Entrevista. Itamar Vieira Junior: “A melhor coisa que podemos fazer pela Literatura é aproximá-la da vida”

por Magda Cruz,    14 Julho, 2023
Entrevista. Itamar Vieira Junior: “A melhor coisa que podemos fazer pela Literatura é aproximá-la da vida”
Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado” e do mais recente livro, “Salvar o Fogo”, publicado simultaneamente em Portugal e no Brasil (Foto: Gustavo Carvalho)

Itamar Vieira Junior sabia que livro queria escrever depois do fenómeno mundial “Torto Arado”. O escritor brasileiro não tinha bússola para contar a história do novo romance, “Salvar o Fogo”, mas tinha personagens que o guiaram pelos caminhos do Brasil profundo.

Em entrevista ao podcast “Ponto Final, Parágrafo”, apresenta o novo livro, onde explora temas como o direito à vida e à terra, — que diz serem “direitos fundamentais da dignidade humana” — a violência contra as mulheres, o alcoolismo e ainda a influência da Igreja Católica na vida das pessoas. 

Neste episódio, o autor baiano fala também sobre a ponte cultural entre Portugal e o Brasil — e como pode ser reforçada — e revela os autores de Língua Portuguesa com que cresceu. José Saramago, Eça de Queiroz e Lídia Jorge são alguns dos seus favoritos. 

Magda Cruz: Mesmo sendo geógrafo, perdeu alguma vez o norte enquanto escreveu este novo livro, “Salvar o Fogo”?

Itamar Vieira Junior: (risos) Não, acho que não perdi o norte. Essa história é muito curiosa. Ela surgiu enquanto eu escrevia “Torto Arado”, porque há ali uma personagem — que os leitores que leram vão encontrar…

MC: Uma das irmãs…

IVJ: É, uma das irmãs. Eu queria falar sobre ela, queria me debruçar sobre a vida dessa personagem com que criei uma afinidade grande, mas não havia espaço naquela história. Então, durante a escrita de “Torto Arado”, decidi que escreveria “Salvar o Fogo”. E daí foi… Bom, não vou dizer a você que eu inicio a escrita sabendo do começo, meio e fim da história. Eu gosto de imaginar como a história pode me surpreender e eu vou conhecendo e aprendendo sobre a história.

MC: Partiu sem mapa.

IVJ: Exato, sem mapa. Apenas com a localização e a partir dali eu vou me encontrando. Acho que eu não tenho uma bússola. A bússola está com as personagens.

MC: Depois do sucesso que foi e que é “Torto Arado”, sentiu pressão do sucesso mediático, de alguma forma, para escrever este novo romance?

IVJ: A maior parte do tempo não senti essa pressão. Mas acho que depois que “Torto Arado” ganhou os prémios Jabuti e Oceanos (já tinha vencido o LeYa), eu aí vi uma grande venda no Brasil. Os leitores se interessaram.

MC: Isto durante a pandemia.

IVJ: Sim, durante a pandemia. Refleti bastante sobre aquilo que estava acontecendo. Afinal, para um autor iniciante, uma história daquela com tantos êxitos, se as pessoas iriam esperar e querer que eu sempre entregasse coisas parecidas. Isso pode se tornar um peso. Mas eu estabeleci um pacto comigo mesmo: “Torto Arado” agora é dos leitores. Eles levam esta história a outros leitores. Eu vou ser o velho Itamar que sempre gostou de Literatura, que sempre escreveu e vai continuar a escrever. Então consegui estabelecer esse pacto e, para mim, foi interessante porque, de facto, aí a escrita fluiu.

O escritor brasileiro Itamar Viera Junior a falar da sua obra, no podcast “Ponto Final, Parágrafo”, de Magda Cruz (Gustavo Carvalho)

MC: Ainda falando do Prémio LeYa, gostava de perceber a importância que este galardão teve na carreira do Itamar. Isto porque o Prémio LeYa destina-se a livros inéditos e, na Feira do Livro de Lisboa, na apresentação de “Salvar o Fogo” — que já agora estava cheia — disse que o prémio foi uma porta que lhe permitiu poder escrever mais. É esta a importância de um prémio para um escritor?

IVJ: Com certeza. Primeiro porque eu tinha dois livros publicados no Brasil, mas por editoras pequenas, eram coisas bem localizadas, que não circulavam. Como moro fora do eixo Rio-São Paulo, que é o centro cultural e económico do país, para mim era muito difícil chegar às editoras que fazem o livro circular. Só me restava enviar os originais do romance para prémios literários. E foi uma imensa coincidência porque, quando eu considerei que o livro estava pronto, eu vi que estava aberto o edital do Prémio LeYa e decidi concorrer. A gente concorre anonimamente. Se não der certo, ninguém vai saber que não deu certo. 

MC: E nem tinha grandes expetativas. 

