Entrevista. Iguana Garcia: “O sonho é continuar neste comboio e aproveitar a viagem”
Percorro as ruas da baixa do Porto e entro nas Galerias Lumière. João está sentado numa mesa com um café e um livro por companhia. Não é de cá. Cresceu em Cascais, “ao lado do mar”, numa aldeia onde “passavam cavalos, burros e até um veado”. Passou a infância a brincar sozinho ao ar livre – “por ser um dos poucos putos que vivia naquela aldeia” – e a criar narrativas e filmes que apenas a sua imaginação chegou a conhecer. “E se escolhi a arte como um dos lados da minha vida, tem muito a ver com esse imaginário que desenvolvi a brincar sozinho em miúdo pela Natureza. A imaginação ganhou uma necessidade de se tornar algo mais quotidiano na minha vida adulta.” Aos 18 anos foi para Lisboa estudar Engenharia no Técnico. O sonho venceu e mudou para Introdução à Composição Musical. O contacto com “os softwares de hoje em dia” deu-lhe as ferramentas físicas para o que a mente há muito pedia: começar a fazer música sozinho.
A Iguana nasceu em 2016. E, neste momento, “é difícil dizer onde acaba o João e onde começa a Iguana”. Durante a gravação do Cabaret Aleatório (lançado em setembro de 2017), percebeu que precisava de escolher um nome artístico definitivo. O brainstorming feito com Makoto (da banda PAUS) conduziu-os a camaleão, “por fazer tudo sozinho e ser assim um pouco camaleónico a nível sonoro”. Iguana soou “foneticamente mais interessante”, juntou o próprio apelido e eis o alter-ego: Iguana Garcia. Explica que, no fundo, acaba por ser uma extensão da sua personalidade, apenas “um pouco mais defendida, por ter um lado mais exposto e mais artístico”. Vagas, o seu segundo trabalho de estúdio, é lançado esta sexta-feira.
Como apresentarias este álbum?
É uma boa génese intimista de canções contemporâneas com aquele toque de anos 80 que me definiu desde o princípio. Apresento-o como um álbum mais intimista, um álbum de inverno – eu sinto que é um álbum mais cinzentão, mas nem por isso menos interessante musicalmente. Acho que é um álbum que uma pessoa deve ouvir num contexto mais tranquilo do que o anterior. É um disco mais de baladas, se se pode dizer. Um álbum menos rock (o outro tinha mais guitarras, aqui despi-me mais das guitarras). No contexto geral, um álbum indie-pop.
Tal como uma iguana, nenhum género musical cabe em ti. Como decorreu o teu processo de crescimento pessoal, como chegaste a esta sonoridade tão própria?
Primeiro, as minhas referências estão muito ligadas ao rock e ao indie. Cresci a ouvir Arctic Monkeys, Franz Ferdinand, Queens of the Stone Age, The Strokes. Cresci a ouvir música de guitarra. Depois, tive bandas na minha adolescência em que a minha musicalidade era muito parecida a essas bandas. Mas, mais tarde, quando comecei o projeto sozinho, não queria fazer algo demasiado acústico; queria fazer algo com um fio condutor mais eletrónico. Só que nunca tinha sido uma pessoa de ouvir música eletrónica – ultimamente exploro muito mais do que o que explorava na altura em que comecei o projeto. Por isso, acho que muita da particularidade do som passa por ser uma associação das referências que eu tive de composição musical, do indie rock associado a um lado mais de tato e de sensibilidade da música eletrónica. Talvez no futuro, e a partir do momento em que entrar mais com conhecimento de causa sobre artistas de música eletrónica, sobre house, deep house, até ao techno, talvez a estrutura das músicas se vá aproximando um pouco mais dessa estrutura de música de dança. Neste momento, ainda é um híbrido muito grande, que vai buscar um bocadinho à canção indie, que vai buscar um bocadinho aos elementos dos anos 80. Acho que isso se deve muito à naturalidade com que eu faço música – por não estar a ir sempre à procura de referências. As referências estão lá e, a partir daí, sozinho no quarto, começo a explorar.
