é autor de vários romances. Na Companhia das Letras, estão publicados, por exemplo, “Revolução” e “Deus Pátria Família”. Em 2019, Hugo publicava o livro “Filho da Mãe”, que foi finalista dos prémios P.E.N. Clube e Fernando Namora. Agora, este ano, chega-nos “Filho do Pai”. 

Neste episódio do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, o escritor e guionista explica como é que os dois livros se interligam, mantendo a independência. Este díptico retrata a perda da mãe de Hugo, aos oito anos, e a do pai, quando tinha 45 anos e, como nós, ultrapassava os tempos de pandemia.

Em entrevista à jornalista Magda Cruz, o autor detalha a técnica incutida no novo livro “Filho do Pai”, explora a intenção do escritor quando revela um detalhe mas oculta outros, por exemplo, de como foi a última conversa que teve com o pai, José Capote Gonçalves.

Na reta final de uma conversa em que se fala muito de pilosidades faciais, descobrimos o tema do livro em que Hugo Gonçalves está a trabalhar, e que espera publicar no final do próximo ano.

Magda Cruz: Neste “Filho do Pai”, um dos exercícios que fazes é de descobrir como é podes ser um bom pai, refletindo sobre o pai que tiveste, de alguma forma. E quando te mudas para o Rio de Janeiro, deixas crescer um bigode, como tinha o teu pai. É nessa cidade e com esse gesto simbólico que te tornas homem?

Hugo Gonçalves: Bem, essa pergunta deu-me aqui um nó cego na cabeça [risos], porque no Rio de Janeiro era claramente uma cidade onde eu não estava preparado para ser pai. Aliás, eu fui pai seis anos depois de voltar do Rio de Janeiro. E então, parece que as duas realidades não existem no mesmo universo. E outra coisa que tu disseste, em relação ao livro, de ser bom pai. Eu acho que a maioria dos pais tentam ser bons pais. Não acho que o livro seja sobre isso. É sobre a experiência de ser pai. Aliás, o Michael Chabon diz, num livro, que ser pai é falhar todos os dias. Então, existe essa ambivalência, claro… Mais do que ser bom pai, do que é ser pai. Porque há pessoas que, se calhar, acham que são ótimos pais, não é? É uma coisa tão tão lata e tão ambígua, que as pessoas acham que são ótimos pais e, se calhar, os filhos não acham isso ou as pessoas à sua volta. Aliás, se há algo que marca a paternidade é, e eu sou próprio disso, a inevitabilidade com que tu criticas os outros pais. Eu tinha feito uma promessa a mim mesmo, dizia: “Ah, não, não vou ser desses pais que vêm alguém fazer uma coisa…”. É inevitável. [risos]

MC: E intervéns.

HG: Não, não intervéns com os outros, mas inevitavelmente comentas com a tua companheira ou o teu companheiro. E acho que todos os pais se vão reconhecer nisso, por mais que tu se tentes ser uma pessoa, ão sejas judicativo, tentes compreender, porque sabes quão difícil é todos os dias, há algum momento que vai haver um pai ou uma mãe que vão fazer uma coisa num restaurante e que tu vais abandar a cabeça e dizer “Não, não”. [risos]

MC: “Filho do Pai” inclui registros diaristicos, mas também rasgos de romance, já agora muitíssimo elegantes. E o livro pretende também ser o relato do que é ser pai, mas sobretudo filho, também. Quão difícil foi manter este relato honesto sem expor demasiado um lado de defesa dos insultos vindo de pai, sem entrar no ajuste de contas e sem exibicionismo e pornografia sentimental, como lhe chamas a certa altura no livro.

HG: Sendo um livro autobiográfico, a matéria inicial é a minha vida e a vida da minha família. Eu tinha alguma experiência porque escrevi o “Filho da Mãe”, que era sobre a morte da minha mãe e como é que essa morte acompanhou e definiu a família e cada membro da família à sua maneira, pelo luto e a ausência dele ao longo de décadas. E então eu tinha alguma experiência de trabalhar num material assumidamente biográfico. Neste caso, havia o desafio de eu não quere fazer um livro igual, obviamente, e ainda que escrevendo sobre a minha família algumas coisas podiam tocar ou até algumas histórias podiam ser revisitadas. Mas eu queria contá-lo de uma forma diferente. Uma dessas maneiras foi através do diário. Foi um diário que eu comecei a escrever na pandemia. Até comecei escrever antes, mas a primeira entrada… Porque houve muitas entradas do diário que não apareceram neste livro, não tinham interesse. E, aliás, o diário tem de beneficiar da triagem do tempo, porque as coisas que nós achamos importantes no dia a dia muitas vezes não são aquelas coisas que ficam.

