Entrevista. Jia Zhang-ke: “O mais importante foi encontrar a lógica feminina”
Breve encontro com o cineasta chinês Jia Zhang-ke em Cannes, em que o filme As Cinzas Mais Puras foi exibido na Seleção Oficial. Oportunidade para falar da incursão no universo jianghu, das suas implicações estéticas mas também do conteúdo circular da sua obra e do desenvolvimento da China. E, claro, dos Village People.
Este filme parece fascinado pela perda de uma memória coletiva. Como é que o Jia encara essa China que já não existe?
Este é um conceito particular do jianghu (o universo da cultura de artes marciais) que foi muito importante na cultura chinesa ao longo da história. O jianghu é algo que me fascina e há muito tempo que queria fazer um filme sobre isso.
E porquê?
Porque estas são pessoas que vivem na margem e querem proteger-se. Desse modo são levados a formar essa irmandade, com valores e regras próprias. Isso é algo que vemos também nos filmes e literatura de tríades tão populares dos anos 80 em Hong Kong. A ideia é encarar esta subcultura, reexaminá-la e desafiar o seu lado mais mainstream. Menciona a sociedade contemporânea e essa perda de memória coletiva. Pois bem, eu quis usar este tipo de filme para falar do que se perdeu, mesmo dentro da cultura jianghu.
No entanto esse é também um conceito de algo que se renova, certo? Talvez até com elementos mais simples.
Isso é algo que faz parte da cultura atual, mas também já se transformou em algo que deve ser o que o jianghu deveria ser ou deveria ter sido no passado. Isso tema ver com os laços que nunca se quebram, a irmandade ou as pessoas que nos rodeiam, a lealdade e amizade. No entanto, esse núcleo de valores foi substituído agora pelas ordens económico sociais da nova era. Algo que pode ser visto através da personagem do Sr. Bing. Ele começa por o líder de uma seita numa pequena cidade, como forma de subir na vida. Ironicamente, a única pessoa que mantém esses valores e códigos é a personagem feminina, Zhao Tao.
Mencionou os filmes das tríades. Pareceu-me que a certa altura que estavam a ver o filme The Killer do John Woo (1989). Foi um filme e um realizador que o influenciou também?
Na verdade, o filme era o Tragic Hero (1987) A realidade chinesa da cultura jianghu desapareceu um pouco em 1949 mas voltou de novo depois da reforma. Mas essa forma de jianghu é diferente porque perdeu a sua raiz. Por isso quando formam esta irmandade recebem influências de todo esse cinema dos anos 80, em particular os filmes do John Woo e Johnny To. Foi assim que aprenderam esta filosofia jianghu, esses códigos de conduta. A lealdade, os códigos de conduta, os rituais. Neste filme usei as músicas do filme The Killer e as imagens de Tragic Hero.
O brasileiro Walter Salles fez um documentário sobre o Jia (Jia Zhank-ke by Walter Salles, de 2014). Nesse filme refere que o pai sempre queria viajar mas não podia. No entanto algo que sucede muito nos seus filmes, em que as personagens estão sempre em viajem de um lado para o outro. De onde vem essa deriva?
Essa mobilidade reflete tudo aquilo que se passou na China. As pessoas não tinham possibilidade de viajar. Talvez devido à pobreza, mas também porque era necessário identificação e diversas aprovações para entrar em regiões diferentes. Isso dificultava muito a mobilidade da população. Era apenas algo que encaravam como um sonho a concretizar. Algo que é um elemento crucial dos meus filmes. É através dos movimentos destas pessoas que vemos outras partes do mundo e elas próprias alargam os seus horizontes. É através destas personagens que acabamos por perceber como o mundo é tão grande e precioso. Ao mesmo tempo a personagem da Zhao sente-se insignificante e pequena, mas também forte enquanto personagem feminina. Esta é uma jornada de divagação, uma forma de nos encontrarmos a nós próprios enquanto seres humanos. Esse é um elemento crucial dos meus filmes.
A presença de Zhao Tao parece incontornável nos seus filmes. Como foi que trabalharam este período tão longo?
É claro que este filme oferece este espaço ao longo de dezassete anos. Portanto, ela vai dos seus 20 anos ate aos 40. Como esse espaço de tempo era tão vasto queria usar uma atriz que tivesse esse treino. Por a Zhao Tao ter interpretado de forma tão convincente uma personagem semelhante em Se as Montanhas Se Afastam, acreditei que conseguiria assumir este desafio particular. Mas há aqui uma pequena questão: é que a Zhao Tao não tinha qualquer conhecimento do jianghu por isso não tem essas referências do ponto de vista pessoal. Por isso teve de fazer uma longa preparação e pesquisa para obter referências no sentido de interpretar uma personagem feminina, de que forma reagiria, o que faria, etc. Até que a certa altura disse: “já não preciso de mais informação. Tenho o que preciso!”
Parece-me que um dos elementos mais importantes do filme é a afirmação de um lado feminino num tema eminentemente masculino.
Para mim, o mais importante foi encontrar esse lado feminino e essa lógica feminina para esta personagem. Por isso fiquei tão impressionado com esse momento porque percebi que tinha de trabalhar bem esta personagem feminina num género eminentemente masculino. O filme começa dentro de um género de tríades mas no final já não se trata disso e antes desta personagem feminina, como ela vê o mundo e ela própria se ajusta a ele.
Este filme parece resumir diversos aspetos dos seus filmes anteriores. Temos o mundo do crime de A Touch of Sin, temos a barragem das Três Gargantas. Como definira este título na sua filmografia?
Na verdade, esta personagem inclui dois filmes diferentes. Um é Unknown Pleasures, de 2002, e o outro é Still Life – Natureza Morta em 2006. Por acaso, a Zhao Tao era atriz nestes dois filmes. E quando comecei pensar em fazer um filem sobre jianghu fui rever esse material antigo, incluindo esses dois filmes e percebi como estas duas personagens podiam tornar-se numa só neste filme. Achei que era uma ideia incrível de criar um filme a partir de dois projetos antigos. Foi aí que decidi usar o mesmo guarda-roupa, mas também o mesmo estilo. Acho que a Zao assume os estilos dessas personagens. Quanto à barragem das Três Gargantas (Three Gorges) é uma forma de regressar aos temas que quero continuar a tratar, sobretudo nesse espaço estético que me é muito particular. Assim ligo esses elementos.
Pode referir-se ao uso da música em particular aos Village People (YMCA)?
Na verdade, em 2001, tínhamos muito pouca variedade de músicas para os jovens se divertirem. Havia sobretudo duas músicas que tocavam quase sempre, era o Go West e o YMCA. Como já tinha usado o Go West em Quando as Montanhas se Afastam, decidi usar o YMCE neste filme. Escolhi esta sala em particular porque era onde os jovens iam nessa altura para se divertirem, mas também a malta jianghu para tratar dos seus negócios.
Apesar de se conhecido como um realizador independente, este é o seu filme com um orçamento mais elevado. Ainda se considera um realizador independente?
Claro que me considero um realizador independente. E acho que não devemos limitar a definição de realizador independente pelo volume do orçamento. A meu ver é mais importante perceber se mantemos esse espírito e a linguagem cinematográfica, o nosso próprio vocabulário e observar a sociedade. Para mim são essas coisas que me definem como um realizador independente. Em termos de orçamento, concordo que é o mais avultado de sempre, mas se compararmos este orçamento com outras produções que decorrem na China atualmente verá como é um orçamento bastante inferior.
Entrevista de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt