Entrevista. Inês Meneses: “Queremos passar a ideia de que estamos mais próximos e acho que estamos muito afastados uns dos outros”
O Rui André Soares também contribuiu com perguntas para esta entrevista.
Radialista, autora, escritora, cronista, amante de música e mestre na arte de conversar, Inês Meneses confessa à Comunidade Cultura e Arte que não faz entrevistas, mas sim conversas. Conversas nas quais já aprendeu a respeitar silêncios e hesitações, porque também comunicam, e revela que não é o seu propósito ou missão “encostar os seus convidados à parede“, mas antes preservar, sempre, um lado humano e de partilha. Os podcasts de conversa proliferam, depois “uns conseguem, outros não”, mas discutiu-se como essa proliferação poderia ser uma forma de suprimir uma maior desumanização da comunicação em geral: “Quer dizer que havia um esvaziamento de intimidade que não é, necessariamente, exposição. É uma conversa em que as pessoas partilham 3 ou 4 ideias, não tem de ser, propriamente, uma devassa da privacidade dessas pessoas“, explica.
Para si, vão ser os programas de autoria que vão salvar a rádio apesar deste ser um meio que tem vivido como uma montanha-russa ou, nas suas palavras, como um “carrossel”, com as suas oscilações. Tudo o que faz tem de ter, para si, esse pendor de autor. O PBX, podcast que mantinha no Semanário Expresso com Pedro Mexia, já findou, mas o seu “Fala com Ela” continua, antes na Radar e agora na Antena 1, em conjunto com as suas crónicas, “O Coração Ainda Bate”, no Público (Ímpar), e “O Amor É”, com Júlio Machado Vaz. O seu recente livro, “Máquina de Escrever Sentimentos”, já chegou à terceira edição e foi mote para se falar, também, além de rádio e comunicação, dos sentimentos, amor e os equívocos do amor, principalmente quando vêm acompanhados de notificações de telemóvel.
Ana Monteiro Fernandes [AMF] – A Inês começou muito nova na rádio, ainda com 16 anos. Como descobriu essa vocação? O seu irmão [o jornalista João Paulo Meneses] também a inspirou, de alguma forma?
O meu irmão é que foi o importante porque não tinha vocação alguma, a não ser enquanto ouvinte. Lá em casa ouvíamos muito a rádio — aliás, como em quase todas as casas portuguesas, numa altura em que só havia rádio e televisão, inicialmente com dois canais, depois com quatro — portanto, havia um foco muito grande sobre a rádio. A rádio tocava todo o dia em minha casa e o meu irmão seguiu jornalismo, já estava, portanto, numa fase em que, provavelmente, já estaria a estagiar. Ele [o irmão] fez Comunicação Social e não sei se já estaria a trabalhar num dos jornais por onde ele passou — o “Comércio do Porto”, o “Primeiro de Janeiro”, um daqueles jornais que já não existe, infelizmente [ambos jornais do Porto, dos mais antigos do país, perdendo, apenas, no caso do “Comércio do Porto”, para o jornal “Açoriano Oriental”. O “Primeiro de Janeiro” continua, apenas, com um site] — e na altura estava, também, a fazer uma colaboração com a Rádio Vila do Conde, ainda no tempo das rádios-piratas, e disse-me: “Acho que tens boa voz”. Foi uma coisa surpreendente porque nunca tínhamos falado sobre voz — não é um assunto do qual que se fale — e ele perguntou-me: “Não queres experimentar fazer rádio?” Disse logo que sim, que queria, e fui logo parar a essa rádio, à Rádio Vila do Conde, onde comecei, então, no verão de 1987, a escrever noticiários. Ouvia os noticiários da Antena 1, transcrevia os noticiários e, depois, lia-os à minha maneira. Era tudo muito amador, mas feito com prazer. Até diria que com o mesmo prazer de agora — isso manteve-se.
AMF – Mas já tinha uma relação especial com a música.
Sempre, sempre. Penso que é uma das vantagens em se ter um irmão mais velho, quer dizer, o irmão pode ter péssimo gosto, mas não era o caso. Se tivesse mau gosto, tinha-me arruinado a vida [risos]. Aliás, todos ouvíamos música lá em casa, de uma forma muito compartimentada porque o meu pai ouvia muito Amália — em todas as divisões da casa há uma fotografia da Amália — e a minha mãe gostava muito de música brasileira. Lembro-me do meu pai ter uma caixa do Zeca Afonso, que ouvíamos de forma religiosa, quase. Ouvíamos muito Sérgio Godinho, Zeca Afonso e, depois, o meu irmão ia para aqueles territórios em que ouvia mais The Smiths, Joy Division, Echo & the Bunnymen, e foi por aí que decidi entrar por esse mundo.