Então acabas por quase já nem seguir o processo de composição tradicional.
Pois não. Hoje em dia já pouco pego na guitarra para compor. Pouco pego no piano para começar a estrutura de uma música. Sento-me ao computador, defino mais ou menos para onde o beat me vai levar e a partir daí é que começo a acrescentar camadas. Já camadas que vão, à partida, ficar na sonoridade final. No momento em que começo a compor a música, ela já está próxima do que pode vir a soar quando estiver acabada.
Então como funciona o teu processo criativo?
Para já, é muito aleatório. Sento-me ao computador, faço as coisas todas sozinho… por isso uma música não começa num dia em específico. Tenho imensas sessões abertas que, se calhar, nunca vão dar em nada. Outras vezes, quando estou a trabalhar uma música, há um elemento qualquer que me faz pensar uma nova música. Por isso, é muito aleatório, o processo não começa sempre da mesma maneira. Eu tento, à medida que vou crescendo enquanto artista, definir tempos; tempo para trabalhar e tempo para compor. Não é um horário muito específico nem muito rígido, mas gosto de pensar: “ok, hoje ao chegar a casa, em vez de fazer a lide de casa, vou tentar fazer umas músicas”. Ou, em vez de ir beber um copo ao fim do dia, tento estabelecer aquele fim de dia para compor. Vou inserindo muito esse tempo no resto da minha vida, na dinâmica do dia a dia. E também sinto falta quando passam temporadas em que não estou a compor. Mas começa sempre com os fones nos ouvidos e uma sessão branca à frente. Ultimamente tem sido muito pelo beat.
Que história querias contar no Cabaret Aleatório?
O Cabaret era a história de uma viagem que eu fiz – já não sei se em 2015 ou em 2016 – a Marselha. Na altura, foi uma viagem de carro com um dos meus melhores amigos de infância, que ia mudar-se para lá e casar-se lá. E foi precisamente a viagem com ele e o regresso até Lisboa (com outras pessoas). Então, o Cabaret acaba por ter um fio condutor. Agora neste Vagas – até pelo nome – já não há nenhuma história. É mais um momento de vida do que uma história em concreto. Neste novo trabalho acho que há muito uma vontade de… no Cabaret já existiam reflexões em pequenas letras. Agora, as reflexões são muito vagas, não é, mas são muito próximas a um momento de vida que foi o fim de 2018 e o início de 2019, um momento de mudança na minha vida.
Acho que o álbum é mesmo isso, a nível lírico: muito vago.
O álbum aborda muitos temas sobre aquela má vida que se vai fazendo neste início de idade adulta. Assentei muito as ideias das letras sobre o que eu sentia nessas fases de roda viva. Então, acho que, de certa maneira, há esse fio condutor pelo álbum. Mas Vagas… o nome até vem de duas ideias. Por ser só uma vaga musical, e esta vaga musical provavelmente não se vai voltar a repetir na minha discografia, porque está realmente um álbum com uma estrutura muito cancioneira, muito pop. Era essa a minha intenção, mas é só uma vaga mais indie pop, não vai continuar a propagar-se. E vago no sentido de que, realmente, foi de vagas diferentes que eu me armei para fazer estas músicas e, ao contrário do Cabaret, em que está tudo muito ligado e as músicas às vezes até passam de uma para a outra, aqui elas acabam, começa uma nova e representam todas pequenas vagas diferentes.
Que inspirações tens – tanto musicais como relativas a todos os outros aspetos da vida?
