Entrevista. Ivo Canelas “As pessoas que conseguem, nos momentos mais desesperados, desatar a rir, são aquelas que sobrevivem”
O regresso de Ivo Canelas aos palcos ocorre por estes dias com a reposição de Todas as Coisas Maravilhosas, um “monólogo” escrito originalmente por Duncan MacMillan. Foi também por causa desta peça que estivemos à conversa com o actor para falarmos sobre a passagem do tempo, sobre a teatralidade da vida e as dores de crescimento.
Um dos primeiros papéis de Ivo Canelas, que ainda hoje recordamos, foi Joca, da série Fura-vidas, transmitida em 2000 e que contava ainda com Miguel Guilherme como Quim e Canto e Castro como o Avô. Joca era “uma personagem muito ingénua” que vivia no meio da família tresloucada e disfuncional. Nos dias de hoje e num cenário ainda mais hipotético, Joca seria, segundo Ivo Canelas, levado “a tentar vender máscaras que fariam tudo menos proteger, o Quim estaria com uma empresa de ventiladores que não ventilavam, o avô achava que a COVID era um mito e que podia tossir para cima de todas as pessoas à vontade. O Joca seria o único verdadeiramente preocupado com todas as desonestidades. O Joca era a única personagem decente e sofria por isso no meio daquela família.”
Mas se Joca continuaria, provavelmente, preso numa dicotomia entre a sua honestidade e a devoção à família, há 20 anos, na altura em que a série “Fura-vidas” foi gravada, Ivo, o actor, enfrentaria de um modo diferente o desafio de um monólogo como o de Todas as coisas maravilhosas por “não ter maturidade naquela altura e seria provavelmente uma coisa mais áspera, mais rebelde, menos empática, mais sobre o sofrimento, o sofrimento da personagem. Seria mais sobre as coisas que lhe tiraram, e do desgosto que daí adveio, do que a compreensão que até as coisas que nos tiram fazem parte de nós. Que é onde eu estou agora, onde aceito tanto aquilo que tenho, como aquilo que perdi, como aquilo que posso vir a perder, como algo natural.”
A empatia que Ivo Canelas teria há 20 anos para a que agora sente será o elemento diferenciador para o actor e será também sinónimo da passagem do tempo, mas não considera que a idade seja sinónimo de empatia, que “alguns podem nem vir a sentir. Vem para alguns, o que não significa que sejam melhores ou piores, só são talvez menos comunicativos do ponto de vista humano. Mas está associada a crescimentos violentos, a crescimentos dolorosos, a linhas não rectas às surpresas que a vida nos reserva.”
A peça Todas as coisas maravilhosas foi sugerida a Ivo Canelas por Hugo Nóbrega, da H2N. O texto foi traduzido e trabalhado pelo actor e validado por um grupo de psicólogos. Tendo já havido várias levas de actuações, a experiência poderá ditar as expectativas mas, segundo o actor, “não houve qualquer momento que não tivesse sido absolutamente mágico ou transformador”, em que o público se entrosa com o actor e onde todos se entregam “a um nível muito profundo. Sendo um “falso monólogo”, em que elementos do público são convidados a participar, a confusão entre o que é real e o que é ficção esbate-se a dada altura, porque o espectáculo propõe isso, o texto propõe isso e as pessoas propõem-se a isso. Não tem sido um público teatral, é muito público que não vai ao teatro, que não têm muitas ideias pré-concebidas. Quando se entregam, entrega é total. Ou parece total.” Esta empatia e entrosamento devem-se, segundo o actor, à “confusão de ser a minha história, de ser o Ivo, de falar sobre o que aconteceu para que tentem aprender com isso. Depois fala-se de arquétipos. O primeiro cão, o primeiro namorado, o primeiro casamento, o primeiro divórcio.”
Todas as coisas maravilhosas não é um espectáculo “açucarado, não nos diz que vai ficar tudo bem”. São quase duas horas bastante “mais exigentes para quem vê do que para quem faz, um espectáculo que não tem moralismo, que levanta dúvidas que até são um bocadinho assustadoras.” Num outro contexto mundial, sem pandemia, Ivo Canelas levaria o monólogo a países dos PALOP, o que traria algumas surpresas, ou não, à forma de interacção que a própria peça exige. Mesmo em Portugal, Ivo consegue ver diferenças na forma de interacção do público, entre norte, sul e interior. Se mais para sul “somos mais abertos, estamos mais disponíveis à partida, mas depois não vamos por ali fora”, no norte, a fortaleza emocional e quase impenetrável tende a desabar com a mesma força com que é erguida. “No norte,” diz, “os homens têm aquela cultura de ‘não falo e não me emociono’, mas quando se emocionam, é estonteante. Sentes que é um dique que esteve preso durante não sei quantos anos e, de repente, eles nunca pensaram que aquilo pudesse sair. E depois vê-los a limpar as lágrimas a dizer ‘nunca pensei, nunca pensei, não sou desses’. Há uma diferença muito grande, especialmente nos homens, nas mulheres não. No Porto tive as melhores interrupções de espetáculo de senhoras sozinhas a dizer ‘desculpe lá, tenho dizer uma coisa’, mas a acreditar na realidade proposta.”