MC: Isso é muito interessante.

HG: Mas eu sabia que alguma coisa havia de ficar. Então, a primeira entrada é no dia em que – e é assim que começa o livro -, dois anos após eu ter deixado de falar com o meu pai (nós tínhamos uma relação muito conturbada), estando numa pandemia, tendo ele cancro, sendo septuagenário, eu achei que deveria ir conversar com ele, porque era provável que ele não vivesse muito mais tempo. Então fui visitá-lo à casa onde eu cresci. Há também toda uma história familiar nesse lugar, que evocada nessa visita. Falámos durante meia hora. Ele estava com máscara, eu também, portanto nem sequer nos vimos a cara completamente, a última vez que vi o meu pai. E quando eu me vim embora ele deu-me a minha certidão de nascimento. E esse gesto, que pode ter muitos significados, essa entrada no diário que fala sobre essa inquietude, o que é que ele quer dizer com isto, não é? Pode não ser muito difícil de interpretar: um homem que está à beira da morte, ou que antevê a chegada da morte, com filho, que é sua prole, que representa a vida. E eu comecei a escrever esse diário. Esse diário prosseguiu depois muito intensamente no momento em que o meu pai foi internado e que a minha mulher estava grávida e, portanto, a morte e a vida contrastavam todos os dias.

MC: Tens uma passagem muito interessante, que é enquanto as células na barriga de M. se desenvolviam para criar o teu filho, as células do corpo do teu pai faziam o contrário.

HG: Multiplicavam-se para o matar. No caso do meu filho, para ele ter vida. E isso acontece numa das ecografias, que eu pensei nisso: “Ok, estou aqui a ver o desenvolvimento celular do meu filho, já era um feto, ao meu pai está a acontecer o mesmo processo, mas para o matar. Da mesma maneira que a ecografia morfológica do meu filho, que é uma ecografia muito importante porque vão ver todos os órgãos, vêm a translucência da nuca, se tem as pernas, os olhos, essas coisas todas, foi duas horas antes do funeral do meu pai. Mais uma vez, a vida e a morte a conviverem, sem cerimónia.

MC: Nem sabias se estavas a fazer a barba para ir ao funeral do teu pai ou a ecografia.

HG: Voltamos às pilosidade faciais, o bigode. [risos] Sim, nesse dia, eu aparei a barba e estava a pensar nisso.

MC: E olhas para a tua agenda e tens…

HG: Três da tarde: ecografia. Cinco da tarde: funeral.

MC: Exato.

HG: E então voltando à questão do diário. O diário é a expressão imediatista do dia a dia, das coisas à flor da pele, em carne viva, de toda essa vivência e que vai até depois do nascimento do meu filho. E o resto do livro é escrito já com a distância de alguns anos da morte do meu pai. Já eu sendo pai, portanto isso já me permite também um olhar para o meu pai e para a forma como ele foi pai diferente. E olhar para esse diário também com uma certa distância ao ponto de, e é exemplo, quando falamos aqui da barba ou do bigode. Por exemplo, estou a falar disso depois, e há um momento em que eu faço uma pausa, não é? Faço uma pausa no diário e falo sobre o bigode do meu pai e no dia que o meu pai decidiu cortar o bigode e parecia outra pessoa. E de como é que fazer a barba é, de certa maneira, transformador para um homem, é um elo normalmente entre pais e filhos – e também filhas, não necessariamente filhos.

MC: A capa de “Filho do Pai” é sobretudo isso, não é?

HG: Sim, fala disso. Tem um rapaz a fazer a barba com o pai, um menino.

MG: Mas o pai está distante e não está a ajudá-lo. Sinto que pelos filmes que vejo, e tenho dois irmãos, é um ato que passa de pai para filho. É assim que se usa a gillette, metes aqui o gel de barbear, que antigamente até era aquele pincel.

HG: Eu acho que há uma dimensão que é o ritual, que é muito interessante. Eu vejo isso quando eu estou a aparar a barba, o meu filho fica vidrado e faz-me perguntas. Mas não é só algo exclusivo da masculinidade, porque ainda há pouco tempo estamos a falar disso num clube de leitor e mais do que uma mulher me disseram: “Não, mas eu lembro-me e eu adorava ver o meu pai fazer a barba.” Portanto, há ali um momento talvez de conexão, de intimidade, algo que se faz na intimidade, algo físico, não é? Da pele, dos cheiros, isso é muito interessante. Mas voltando à dimensão literária, existe no livro esses dois registros, que atravessam o livro e depois existem também temáticas, capítulos temáticos, e esse era o grande desafio de não fazer uma sequela do “Filho da Mãe”. Nós nem sequer tínhamos decidido que o livro se ia chamar “Filho do Pai”

MC: Tinhas outro título em mente?