AMF – A Inês é uma cara conhecida…
Não sou conhecida, há sempre essa ideia errada de que sou conhecida, mas sou conhecida dentro do nosso circuito, acho.
AMF – Mas já é uma personalidade da rádio a quem ligamos a cara à voz. Agrada-lhe a ideia de, na rádio, existir a voz sem a cara, sem a presença?
Sim, reparem, venho de um tempo em que a voz estava coberta de mistério. Realmente não víamos as caras, com excepção das pessoas que eram muito conhecidas, como o António Sérgio ou, de outra forma, o Júlio Isidro. Até o Herman José, que ouvíamos a fazer o sábado de manhã na rádio, também. Havia umas quantas personalidades que já eram conhecidas, o Carlos Cruz, por exemplo, e que tinham um rosto, depois havia outras que não tinham um rosto associado como, por exemplo, o Aníbal Cabrita, com quem mais tarde me cruzei na XFM, que era um vulto da rádio muito importante. O Aníbal Cabrita não tinha um rosto associado, tinha só uma voz grave, mas actualmente, como sabem, tudo é gravado com imagem. Não vou dizer que é uma coisa que me deixa confortável, muito pelo contrário. Para mim, rádio é rádio e não devia ter imagem, de todo, ou partíamos, então, para um programa de televisão que é um programa de televisão. Para mim, rádio não devia ser filmada, talvez porque me sinta pouco confortável, também, e pode condicionar a convidada ou o convidado. Na Antena 1, por exemplo, foi-me pedido para gravar parte ou o todo do “Fala com Ela”, mas pedi para gravarmos só uma pergunta específica para deixarmos o convidado à vontade e, também, eu estar à vontade. Aquela é uma conversa entre duas pessoas e mais ninguém entra no estúdio.
Sou, portanto, um bocadinho avessa à imagem, na rádio, porque é de rádio de que se trata. Mesmo na música, é engraçado: como tive, sempre, esse fascínio pelas vozes, lembro-me que da primeira vez que vi a Tracey Thorn, dos Everything But the Girl — que é uma banda que acompanho desde o início e desde antes dos Everything But the Girl, portanto, há muito mais de 30 anos —, lembro-me que da primeira vez que vi a cara dela, isso teve um impacto fortíssimo em mim. Achava que aquela mulher que canta com aquela voz, para mim, fabulosa, com contornos muito específicos, teria um outro rosto. A imagem, portanto, destrói, por vezes, um bocadinho o nosso imaginário. Uma vez fui a uma dentista e, quando me viu entrar, disse: “Inês Meneses? É a Inês Meneses que faz “O Amor É”, com o professor Júlio Machado Vaz?” Disse: “sou”. Ela [a dentista] respondeu: “Ah, sempre a imaginei loira e alta.” Cada um projecta à sua medida e isso é muito engraçado, nós projectarmos. A beleza, para ela, tinha a ver com esse padrão e respondi-lhe: “olhe, desculpe, vai ter de viver com isto, que sou eu” [risos].
AMF – Mas a rádio também tem a sua magia própria. Sempre que surgia uma nova plataforma ou meio, a morte da rádio era, sempre, vaticinada, mas esse fim nunca veio. Porquê?
Atenção que a rádio também tem vivido num carrocel. A rádio tem vivido uma montanha-russa porque lhe é retirado valor e, portanto, é sempre uma prima pobre, parece que é sempre uma prima afastada do sucesso. Lá está, a rádio mantém-se na sua dimensão que, nuns casos — se formos falar da Rádio Comercial e da RFM e mais dois ou três casos, da Antena 1, evidentemente — tem um público muito mais largo e abrangente, mas, depois, há outras rádios que, enfim, vivem com algumas dificuldades. Estamos a ver, agora, o caso da TSF, tristemente, onde trabalhei 12 anos, também, onde aprendi as coisas mais importantes. Vivemos numa montanha-russa com a agravante, agora, da Inteligência Artificial. Será que vamos ter playlists, que é o mais fácil, que nós já fazemos em casa? Será que vamos ter uma voz que nos vai fazer companhia?
AMF – Vai ao encontro do que ia perguntar a seguir. A rádio devia apostar mais em programas de autor?
Sim. A minha aposta é sempre essa. Tento com que tudo o que faça na rádio tenha um cunho autoral. Entretanto, com o Pedro Ramos, com a Joana Bernardo e com o Duarte Pinto Coelho, com quem estava na Radar, saímos todos da Radar e fizemos uma rádio chamada Futura – Rádio de Autor. Nessa rádio, evidentemente, damos primazia à autoria, ao cunho, à ideia de humanizar, personalizar aquele espaço que ali temos. Ainda em relação àquilo que se vaticinou sobre a rádio, acho que é a autoria que nos vai salvar. Reparem, vai ser muito fácil termos, de facto, boas playlists, como já temos, com uma voz criada por Inteligência Artificial, ou livros, quando já falamos da parte da escrita. Qualquer ChatGPT escreve um livro em não sei quanto tempo, mas imagino que, em muito pouco tempo, com os tópicos: amor, ciúme, traição, não é? Acho, no entanto, que as pessoas querem sempre conhecer quem está para lá da voz, da escrita, e isso não se vai dar com a Inteligência Artificial, a não ser que compremos as pessoas. Também vai ser possível, se calhar [risos].
AMF – Referiu há pouco que transcrevia noticiários. Alguma vez se imaginou a fazer jornalismo puro e duro?
Não. Comecei por essa fase de informação, mas não lhe chamaria jornalismo. Quer dizer, quando dei o salto para a rádio seguinte, fiz jornalismo, mas, também, numa fase já polivalente, fazia informação e fazia emissão. As pessoas que começaram na rádio há muitos anos habituaram-se muito a fazer informação e emissão e, portanto, estávamos capacitados para fazer uma coisa e outra. Hoje em dia, penso que as pessoas estão mais compartimentadas, mais segmentadas: há os jornalistas, há os animadores e já não há muito essa quase promiscuidade, que acho que é positiva porque aprendi nos dois lados. Mas o jornalismo puro e duro, apesar de ser viciada em notícias — só ainda ligo a televisão para ver a informação — não me chegava porque queria a música e queria abrir um microfone, lá está, e poder dizer coisas que não obedecessem a um código apertado de imparcialidade. Sempre fui parcial na maioria das minhas coisas.
AMF – Quando pensamos em Inês Meneses, pensamos em conversas. Além da voz, pensamos na arte de saber conversar. A rádio ajudou-a nesse sentido, por exemplo? Na destreza de remediar silêncios quando eles aparecem?
Complementando que, actualmente — penso que isso também vem com a confiança — respeito imenso um silêncio. Aquilo que poderia ser um momento de pânico para mim, “o que é que eu faço com este silêncio?”, deixo, agora, esse silêncio respirar porque é o silêncio da outra pessoa. Tenho de respeitá-lo, em vez de atafulhar a conversa com mais uma pergunta. Esse silêncio é muito revelador. Aquela pessoa deu-nos um silêncio e o silêncio quer dizer alguma coisa, mas nós estamos habituados a quase asfixiar o convidado ou convidada com mais uma pergunta. Acho que, hoje, sei respeitar os silêncios, as hesitações, como nesta conversa em que hesito, em que vocês escutam: isto é uma conversa. O que tento fazer no “Fala com Ela” é, exatamente, isto — uma conversa. Claro que sendo uma hora de rádio, um silêncio nunca se poderá prolongar demasiado, mas tento que seja o mais verdadeiro, genuíno, da parte de quem está a fazer e de quem está a dar esse momento de rádio. Tento que seja o mais verdadeiro possível, exactamente como isto que está a acontecer aqui: isto para dizer que não é encenado. Vou para aquela conversa, levo uma introdução, evidentemente, que foi pensada no convidado; levo, imaginem, 30 perguntas, mas espero não fazer as 30 perguntas porque, isso, quer dizer que, naquele momento, brotaram 1001 coisas que não se cingiram a um guião.
AMF – É ter atenção e pegar em determinadas partes das respostas…
Ou dos silêncios. Sim, sim!
AMF – No meio de tanta entropia no mundo actual, ganhámos mais capacidade ou perdemos capacidade em ouvir e em conversar, como forma de chegar ao outro?
Acho que queremos fazer passar a ideia de que estamos mais próximos e acho que estamos muito afastados uns dos outros, precisamente, porque não damos lugar à escuta, que é a coisa mais difícil. Dar o lugar à escuta, no fundo, é quase prescindir do nosso protagonismo, do que é que nós queremos. Isso é muito notório na televisão. Na televisão, as conversas são sempre pautadas por uma certa agressividade, ninguém na televisão conversa desta forma. Há uma ideia que é esta: este elevar de voz, a ideia de que vamos, sempre, retirar qualquer coisa de muito importante do outro.
Rui André Soares [RAS] – Mas isso não mudou com o tempo?