Depois de um período de confinamento pesado “em que vários caíram pelo caminho”, há uma certa curiosidade para saber como as pessoas irão agora reagir ao texto apresentado, especialmente por “estarmos todos bastante mais sensíveis. Dar um abraço, que ainda no ano passado era algo banal, ganhou uma dimensão emocional”. Defensor e atento desde sempre à saúde mental (são várias as causas que Ivo Canelas apoia), Ivo assume que lida “com a tristeza naturalmente, não tenho de estar sempre bem e não estou.” Para o actor, é vital “não ter medo da tristeza, porque, se não tiveres medo da tristeza, quando vier a cena fixe, ris-te com mais mérito, mas tens mais noção de onde estiveste. Mais fascinante é quando as coisas se cruzam, quando te estás a rir e és apanhado pela tua própria moralidade e pensas ‘se calhar não me devia estar a rir’, ou ao contrário, quando te estás a emocionar com algo e de repente há uma coisa ali no meio e ainda estás a chorar e já estás a rir ao mesmo tempo”. Para o actor, “rir para não chorar é sempre o remédio. As pessoas que conseguem, nos momentos mais desesperados, desatar a rir, são aquelas que sobrevivem.” Reconhecer estados de espírito na arte pode ser, segundo Ivo, uma catarse. “A arte em geral será sempre catarse, não tem de vir de uma experiência directa disto ou daquilo. Quando acordas de manhã e trabalhas em artes, pensas ‘Como é que eu estou hoje?’ e se estiveres triste é com isso que trabalhas e nesse sentido é catártico. Se um artista ou um entertainer for sensível ao que está a sentir, seja a fazer o que for, é com isso que trabalha.”
A realidade proposta pela ficção e a realidade de cada um são díspares, mas podem cruzar-se também em muitos pontos. Ainda há dias, Ivo Canelas viu a “uma curta no Indie Lisboa, nomeada pela Amnistia Internacional, que é basicamente de cinco ou seis pessoas a levar com bombas em cima e os miúdos estão a tirar selfies.” O imediatismo, a velocidade da comunicação e uma certa necessidade de validação são as consequências de uma sociedade de primeiro mundo, onde, como dizia Louis CK, tudo é fantástico e ninguém está feliz. Ivo acrescenta que “é um problema de primeiro mundo, é um problema de homem de raça branca de primeiro mundo. Como é que não havemos de estar todos – numa sociedade de primeiro mundo – muito instáveis? Mal a internet desligou durante um dia, e contra mim falo, estava tudo a ressacar. ‘Como é que alguém sabe que eu existo se não estou a pôr fotos no Instagram?’ Estamos agarrados a coisas completamente supérfluas. Agora se desligássemos tudo, precisaríamos dos sete dias só para conseguir limpar o cérebro.” Na maior parte do tempo, para Ivo o “Instagram é curioso, gosto muito de publicar coisas feias no Instagram”, mas reconhece que, exceptuando trabalho, quando publica fotos de rosto é quando quer “beijinhos e likes. O Instagram não é o interior da tua casa, o Instagram é a tua varanda, não é quando te levantas da cama todo estremunhado.”
Se o confinamento nos afastou a todos, também trouxe dificuldades imensamente acrescidas para quem trabalha nas artes. A precariedade veio ao de cima mesmo no sector da cultura “que tem números expressivos no produto interno bruto, só pensando no modelo económico.” A pandemia veio “não só para os artistas, mas para os técnicos também, revelar a fragilidade de todo um sistema em que a malta não se aguenta dois meses.” Pensando em modelos culturais, Ivo questiona “o interesse de andarmos cheios de saúde, se não há nada para fazer ou para ver. E acho que a pandemia veio mostrar a uma série de pessoas que não tinham a dimensão da importância que é ir ao teatro, ir ao cinema, ver uma exposição. Acho que muitas pessoas viram que fazia mesmo falta sair de casa para ver ou fazer qualquer coisa.”