HG: Havia um outro título, mas nenhum título era brilhante.

MC: Mas querias fugir a “Filho do Pai”?

HG: No início queria, porque eu não queria colar os dois livros. E depois à medida que fui…

MC: Mas se calhar ganha com isso. Não achas?

HG: Acho que sim, ou seja, no final, depois do processo… Normalmente, trabalho sempre, com quase todos os livros, trabalho com o chamado working title, que é o que… Na indústria do cinema não há um título definitivo. E às vezes o título só me vem a meio. Nalguns casos não, mas só vem a meio. Já nem me lembro de qual era o working title, portanto não devia ser muito bom. [risos] Mas “Filho do Pai” comunica com o outro livro. Nós também pensámos: “Há muitos leitores do ‘Filho da Mãe’ e esta é outra dimensão, porque fala muito mais… Fala também da morte, fala da morte do meu pai, vai buscar a da minha mãe, mas fala muito mais da relação que eu tive com o meu pai porque, enquanto que a relação com a minha mãe era a relação da ausência, ela morreu quando eu tinha oito anos e como tal era o que ela não foi, não é? Claro que depois eu fui reconstruir a vida dela, até à morte dela, mas era essa ausência. No caso do meu pai eu vivi 45 anos com ele. Ele era o único progenitor, portanto, mesmo na sua ausência ele tinha uma presença tremenda. Quando escrevi o “Filho da Mãe”, eu não era pai ainda, e neste caso sou pai. E isso… muitas outras pessoas o dirão, não é preciso ser escritor, que quando nós somos pais e começamos a criar uma criança, a forma como olhamos para os nossos pais, não quer dizer que não…

MC: Há uma certa valorização, se calhar.

HG: Sim, não quer dizer que a nossa relação com eles mude, atenção. Eu não acho que se o meu pai fosse vivo nós íamos resolver os nossos cismas. Mas há uma maior compreensão, há uma maior humanização e reconhecimento daquilo que eles fizeram.

MC: Para não fugir ainda do registro diaristico, nesses registros tu escreves “Tu vais”, “Tu dizes” e não, “Eu vou”, “Eu digo”. Na segunda pessoa. Isto é pensado?

HG: Claro. [risos] É engraçado porque nestes livros biográficos há uma tendência para as pessoas acharem, e é normal que o achem, que “Ah, isto aconteceu-lhe e ele sentou-se e escreveu isto.” Eu não sou alguém a quem a mãe morreu e decidiu escrever um livro, ou alguém quem o pai morreu, teve um filho, e decidiu escrever um livro. Eu sou um escritor que decidiu pegar nesta matéria-prima, como já pegou nas outras. Já pegou na Revolução de Abril, já pegou no Portugal de 1940, na ascensão dos radicalismos e dos delírios da religião, tudo isso. Como tal, é bom que o leitor leia sem pensar que, “Olha, há aqui é um trabalho literário e está organizado desta maneira, há esta estrutura de capítulos, há a utilização da segunda pessoa.” É bom que não leia, ou seja, que leia o livro sem olhar para as costuras, mas para que ele possa ler assim é preciso que eu o pense de uma certa maneira. Ou seja, o livro começa… Podia começar em muitos outros lugares.

MC: Começa com a memória na praia, quando cortas o pé.