Havia mais agressividade ou não.
RAS – Acho que havia menos.
Acho que não.
RAS – Digo isto porque vejo imensos vídeos da RTP Arquivos, entrevistas essencialmente e, às vezes, estão a falar e a conversa divaga.
Mas aí, por exemplo, podes estar nos anos 70. Dou-te um exemplo: há um Festival da Canção que aconselho a toda a gente, de 1976, ainda a preto e branco, em que havia um só interprete, o Carlos do Carmo. Não sei se já o viram, mas havia, imaginem, 12 autores com o maestro Vitorino de Almeida ao piano, e o Carlos do Carmo a interpretar cada um desses autores. Acho que isso é um momento de televisão ímpar e aprenderíamos imenso, todos, a ver esse esse festival. Mas o que é que acontecia? O Carlos do Carmo interpretava uma coisa do Ary dos Santos, do Tozé Brito ou das mil e uma pessoas que estavam nesse festival e, depois, o próprio maestro Vitorino de Almeida sentava-se com o Carlos do Carmo perante uma plateia, uma assistência que criticava, questionava, e gerava-se ali uma conversa. Isto foi bom porque as pessoas davam a sua opinião: “Isto foi muito mal, eu não gostei nada disto”. As pessoas na plateia opinavam. Isto acabou, certo? Acho que, nos anos 80 — e já me estou a lembrar da Margarida Marante, do Miguel Sousa Tavares —, houve ali um lugar para uma certa agressividade que acho que, também, teve a ver com a necessidade de impormos um jornalismo de qualidade, de rigor: mas era um jornalismo que, para se afirmar, precisava dessa agressividade. Acho que ainda há um bocadinho essa agressividade no jornalismo, mas no que faço posso retirar essa agressividade. Costumo dizer que não quero encostar os meus convidados à parede: não há confronto. Se calhar, no programa, já se disseram coisas que eram motivo, não para uma cacha, mas quase para uma manchete. Ninguém ligou nada, no entanto, porque era uma conversa e porque não fui para lá com essa ideia: “Vou retirar o máximo possível esta pessoa”. Não, vou retirar o que ela quiser dar.
AMF – Mas lá está, servem propósitos diferentes. É diferente do que um jornalista num jornal ou telejornal qualquer informativo.
Evidentemente, mas não é à toa, por exemplo, que vamos ver nesta campanha eleitoral os candidatos todos muito flexíveis para irem a programas com um registo que já não é, meramente, informativo: eles querem aproximar-se das pessoas dessa forma. O que se perdeu aqui, pelo caminho, foi a humanização destes momentos. Na questão da política, nunca sabemos muito de um político, ou porque ele não permite, ou porque ele tem ordens, digamos, dos seus assessores para nunca se desviar, demasiado, daquilo que é importante, porque é importante falar-se do combate à corrupção, ao crime.
RAS – Às vezes, até nem respondem às perguntas, dão uma resposta ao lado.
Dão uma resposta abstracta, não é? Para não serem apanhados por isto, ou por aquilo. Mas acho que, quando estávamos a falar da proximidade das conversas servirem esse propósito de estarmos aqui juntos, acho que isso se perdeu pelo caminho. Nunca houve tantos podcasts de conversa na vida, mas queremos passar a ideia de que conversarmos, todos, muito. Acho que falta um registo de proximidade que nem sempre é fácil de ter.
AMF – Então concorda com a ideia de que aquilo que faz, essencialmente, chama-se conversa, não tanto uma entrevista.
Não, não é uma entrevista.
RAS- Vou fazer uma comparação, se calhar os podcasts também não aparecem do nada. Se calhar, estavam tão desumanizadas as conversas na televisão e na rádio, que o podcast veio servir esse propósito.
Sim. Depois uns conseguem, outros não. Há um registo de descontração ou de entretenimento, e há outros registos mais de proximidade, sim. Mas passamos a ter esse registo de conversa que não tínhamos tanto e por algum motivo é: quer dizer que havia um esvaziamento de intimidade que não é, necessariamente, exposição. É uma conversa em que as pessoas partilham 3 ou 4 ideias, não tem de ser, propriamente, uma devassa da privacidade dessas pessoas.
AMF – Então, pegando naquilo que já falamos, acha que é por causa disso que o “Fala com Ela” conseguiu manter-se desde 2005, creio, no ar, mesmo passando da Radar para a Antena 1?
Acho que sim, porque tem esse registo de proximidade, de partilha. Ninguém se sente obrigado a revelar nada que não queira. Cria-se ali, portanto, um espaço de conversa que é semelhante a uma conversa que teria aqui em casa, ou no café, ou num sítio de família. Quero que aquela conversa seja o mais familiar possível.