Esta saudade de ter “coisas para ver” repercute-se nos teatros, que têm tido bastante procura neste período pós-confinamento. A necessidade da experiência e do espaço poderá, segundo o actor, levar muitas pessoas ao cinema, ainda que este “tenha este lado traiçoeiro de experiência encaixotada, as pessoas podem ter essa experiência em casa, mas a sala escura continua a ser algo semelhante aos gregos nas suas reuniões.” É neste campo que as plataformas de streaming têm ganhado adeptos e podem até roubar público ao cinema. Mas também são uma oportunidade porque “permitem aumentar a produção local, com interesse nas tuas próprias histórias. As nossas próprias histórias, por mais de nicho que possam ser, até quanto mais específicas forem, mais interessantes serão porque estás a ver a realidade de outro país retratada e pensas ‘uau, é assim que eles fazem isto’”. São várias as produções nacionais que se encontram agora nas plataformas de streaming, nomeadamente a série Sul, que pode agora ser vista na HBO, e na qual Ivo Canelas interpreta um pastor/agiota e que “é resultado de montes de atores talentosos, de um argumento muito sólido e de um realizador com cojones que deu muito espaço para experimentar.”
Houve, nos últimos anos, produções nacionais que vieram demonstrar a solidez e o talento que existem na produção nacional. Se Sul é um exemplo, para Ivo a série Sara (Marco Martins/ Bruno Nogueira) é o epítome da qualidade da produção que se faz no nosso país. Para o actor, “Sara é um registo onde ris e choras, são cenas mágicas, doidas, irreais com cenas altamente realistas. Está a um nível de qualquer outra série que eu tenha visto e acho que subiu a fasquia em Portugal. Deu-se um grande salto de complexidade narrativa de complexidade de representação, visualmente é lindíssimo, sonoramente é lindíssimo. Precisas de ter sensibilidade e conhecimento. É muito representativa de quem nós somos, tem a nossa energia pesada, tem uma loucura que também é nossa, depois o universo da TV tem muita graça e acho que é mais universal. Vai ser, de alguma forma, uma escola. E os realizadores poderão ter como referência. E, para mim, estes produtos que não sejam para massas vão tocar em alguém que depois os vai aplicar no trabalho que vier a fazer.”
A sensibilidade e a proximidade, com quaisquer que sejam as barreiras, são elementares e basilares para uma experiência artística, para uma experiência entre artista e público, num vai-e-vem de emoções, um arraial de aprendizagem mútua. O mesmo se repercute na música e na sua vivência. Ivo Canelas é, desde há muito, fã de Nick Cave, que espera ver no próximo ano em Portugal. Nick Cave tem, para Ivo, “sensibilidade artística e a propensão para o abismo”. Os Red Hand Files que o Nick Cave alimenta numa base muito regular, são, para o actor, uma fonte de sabedoria e de proximidade – “sigo as cartas dele quase a contar os dias para quando vir a próxima, porque há ali uma sabedoria que tem de ser bebida. Tenho aprendido coisas incríveis. Não há carta nenhuma que não seja pertinente, as considerações que ele faz sobre criação artística, sobre a morte, sobre a vida, sobre a brevidade de tudo isto, sobre a religião, é altamente tocante. E sempre acabando com Love, Nick.”
Todas as coisas maravilhosas estará em cena no Barreiro (já esgotado), no Estúdio Time Out em Lisboa (pelo menos até 23/10, bilhetes aqui) e no Porto (bilhetes aqui). Haverá ainda uma sessão especial no dia 28 de Setembro para os profissionais de saúde. Com as devidas restrições de público, com as mais apertadas regras de segurança, não será possível terminar com um abraço ao Ivo Canelas, mas todas as sessões terminarão sempre, implicitamente ou não, com um “Com amor, Ivo”.
Este texto foi terminado muitos dias depois da conversa de quase 2 horas que tive com o Ivo Canelas. No mesmo dia em que termino, Nick Cave lançou uma nova carta que contém: “I feel that if I stay true to myself and follow my intuitions, if I surrender control of life’s outcomes, things tend to work out okay. (…) Each answer I write seems to be an act of surrender, but at the same time a kind of armouring up — vulnerability as a form of protection.” Creio que também é isto, ou é isto, que Ivo Canelas quer dizer, tanto na peça “Todas as coisas maravilhosas” como na vida.