Entrevista. Jordan Rakei: “Quero inspirar as pessoas a olharem para dentro de si e a perceberem com o que estão a lidar”

por Lucas Brandão,    23 Junho, 2022
Entrevista. Jordan Rakei: “Quero inspirar as pessoas a olharem para dentro de si e a perceberem com o que estão a lidar”
Jordan Rakei / Fotografia de Joseph Bishop
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Na sua segunda vinda a Portugal, por força do EDP Cool Jazz (tinha cá estado em 2018), o neozelandês Jordan Rakei traz uma bagagem musical bem mais apetrechada. Então muito vinculado ao jazz, ao R&B e às fragrâncias de hip-hop com as quais polvilhava o seu trabalho, o músico foi dando outros ares da sua graça ao longo destes quatro anos. Foi mais nostálgico em “Origin” (2019), mais complexo em “What We Call Life” (2021) e ainda mais ritmado agora no mais recente EP, “Bruises” (2022). Entre estes anos, ainda teve tempo de criar o seu alter-ego eletrónico, Dan Kye (uma truncação do seu nome, JorDAN RaKEI, que se lê “Kye”); para além de, nas suas “Late Night Tales” (2021), ter incluído a própria representante portuguesa na Eurovisão, Maro, quando poucos a conheciam por cá. Não obstante o seu percurso já rico, ainda muitos estão por descobrir um universo musical que continua a ser tão fértil como expansivo.

Como é que nasceu a tua paixão pela música?
Bem, cresci num seio familiar em que a minha mãe cantava imenso pela casa fora e o meu pai também adorava música. De igual forma, tínhamos um vizinho que estava a tentar despachar um piano e nós ficamos com ele e aí foi o início. Tinha cinco anos e já o tocava [risos]; e o meu irmão lá dizia: “está calado!”. Tínhamos os instrumentos em casa e, como já disse, a minha mãe estava sempre a cantar e, apesar de ninguém ser músico, cresci num meio que adorava música.

És neozelandês e passaste a viver em Inglaterra no início dos teus vintes. O que é que achas que essa mudança de país trouxe para a tua vida e para o teu trabalho?
Quando fui para Inglaterra, sabia que ia colaborar muito musicalmente, mas não tinha a sensação de quanta gente vivia em Londres, em especial a fazer música neste mesmo mundo que eu. E faz sentido. Mal cheguei, nas primeiras duas semanas, já tinha trabalhado com o Tom Misch, com o Alfa Mist, até com o Yussef Dayes, na sua antiga banda [United Vibrations], com o Oscar Jerome, com o Joe Armon-Jones. Londres está repleta destes artistas e eu não sabia. Havia chegado e, numa questão de dois meses, já tinha colaborado com, para aí, uns cinquenta. Vê-los, agora, em meu redor e a crescer, cada um à sua maneira, é incrível. O Yussef, por exemplo, está ao rubro.

“A longo prazo quero ser um artista pouco ortodoxo e, para isso, tenho algumas aspirações. Quero escrever música para cinema — talvez uma comédia [risos] —, quero compor na íntegra para uma produção teatral, e, com isto, entenda-se teatro in situ, no momento.”

De que forma as tuas raízes maori [o povo nativo da Nova Zelândia], do lado do teu pai, influenciaram a tua personalidade artística?
O meu pai é das Ilhas Cook, um arquipélago no Pacífico perto da Nova Zelândia. Lá, o reggae é um género musical muito ouvido, é quase fundacional e foi fundacional para o meu pai. Foi no reggae que também comecei, mesmo com os ritmos que se ouve no bass and drums. Continua a ser importante para mim e, sim, teve influência.

A tua música começou por se fixar muito numa vibe de R&B e de hip-hop, misturada com toques de um jazz mais contemporâneo. Depois de já teres alguns álbuns gravados, e com o teu novo EP [“Bruises”], como é que a descreverias hoje? 
A transformação é, basicamente, desde o início, quando lancei o meu primeiro EP, em 2013 [“Franklin’s Room”], em que defini que cada projeto tinha de soar diferente do seu anterior. Isto porque quis puxar por mim, criativamente. Assim, como disseste, comecei numa vibe mais soulful, com o hip-hop, e depois, mesmo no meu segundo álbum [“Wallflower”, de 2017], derivei um pouco mais para a música eletrónica; no terceiro, o “Origin” (2019), mais animado e contemporâneo, ainda com o soul, e agora no último [“What We Call Life”], enquanto estava a compor, queria fazer algo mesmo muito diferente do que já tinha feito. Por isso é que é mais abstrato, eletrónico, com o recurso a percussão, com sons estranhos, com o uso, também, de sintetizadores. Aventurei-me [risos]. Foi muito divertido, porque é algo que nunca tinha feito outrora e eu cresci a ouvir artistas, como o D’Angelo e o Stevie Wonder — é aí que bebo muito do soul —, mas também adoro a Bjork e os Radiohead. Foi aí que entrei mais pela eletrónica e pela música progressiva. É esta a jornada, não sei o que irei fazer a seguir.