AMF – Que experiências lhe permitiram ter o “Fala com Ela” e que experiências lhe permitiram ter “O Amor É”?
“O Amor É” tem diferenças porque foi um programa para o qual eu fui chamada. Fui ocupar um lugar de alguém que já tinha saído. Antes de mim esteve lá o António Macedo, a Ana Mesquita e ainda a Ana Lamy, portanto, fui a senhora que seguiu, no entanto, já lá estou há 15 anos. Houve, evidentemente, uma boa química com o Júlio Machado Vaz e foi isso que nos permitiu ser, até hoje, uma dupla na rádio porque temos — é importante isso também — afinidades em comum. Atenção, acho que é muito difícil haver fricções ou haver antagonismos, haver divisões claras, fracturas, e as pessoas continuarem 15 anos, depois, unidas. Diria, até, que a minha relação com o Júlio [Machado Vaz], 15 anos depois, é ainda melhor do que alguma vez foi. Fomos, portanto, criando e aprofundando, também, uma amizade, à parte do programa. Em relação ao “Fala com Ela”, é um programa que criei de raiz. Tinha de fazer um programa ao fim-de-semana, portanto, fazia parte do que se pretendia da minha presença, na altura, na Radar. Tinha de fazer emissão durante a semana, mas tinha, também, de fazer um programa ao fim-de-semana. pensei, então: se é para ter um programa, então quero que seja de conversa. Já tinha feito uma experiência na XFM, precisamente, no programa do Aníbal Cabrita, que era um veterano da rádio, e tinha um programa chamado “Café Virtual”, onde eu tinha um pequeno segmento de, imaginem, 20 minutos, em que todos os dias conversava com um artista: podia ser alguém da dança, podia ser algum autor ou um escritor. No fundo, diria que foi o início do “Fala com Ela”.
AMF – Mas, se calhar, também houve essa afinidade porque a Inês tanto fala com um artista, um desportista, um escritor ou um cientista e, de alguma forma, a saúde mental também não é um tema que lhe é estranho.
Acho que o que pesa aqui é a disponibilidade com que vamos. A disponibilidade com que eu vou para a conversa com o Júlio e que pode ser sobre, em última instância, futebol. Terei troco também para lhe dar, percebem? No fundo, aquilo que nós falamos é uma linguagem comum aos dois, entendendo que o Júlio está, atenção, num patamar ao qual eu não chego, de maneira nenhuma. O Júlio é um psiquiatra e é especialista em sexologia, portanto, não tenho nada a ver com essas matérias, mas sou uma curiosa e, enquanto curiosa, interessa-me falar com o cientista, com um jogador de futebol e com a senhora do comércio local. Estou disponível para ouvir, para aprender, para dar, também, um pouco. O que acho que tem resultado comigo e com o Júlio é que estamos disponíveis, os dois, para ouvir e para aprender, porque também consigo passar uma ou outra coisa que ele não sabe.
AMF – As crónicas, como é que lida com elas e como é que as encara? O que deve ser uma boa crónica para si?
Podem ser coisas muito diferentes. Neste momento, a crónica que escrevo, “O Coração Ainda Bate”, para o Público, para a Ímpar, tem um tom muito confessional e, portanto, fazia-me sentido que fosse assim. Era uma coisa que poderia ser diária, mas é semanal, mas tem esse registo de diário que me agrada muito. Não podendo ser uma Patti Smith que se senta no café a beber as suas canecas grandes de café longo e a escrever — se calhar, num mundo ideal, gostava de fazer isso — mas venho de um tempo em que escrevi o “Sexo e a Cidália”. Foi um pseudónimo que mantive na imprensa durante 13 anos, para aí: começou na Grande Reportagem, depois foi para uma revista que fazia parte do Jornal Notícias e do Diário de Notícias e, depois, ainda escrevi para O Jogo. No “Sexo e a Cidália” — era, obviamente, um trocadilho com a série “O Sexo e a Cidade” — a Cidália era uma mulher de 30 anos, emancipada, a viver num mundo machista e que tinha muitas aventuras para relatar. São dois conceitos, portanto, que não deixam de ter, ambos, esse tom confessional, mas agora falo na primeira pessoa e, na “Cidália”, nem sempre falava na primeira pessoa. Acho que uma crónica, para mim, deve ser um espaço de liberdade total, de muita reflexão e, essencialmente, de observação. Acho que uma crónica nasce da observação, tal como a escrita, mas numa crónica tu condensas, ali, um olhar. O que ali está é um olhar. O que coloco nas minhas crónicas é o meu olhar, evidentemente.