HG: Exatamente. Podia começar de outras maneira. E porque é que anda para a frente e para trás, e porque está dividido em temas e subtemas. E porque é que há o diário… Então, por duas razões. Uma delas é que, quando eu estava a reler o diário e a ver o que é que ficava e o que é não ficava, ia fazer alguma edição, (porque há coisas que no correr da pena não ficam literariamente apuradas para serem livros) eu notava que havia não só uma necessidade de distinguir essa parte do resto do livro, e que já estava no tom e na velocidade, porque o diário é escrito de uma maneira e a outra é escrito com mais folgo, com mais tempo, com mais profundidade, mas faltava-lhe qualquer coisa para as duas partes comunicarem. E a segunda pessoa do singular é muito pouco utilizada, o tu, não é? E é por uma razão, é porque se livro fosse todo escrito no tu era uma chatice, tornava-se aborrecido. Eu já o tinha feito num ou noutro capítulo do “Enquanto Lisboa arde o Rio de Janeiro pega fogo”, e nalguns textos, e o tu é sempre uma conversa de mim para mim,. É como se eu tivesse a espelho, não é? Dizer, tu foste ao funeral do teu pai, tu chegaste atrasado, tu fizeste… Então é uma espécie de jogo de espelhos. E que retirava ao diário aquela sensação demasiado confessional e umbiguista que o diário pode ter. E, se calhar, por isso é que eu nunca escrevi um diário, nunca fui muito diários. E é um género que, para fazer bem, não há muita gente que consiga fazer. Pode ser uma coisa muito umbiguista, quase juvenil. E então eu achei que se usasse na medida certa e parcimoniosamente esse tu, que funcionava porque lhe dava outra musicalidade e permitia que o diário não fosse uma coisa umbiguista. Era alguém que está falar de si para si mas que não é uma coisa…

MC: E esse jogo, o espelho, o leitor também está a ler “tu”. Se calhar a mensagem até passa a nível ainda mais profundo por estar a tu… Já não se separa tanto o dono do diário e até se confunda às vezes com o registro diaristico.

HG: Isso já não sei porque não sou leitor dos meus próprios livros, então não tenho… Mas acho que rapidamente o leitor percebe que sou eu a falar comigo mesmo, não é? Ou que é narrador a falar comigo.

MC: Voltando à ligação entre “Filho do Pai” e “Filho da Mãe”, depois de sabermos que o teu pai está doente, ficamos a saber que vais ser pai e é logo nas primeiras páginas que pensas no futuro, na possibilidade de acontecer algo de mal ao bebé. E nessa altura colocas uma pergunta que é: “Haverá algum medo que se compare a este? Já não será a morte da tua mãe o maior dano de todos?” Ou seja, aqui começas a pôr as coisas perspectiva, também já a fazer uma certa ponte para “Filho da Mãe”. E interessa-se esta ligação entre os dois. Eles comunicam, mas são independentes, podem ser lidos separadamente, mas sempre quiseste que cada vivesse por si.

HG: Sim, ou seja, uma pessoa que leia o “Filho do Pai” não tenha de ler o “Filho da Mãe”, e que leia o “Filho da Mãe” não tenha de ler o “Filho do Pai”, de todo. Queria que fossem livros independentes, porque eles não foram pensados… Formam um díptico, claro que sim, comunicam entre si, se as pessoas lerem os dois livros vão perceber essas ligações, mas eles são independentes, e eu queria que assim fosse, porque não queria que um dependesse do outro, não queria essa ideia de uma sequela. Queria que fossem obras independentes, que vivessem sempre por si. Isso era muito importante quando eu comecei a escrever o livro. Em relação àquilo que tu disseste do dano maior, isso tem a ver com algo que é contado no “Filho da Mãe”, e que tem a ver com a minha história, e provavelmente a história do meu irmão mais velho, que é certo caráter temerário de, um certo desprendimento que pode ser bom, mas também pode causar algum dano, não só nós, mas às pessoas que estão nossa volta. Aquela ideia de que eu posso estar sempre com o pé fora e partir porque aquilo que me aconteceu de mais terrível foi a morte da minha mãe, portanto, se tu me deixares, se eu perder o emprego, se eu quero que seja, eu estou…

MC: Isso foi algo que te apercebeste muito cedo ou foi depois?

HG: Não sei quando é que me apercebi disso, lembro-me da conversa que tive com o meu irmão antes de escrever o “Filho da Mãe”, que é mais velho do que eu, e eu o confrontei no sentido de expus-lhe essa ideia e ele disse-me, e aí surpreendeu-me, disse-me: “Sim, até ao momento em que fui pai.” Eu ainda não era pai. Ou seja, a partir do momento em que ele foi pai, esse caráter temerário de “tou-me nas tintas e seja o que vier, não tenho nada a perder”, quando tens um filho isso desaparece. E eu já tinha ouvido da boca dele, mas não tinha experimentado, porque não tinha sido pai ainda. E então eu revisito essa história de certa maneira no “Filho do Pai”, porque agora eu já entendo muito melhor essa suposta invulnerabilidade, que não existia obviamente, e que também era fruto, se calhar, de uma juventude, porque nós na juventude temos mais a noção de que somos imortais e invulneráveis com a passagem do tempo, mas essa invulnerabilidade que era dada pela morte da mãe foi pulverizada com o nascimento do meu filho.

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