IVJ: Não tinha nem uma expetativa. (risos) Foi um envio mais que protocolar. Depois, fui surpreendido com o Prémio LeYa e tenho a certeza… Este livro foi publicado em Portugal, ganhou o Prémio LeYa, meses depois foi publicado no Brasil, pela Todavia, mas se não tivesse o Prémio LeYa não sei se teria publicado no Brasil por uma editora que fez o livro circular. Então, o Prémio, para mim, foi de grande importância. Abriu portas, de facto, para que eu mostrasse o meu trabalho e, depois, conquistasse o número de leitores que conquistei. Além de tudo isso que tem acontecido no Brasil e dos leitores em Portugal, foi um livro que conseguiu muitas edições estrangeiras – que ainda estão por sair. 

MC: Precisamente. São 24 países, incluindo o Japão. Foi a editora Maria do Rosário Pedreira quem avançou estes números. O Itamar esteve até no Japão a apresentar o livro. Deve ter sido muito giro, apesar da barreira linguística. 

IVJ: Com certeza. Foi uma colhida surpreendente do leitores japoneses. Havia muito interesse e é um país muito diferente do Brasil. Jamais imaginei que uma história como essa, de pessoas simples, que vivem no campo, ainda se guardasse um sentido que é universal, que passa por todos os seres humanos. Afinal, estamos ali a falar do direito à vida, do direito à terra, do direito à liberdade – que em qualquer cultura e país são direitos fundamentais da dignidade humana. Talvez isso tenha despertado interesse dos leitores estrangeiros. 

Itamar Viera Junior em entrevista a Magda Cruz, do podcast Ponto Final, Parágrafo (Gustavo Carvalho)

MC: Mas olhando apenas para os nossos países — Portugal e Brasil — que razões acha que há para os seus livros serem tão bem recebidos? 

IVJ: Eu acho que há uma familiaridade naquilo que nós tratamos. Embora ainda sejam países diferentes, mas há uma familiaridade. Temos uma História comum. Durante muito tempo, estivemos juntos. Temos uma relação com a Língua que é uma relação, claro, distinta, mas ainda assim uma relação profunda. A Língua Portuguesa é a nossa pátria — em Portugal e no Brasil também. Ou seja, acho que essas afinidades terminam por criar um ambiente favorável para que as coisas fluam de uma maneira bem positiva. No Brasil, também temos muito apreço pelos escritores portugueses: os clássicos de sempre, mas também pelos escritores portugueses contemporâneos. Se a gente pensar, por exemplo, no Valter [Hugo Mãe], no José Luís Peixoto…

MC: Valter Hugo Mãe que ainda agora lançou o livro “As doenças do Brasil”. 

IVJ: Ele tem um público imenso no Brasil. Se falamos no Valter Hugo Mãe no Brasil, falamos de uma celebridade, de alguém que é muito conhecido. Ou seja, nós temos essa troca. Poderia ser maior, mas temos uma troca muito intensa de escritos, de arte. Temos uma História em comum. 

MC: E como é que se torna essa troca ainda maior? É publicar mais livros de autores brasileiros em Portugal e de autores portugueses no Brasil?

IVJ: Eu acho. De facto, há coisas interessantíssimas na Literatura Portuguesa Contemporânea. Há coisas muito interessantes na Literatura de Língua Portuguesa no Brasil. E essa é uma maneira de nos conhecermos. Neste momento, em Portugal, particularmente, temos uma boa leva de autores brasileiros que têm publicado aqui: Geovani Martins, Jeferson Tenório, Andréa del Fuego, Tatiana Salem Levy… Há um interesse crescente dos portugueses na Literatura Brasileira. Assim como há…

MC: Tal como o Rafael Gallo. 

IVJ: O Rafael Gallo, que acaba que ganhar o Prémio José Saramago; o Celso Costa, que acaba de ganhar o LeYa… Da mesma maneira, no Brasil nós temos muito interesse na Literatura Portuguesa. A Djaimilia Pereira de Almeida está publicada no Brasil; José Luís Peixoto sempre está no Brasil, tem muitos livros publicados; o Valter Hugo Mãe… O Afonso Cruz! Está aí outro escritor que tem muitos livros publicados no Brasil e tem um público leitor crescente. Isso é bem interessante, esse intercambio de falares, de saberes, de criação literária.

MC: Há todas essas possibilidades dentro da CPLP. A Língua Portuguesa e os livros de autores lusófonos têm a possibilidade de crescer imenso. Temos leitores por todo o mundo.

IVJ: E eu sempre lembro disso: a Língua Portuguesa é falada acho que em quatro continentes, mais de 250 milhões de falantes e ganhou densidade, profundidade, em cada fração de terra em que é falada. Estava lembrando que há dois anos, o Prémio Oceanos foi para um timorense que vive aqui em Portugal, o Luís Cardoso, que escreveu um livro belíssimo, chamado “O Plantador de abóboras”, que mostra que a Língua Portuguesa não tem fronteiras. Acho que temos muito de viver e descobrir da nossa Literatura em Língua Portuguesa. 