AMF – O poder da palavra escrita é diferente do poder da palavra falada?
Diz-me tu [risos]. Para mim é igual.
AMF – Têm o mesmo impacto?
Claro que a voz é mais imediata, é uma coisa muito mais rápida. A escrita leva-nos a reflectir, podes voltar para trás e dizer, pensar: “Não retive o nome desta personagem, ou não percebi bem o que é que se dizia aqui”. Há, portanto, a ideia de que tu possas absorver aquilo com um outro tempo. Agora, com o podcast, podes fazer, exatamente, a mesma coisa, mas quando penso em voz, ainda penso na rádio, na rádio em direto, por exemplo. Acho que o poder do microfone é um poder inigualável, nós é que não o usamos. Não é à toa que uma revolução se fez a um microfone. Claro que foram precisas muitas pessoas para concretizar essa revolução.
AMF- Chega a muitas mais pessoas e tem um lado mais humano, também.
Deve oferecer, nem sempre oferece, mas deve oferecer. A escrita depende do que se escreve. A escrita também pode chegar a muita gente. O que acho é que o poder do microfone, da voz, numa rádio em direto, é rapidíssimo, inflamável — um território inflamável.
AMF – O Ary dos Santos é muito mais do que apenas um escritor ou poeta de canções, mas creio que esse epíteto também não o incomodava, porque era uma forma de oferecer ou ver a poesia, as palavras, na voz do povo, também, uma vez que no seu tempo não era escolarizado.
E depois era a forma intensa e projectada com que ele falava. Ainda hoje, quando vou ouvir, por exemplo, o Estrela da Tarde – “era a tarde mais longa de todas as tardes” — ao ouvi-lo dizer isto, é impossível não se ficar arrepiado. Às vezes, dividimos muito a esquerda e a direita: os cantores, autores, compositores que são de esquerda e a direita recusa um pouco, e vice-versa. Mas acho que temos de ouvir as coisas de uma forma limpa. É impossível ouvir o Ary dos Santos — e claro que ele está situado num tempo e contexto político — mas é impossível ouvi-lo e não se ficar arrepiado. A intensidade que ele punha na forma como dizia, na sua voz. Acho que a voz nos revela, a não ser que queiramos falar todos da mesma forma.
AMF – Nos seus livros, e no compacto de ideias que faz nos seus livros, de alguma forma, esses aforismos ajudam a arrumar as ideias, também?
Acho que escrever — seja o que for, vamos pensar nas crónicas — ajudam muito a pensar e a resolver. Esse é o poder diferente em relação à voz, porque a voz, muitas vezes — o que dizes também pode ser pensado, evidentemente — mas às vezes, as palavras formam-se na tua boca e são disponibilizadas, assim, no imediato. Quando estás a escrever, estás à procura, é como se fizesses uma equação, estás à procura que aquilo te dê um resultado, que aquilo seja uma soma e, normalmente, bem ou mal, encontro sempre uma conclusão, uma soma. É esta ideia de: “nem tinha pensado nisto. Quando comecei nem sabia que ia desaguar aqui”. Muitas vezes, muito do que aparece na escrita — não estamos aqui a classificar o nível de qualidade da escrita — pode ser muito espontâneo. O Bret Easton Ellis diz em relação aos “Estilhaços” — que é um livro que tenho aqui para ler, um calhamaço, ele demorou anos a escrever este livro — mas diz a dada altura que as personagens lhe surgiam, não era ele que as convocava, elas apareciam-lhe. Muitas vezes, o que acontece com as personagens, com as palavras, é que elas surgem. Quando vou ler, imagina, o livro de crónicas d’O Coração Ainda Bate, mesmo o livro de crónicas, penso: fui eu que escrevi isto? As palavras saem de ti e ganham um sentido. Parece que foste tu que deste aquela ordem. De certa forma, ganham vida própria.
AMF – A Inês também acaba por fazer um bom uso das redes sociais. como é que olha para as redes sociais em geral? Podemos fazer com que trabalhem a nosso favor, sem ser ao contrário? Sem serem as redes sociais a utilizarem-nos?