Eu tenho um processo um pouco sinestésico; não tenho muita inspiração só a partir da música. Tive muita inspiração de filme noir neste álbum, por exemplo. Até há um pequeno sample do Chinatown, o filme com o Jack Nicholson. Está numa das músicas do álbum porque eu vi muito filme noir durante a altura em que fiz o disco – desde o Falcão Maltês até ao Chinatown, a passar por Hitchcock e assim. Acho que isso está muito presente na postura do narrador no álbum, mesmo não havendo propriamente um narrador. Aquilo que a letra vai dizendo, o filme noir tem sempre uma personagem forte que, ao mesmo tempo que é astuta, perde-se sempre em rodeios. Depois, há sempre a ideia de uma femme fatale que já complexou a personagem completamente. Por isso, acima de tudo, acho que houve inspiração que surgiu muito do cinema noir neste álbum. Musicalmente, houve alguns artistas mais independentes que eu segui um bocadinho para criar a estética do álbum; são artistas pequeninos, um deles é o HOMESHAKE e outro é uma cena ainda mais pequenina que se chama infinite bisous. Descobri os dois pouco tempo antes de começar estas músicas e influenciaram-me os dois.
Em que tipo de palcos gostas de tocar?
É uma boa pergunta. Gosto de tocar em sítios escuros. Preferencialmente, com um sistema de som já apropriado para a música de dança. Gosto de sentir aquele sistema de som que tem uns graves fortes e que está ali redondo. Há clubes de rock onde eu acabo por me sentir um pouco fora de contexto. Eu gosto de todos os palcos, atenção, desde os palcos mais pequenos aos maiores. Gosto bastante de ir a salas pequenas e sentir aquela proximidade com o público… porque estou ali sozinho em palco, não é preciso mistificar assim tanto a coisa, haverá alturas para mistificar um pouco mais a produção, mas, neste momento, sou um artista pequeno, não faz sentido estar a mandar areia para os olhos. Acho que aquilo que tentei fazer neste álbum foi dar-me um leque de canções que também possa ajudar a ter mais espaço em palco para isso mesmo, permitir-me ter um pouco mais de interatividade. Porque as músicas do Cabaret foram compostas a pensar em como é que faria aquilo ao vivo. E quando fiz as digressões desse disco, as músicas soavam com uma estrutura muito igual àquilo que estava no álbum. Várias vezes me senti preso em palco, para dar atenção a todos os loops – que tinha de gravar uns por cima dos outros para aquilo estar tudo correto – e às vezes falhava e isso era castigador. Agora, preferi libertar-me da quantidade de coisas que estava a fazer em palco. Há mais informação que já vem assumidamente em backing track e há mais liberdade – para poder cantar por cima, para poder improvisar outros teclados ou outras guitarras. Para que seja um ambiente mais confortável.
O que procuras a nível sonoro?
Agora procuro um bocadinho mais de adaptação a uma realidade eletrónica. Quando comecei o Vagas foi o oposto; achei que aquilo que me ia motivar daqui para a frente seria um pouco mais a pop, só que todo o processo de produção que isso pode vir a envolver é muito grande. A pop precisa de, às vezes, ter as baterias gravadas de uma maneira super cara ou precisa de ter uma orquestração com músicos bons a tocarem-te sopros ou cordas de orquestra. E agora acho que aquilo que (porque já estou a trabalhar em coisas novas) está a puxar por mim é a procura por uma estrutura de música de dança. Principalmente o deep house, estruturado de uma maneira mais clássica. Tentar produzir mais música de dança – no contexto de álbum e não só. Também no contexto de remixar outros artistas portugueses.
Em que outros projetos estás envolvido?