Itamar Viera Junior com o seu novo livro, “Salvar o Fogo” (Gustavo Carvalho)

MC: Sobre “Salvar o Fogo”, podemos dizer que é, de alguma forma, uma continuação de “Torto Arado”? Partilham temas como a ruralidade no Brasil, o direito à terra, o pequeno poder – e até uma personagem. 

IVJ: Com certeza. Ainda me debruço sobre esses temas. É uma história que surgiu durante a escrita de “Torto Arado” e da vontade de me debruçar sobre a vida de uma personagem — que eu não vou contar porque espero que o leitor a encontre com a mesma surpresa que eu gostaria que ele encontrasse. Ainda assim, é uma história que surgiu — embora seja uma história de imensa diferença porque se passa numa outra paisagem. É uma história que envolve a Igreja Católica e todo o passado que tem no Brasil e, além de tudo, como ela reverbera no nosso presente. Ainda há questões que são fundantes, como em “Torto Arado”, que é a relação de homens e mulheres com a terra e de como nós, seres humanos, independente, de onde a gente viva -—se em Portugal, na Palestina ou no Brasil — não prescindimos de uma relação com o território. Eu e você estamos aqui com os pés no chão. É algo que é muito humano. Então, ainda precisava de me debruçar sobre isto. Mas diria… Pode ser lida como uma continuação, mas a ordem da leitura não altera a perceção nem a compreensão aos leitores. Aqui há personagens que conduzem a história e que não estão no outro romance. 

MC: Outro ponto de contacto entre os dois romances é a importância das figuras femininas. Tem um interesse particular nos problemas que as mulheres enfrentam? Senti que representou muito bem a voz feminina. 

IVJ: Eu cresci num ambiente de mulheres, numa família que era atravessada pelo machismo, pelas estruturas do patriarcado. Os homens trabalhavam, claro, fora e achavam que a educação, mesmo nos momentos de folga, era atribuição das mulheres. Eram homens brutalizados pelo meio, pela História, pela violência do meio em que cresceram. E eu cresci neste ambiente em que as mulheres eram… É muito paradoxal. Primeiro, porque elas eram vítimas diretas dessa violência patriarcal e machista. Muitas vezes, eram silenciadas, eram atravessadas por violência até mesmo física. Mas eu achava impressionante porque elas se impregnaram no meu imaginário justamente por sua força. Porque elas não aceitavam passivamente nada daquilo. Elas reagiam de maneira muito ativa e há algo de heroico nessa reação. Estou pensando na minha mãe, nas minhas tias, nas minhas avós… Este ambiente de grande força e presença das mulheres se impregnaram no meu imaginário de tal jeito que eu, quando penso numa narrativa, a história acontece e é inevitável que elas surjam com toda a sua força.

MC: São muitas as problemáticas que Itamar consegue tratar em “Salvar o Fogo”. Como foi juntar estes temas, coser esta trama? Há a perda da mãe, o alcoolismo do pai, a pobreza e a luta por terra para cultivar e há, também, a perda da ligação entre eles. 

IVJ: Eu sempre me deixo guiar pelas personagens. Imagino que a vida delas é como a nossa. A melhor coisa que podemos fazer pela Literatura é aproximá-la da vida. Quando a aproximamos da vida, ainda que seja num contexto completamente diferente do nosso, mesmo que haja muita imaginação nessa história, a gente está criando um ambiente confortável, onde as pessoas se reconhecem. E a minha vida, a sua vida, a vida do ouvinte, é atravessada por inúmeras coisas. Ainda mais numa história como essa, que tem um arco temporal grande. São 40 anos ou um pouco menos. Mas, ainda assim, a nossa vida… Não estamos pensando em apenas um tema. Somos atravessados pelas nossas questões individuais. Acredito, Magda, você como mulher é atravessada por questões bastante específicas sobre o papel da mulher na sociedade. Eu, por exemplo, como alguém que vem de uma família interracial, alguém mestiço… Este lugar, para mim, para alguém no Brasil, também não é igual para todos. É um lugar diferenciado. Ou seja, nós somos atravessados por inúmeras questões e isso é a vida. É o que nos aproxima da vida. Daí imaginar estas personagens atravessadas por essa vida e daí tantos temas aparecem nesse romance. 

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“Ponto Final, Parágrafo” é um podcast sobre literatura, conduzido por Magda Cruz, em parceria com a Comunidade Cultura e Arte. Já conta com mais de 60 entrevistas a quem escreve e a quem lê. Pode ser ouvido em todas as plataformas de áudio.

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