Acho que sim, não esquecendo que suspeitamos que, de alguma forma, todos estamos a ser utilizados. Suspeitamos, não, sabemos que estamos. Fomos quase ingénuos quando nos deram este brinquedo que era a Internet, e pensamos: “uau, esta coisa grátis em que fazemos as perguntas e temos as respostas.” Isto é tão bom porque nos tornou visíveis, mas, claro, há sempre um preço a pagar. No meu caso, tento, sobretudo no Instagram, utilizar mais para trabalho. Não uso muito já o Facebook — não vou ao Facebook arranjar lenha para me queimar, é uma coisa que não quero, porque não quero gastar energia com isso. O Instagram uso para trabalho, essencialmente, em que tento promover o “Coração Ainda Bate”, o “Fala com Ela”, aquilo que escrevo. Não tenho publicidade, portanto, não ganho dinheiro com essa rede social nem com nenhuma. Penso que por aí não desiludo as pessoas, não vendo cremes, não uso.
AMF- Na mesma dinâmica das tecnologias, há uma parte que achei curiosa no livro “Máquina de Escrever Sentimentos”: “Vivemos à míngua de um sinal qualquer, como se o telemóvel validasse a nossa existência.” As novas tecnologias fazem-nos confundir a adrenalina do verdadeiro amor, com a adrenalina de se receber a notificação no telemóvel?
Claro, porque deixamos que a ansiedade seja quase uma espécie de barómetro. Acho que, às vezes, nos esquecemos do grande sentimento que está para além disto tudo, que tentamos que seja o amor, e ficamos aqui a perder o nosso tempo à espera que alguém nos responda. Podemos passar um dia à espera que a outra pessoa nos devolva um sinal, uma resposta, e o amor está muito para além disso. Se ficamos à míngua desse pequeno sinal, muito mal vai o amor, porque o amor estará numa saída de casa para ir tomar um café. Parece que já foi no século passado que fizemos isso, mas íamos tomar café com as pessoas de quem gostávamos — ainda vamos, mas muito pouco. Estamos muito reféns disto, é verdade, e às vezes, também, nos dá a ilusão de que a pessoa que está aqui escondida — não é estar escondida no sentido clandestino, a pessoa que está aqui atrás — pode dar-nos a ideia de que é a pessoa perfeita para nós, criando uma teia e uma rede de afinidades que estão todas disponíveis na internet. Imagina, agora digo: “adorei o filme ‘Maestro’”. A outra pessoa diz: “também eu, e adoro quando o Bradley Cooper diz não sei quê”. Isto pode ser tudo forjado, porque isto está aqui dentro: quando digo dentro do telemóvel, digo dentro da Internet. As afinidades criam-se, hoje-em-dia, na Internet e deviam criar-se muito mais — lá está, voltamos à palavra chave deste encontro, se calhar — na conversa.
AMF – No livro também vai abordando, daquilo que interpretei, os equívocos do amor, ou seja, quando pensamos que amamos, mas afinal não é isso. Amamos porque de facto amamos ou há, também, aquele conformismo porque estamos presos à ideia romantizada do amor?
Acho que estamos cada vez menos presos a essa ideia romantizada. Acho que o outro, ou a outra, nos valida sempre. Sentimo-nos vivos porque há uma pessoa que nos manda uma mensagem e, muitas vezes, somos iludidos, muitas vezes enganamo-nos com essa ideia. Queremos sempre sentirmo-nos validados pela convocatória do outro, ou pela resposta do outro. Acho que estamos numa sociedade que vive de impulsos, e estímulos e, portanto, o amor também passou a alimentar-se desses mesmos impulsos, desses mesmos estímulos. Reparem, se pensarmos que, antigamente, os amores eram alimentados a cartas que demoravam não sei quanto tempo para chegar — e, quando digo isto, não estou a dizer nada, de maneira nenhuma, que antigamente é que era bom — mas potenciava o amor romântico, sem dúvida. Se alguém nos deixar uma carta na caixa do correio, isso tudo terá um tempo: o tempo da escrita, o tempo da chegada, ficar na dúvida se essa carta chega à mão certa, se a pessoa lê a carta, se decide se vai responder ou não. Tudo isto tem o seu tempo e esse tempo também ajudou a fortificar essa romantização do amor. Esta coisa, este toca e foge que o telemóvel ou o computador nos proporciona, acaba por diluir muito rapidamente o romantismo e, portanto, o que é que fazemos? Respondeu? Óptimo! Não respondeu? Próximo!
AMF – Se calhar isso também revela o desgaste das relações.