As bandas já acabaram. A parte musical vai começando a crescer, não só no lado Iguana… ainda não há nada a anunciar propriamente, mas o meu interesse é crescer enquanto produtor. E, para lá da produção, tenho vindo a conhecer muita gente em todos os meios artísticos de Lisboa e tenho todo o interesse em tentar cimentar esse lado da minha vida. Quer seja a fazer música, quer seja a integrar-me em projetos de outros, quer seja simplesmente a discutir mais valias artísticas ou culturais – neste caso, em Lisboa, que é onde eu vivo, mas por Portugal, se possível. Ainda tenho outros lados profissionais da vida, que neste momento assentam sobre o turismo, porque é o que me permite ter tempo facilmente, não ter um horário muito fixo, que me permita trabalhar na música também. E que me permita ter independência musical e financeira, porque é importante eu não sufocar a minha capacidade artística com a dependência de fazer dinheiro através dela. Pelo menos é essa a minha visão; neste momento, se eu tivesse que depender da música, então aí teria que fazer as coisas de uma maneira completamente diferente em relação à minha vida artística.
Há alguma música que te seja mais próxima ou pela qual tenhas um carinho especial?
Vou escolher uma de cada álbum. Do Cabaret Aleatório, acho que é claro que o “60KF” é a que ficou com mais carinho. Essa música acabou por ter o impacto que eu gostava que pudesse ter, sem eu esperar que de facto pudesse acontecer. Porque é uma música de 7 minutos – e na altura passou na rádio imenso. O que eu gosto mais é a espécie de mantra que escrevi na letra. Foi apenas um pensamento que me surgiu ao volante dessa viagem que fiz a Marselha, e já muitas pessoas me vieram dizer, “epá, a letra daquela música fala comigo e identifico-me imenso com aquilo”. E, realmente, quando tu compões uma coisa a achar que tem esse valor e depois as pessoas te dizem isso, tem mesmo muito impacto. Então, o “60KF” não pode não ser, de todas até agora, a música pela qual mais carinho tenho nutrido. Deste álbum, acho que a que é mais especial para mim deve ser a última música, a “Brotou”. É uma balada muito psicadélica e muito espacial, que fala um pouco de um momento que foi íntimo e que eu nem tive de procurar pôr em palavras; acabei por compor uma música e no fim olhei para ela e, sem ter percebido que estava a falar sobre esse momento, percebi-o. Tanto que essa música já vem de há muitos anos atrás – ainda antes de existir Iguana Garcia. A ideia inicial desta “Brotou” já vem do tempo em que eu ainda estava no Técnico. Consegui ir buscá-la, introduzir os elementos de Iguana Garcia e fazer dela uma música de Iguana Garcia, quando ela já estava feita. Do Vagas, esta é a música que eu realço mais.
Que sonhos tens, tanto realizáveis como irreais? O que gostavas de fazer daqui para a frente?
Eu tenho gostado muito deste último ano. Em 2019 sinto que aprendi bastante, que aprendi como é estar dentro do meio musical e do meio artístico. E isso já não é propriamente um sonho, porque já cá estou. Tenho bastante interesse em continuar a aprender, a estar neste jogo e nesta vida. Agora, sonhos-sonhos? Só posso dizer que o meu sonho é um dia conseguir ver que alcancei estabilidade na minha vida, que fiz dinheiro, que fui feliz, que vivi e que tive uma vida dinâmica – e que a música foi o centro dessa experiência de vida. Não tenho o sonho de pisar nenhum palco em particular… é claro que gostava de um dia ir a Paredes de Coura. Gostava de desenvolver o meu projeto a nível de eletrónica para poder andar pela Europa – ou até pelo mundo – num contexto mais de clube e de discoteca. Mas o sonho é continuar neste comboio e aproveitar a viagem. E ter dinheiro para o pagar, e para continuar a pagar a viagem a cada checkpoint.
Já pensaste em fazer colaborações?
Claro. Neste momento estou muito interessado em fazer colaborações com outros músicos e até já tenho algumas que vão acontecer – não posso é revelá-las. Mas tenho aqui artistas no panorama musical dos quais eu sou fã e com os quais vou colaborar. Talvez ainda este ano. A minha ideia e continuar a fazer música e, quem sabe, este álbum Vagas não seja o único trabalho que lanço este ano. Por mim, vêm mais coisas ainda em 2020. E virão com colaborações.