Claro. Gosto muito de falar da erosão do amor. Essa erosão que antigamente acho que demorava anos, porque implicava conhecimento e, claro, o conhecimento e a rotina levam a uma certa erosão do amor. O quotidiano pode levar a isso: todos os dias vemos a mesma pessoa, já sabemos o que é que ela vai fazer. Com a Internet, essa erosão é mais veloz do que aquilo que está a acontecer nas praias. Porque ficamos com a ideia de que conhecemos essa pessoa, mas nem sempre conhecemos. Ou seja, é-nos dado um perfil que nem sempre corresponde ao que a pessoa é, mas, facilmente, nós, lá está, validamos ou descartamos esse perfil. Foi muito rápido. Hoje escolhemos como nos queremos apresentar. O que é que acontece? Muitas vezes, depois, aquilo que criamos como sendo o nosso perfil, com os nossos gostos, com aquilo que achamos que somos, não corresponde ao que vamos realmente dar, entre aspas, ao viver com a outra pessoa. A pessoa vai dizer: “Mas esta não foi a pessoa que conheci”.
AMF – Mas essa necessidade de validação pelos outros também nos leva a tentar, sempre, dar a nossa melhor versão e tentar esconder o resto. Isso cria ilusões também, depois. Aliás, é por causa disso que a paixão pode ser um estado de ilusão.
Sim. Claro que é preciso uma certa confiança, mas não há nada como entregar a verdade logo de início. Ser honesto é uma garantia de muito para mim. Para mim é porque ficas a pensar, “entreguei-me tal como sou, se não der, a outra pessoa também não me servia”, digamos. Essa honestidade com que temos dificuldade em lidar é a nossa melhor arma, mas estamos sempre a tentar camuflá-la.
AMF – Acha que os portugueses conseguem ser confessionais sem serem invasivos?
Acho. Acho que, muitas vezes, as melhores conversas temo-las com estranhos, sim. A ideia romantizada no bar de um hotel, isso é filme. Nem tudo é “Lost in Translation”. Queríamos que fosse um bocadinho assim, não é. Mas tive conversas magníficas e, por um lado, ainda bem, porque podia cair na tentação de dizer: “Que pena isto não ter sido uma conversa na rádio.” Não, ela foi especial porque aconteceu ali no banco, na estação, com aquele estranho.
RAS – Se pensarmos bem, tem um bocado a ver com o exercício que se faz com um psicólogo, um psiquiatra, não é?
Sim, exactamente isso. Não temos medo de entregar a nossa intimidade porque achamos que nunca mais vamos ver aquela pessoa. Das experiências mais incríveis que tive, cinematográficas, vou-lhe atribuir esse cariz cinematográfico, foi assim: estava grávida já no final do tempo e começou a cair uma tempestade no Chiado, mas uma tempestade mesmo forte. Estava numa fila para um táxi que nunca mais acabava e passou um homem que tinha muito bom ar — não me lembro do nome dele, não me lembro de quase nada dele. Esse homem estava no banco de trás do táxi e disse: “A senhora não quer vir?” Nessa altura, fazia um programa de televisão, não sei se isso contribuiu, imagino que sim: não era completamente uma desconhecida para ele, ele era um desconhecido para mim. Agradeci-lhe muito, entrei e, portanto, também digamos que confiei, lá está. Baseei esse meu passeio invulgar na confiança que tive nesse momento. Avancei para a boleia e fomos o caminho todo a conversar e ele foi-me deixar à porta de casa. Só me lembro que ele tinha vários filhos, mas a ideia de que aquele homem me chamou, me viu grávida no meio da chuva, se pudesse ter gravado aquela conversa não teria o mesmo efeito. Foi um momento especial, mágico, e isso já me aconteceu mais vezes — não com estes contornos de chuva, grávida, caos no Chiado —, mas acontece-me muitas vezes. Acho que é preciso ter disponibilidade. Quando as pessoas me dizem assim: “Mas isso acontece-te tantas vezes, porque é que não me acontece a mim?” Isso acontece porque parto com essa disponibilidade.
AMF – É preciso ter essa disponibilidade para o outro.
Total, se não, não se fazem conversas, fazem-se monólogos.
AMF – O PBX acabou. Haverá hipótese de continuar em outros moldes?
Não sei, o Pedro tem uma vida muito complicada. Faz mil e uma coisas: escreve, faz crítica, trabalha com o Presidente da República. É um homem que é incapaz de dizer que não quando o convidam para mais uma conferência, à apresentação de um livro e, portanto, é, de facto, uma pessoa que tem a agenda cheia. Apesar de tudo, roubava-lhe algum tempo, o programa. Tenho imenso pena, os ouvintes terão muito pena e, às vezes, escrevem. Como ele não tem redes sociais, portanto, usam a mim, mas sei que muitas pessoas se sentiram um bocadinho órfãs. Acho que as coisas podem evoluir para outros formatos, no entanto. Continuamos a trocar mensagens.