Disponibilizas, no teu Patreon, uma série de possibilidades dos teus fãs interagirem contigo, desde conhecerem de perto a composição das tuas músicas até colocarem-te questões diretamente e assistirem a acústicos em exclusivo? Qual tem sido o feedback?
Tem sido incrível. É algo tão bom e apercebi-me agora, depois de ter criado o Patreon, de há dois anos para cá, adoro ensinar pessoas, a dar dicas. Quando comecei, não tinha tutoriais online ou quem ensinasse e tive de aprender tudo sozinho. Há imensa gente criativa no mundo, mas que depois esbarram na parede informática, já que não sabem usar o computador ou gravar analogicamente. Se eu conseguir ensinar os fundamentos, em especial no computador, qualquer um pode florescer criativamente, superando a tal barreira. É bom dar as ferramentas às pessoas para gravar melhor e mais rapidamente e tem sido incrível.

Ainda repescando o teu anterior álbum, “What We Call Life”, é um dos mais introspetivos que produziste e acompanha o teu desenvolvimento mental. Como foi esse caminho?
Definitivamente, acho que, quando a pandemia surgiu em março de 2020, e tinha acabado de gravar alguma música para o álbum, mas não tinha escrito as letras, essa pandemia, como a todos, levou-me a ficar fechado em casa, sozinho, sem ver os amigos. A minha mente começou a correr e a percorrer todo o meu passado, a infância, a minha relação e outras coisas, como a relação com os meus irmãos, com os meus pais e comecei a escrever sobre isso, a falar de alguns temas que descobri nessa altura. Liricamente, podes chamá-lo introspetivo e mais triste, porque enfrenta as coisas mais negras da minha mente. Foi um tempo de reflexão, porque o coronavírus assolou o mundo e toda a gente atravessou uma fase menos positiva.

Tens algum ritual quando fazes música ou quando sobes ao palco?
Sim, tenho, embora sejam um bocadinho entediantes. Faço aquecimento à voz por uns quinze minutos, quando faltam vinte para subir ao palco. De vez em quando, tento, também, fazer uma pequena meditação para, por exemplo, em Lisboa, situar-me: “estou em Lisboa, estou em Portugal”. Trazer-me para o momento para não estar no palco e num mundo distinto, mas aqui e agora. Faço-o bastante, porque, apesar de tudo, está um milhar de pessoas lá fora e é fácil enervares-te. E torno-me, tipo, “ok, acalma-te e relaxa” [risos]. É um break a leg para mim mesmo.

Tens alguma referência fora da música, seja no mundo artístico ou fora dele?
Gente que me inspira? [Sim]. É engraçado, porque me considero uma pessoa feliz e a música que ouço é uma mistura de feel good e um pouco menos bem; mas, visualmente, gosto de arte visual mais sinistra e funesta. Adoro pintura, especialmente o surrealismo, porque gosto do que as pessoas fazem que foge à norma. A mesma coisa para a música, adoro a que foge daquilo que já existe. Por exemplo, dentro do folk, adoro o folk alternativo, porque há ali algo que é diferente; a mesma coisa para o k-pop, que não é hip-hop puro. Adoro gente que faça essas coisas distintas. Existe um poeta chamado Saul Williams, que é mesmo estranho [risos], e não é um poeta convencional. É alguém em quem me inspirei liricamente, porque usa metáforas bem abstratas, fala do mundo e do universo. É uma inspiração, assim como essa arte surrealista.

Desenvolveste um alter-ego com traços bem mais eletrónicos e clubby, de seu nome Dan Kye. O que é que te deu para o criares?
Nessa altura — é engraçado agora, porque ainda ando a fazer música eletrónica como o Jordan —, eu andava a fazer música soul e queria fazer dance music. No entanto, não queria confundir os meus fãs e, como tal, criei este projeto paralelo e as primeiras músicas que compus — que estão no meu primeiro EP [“Joy, Ease, Lightness”, de 2016] — enviei-as para o meu amigo da secção britânica da editora que o lançou [Rhythm Section International] e ele pediu-me para fazer mais duas para lançar na forma desse EP. Eu, na altura, não sabia o que fazer, mas foi aí que nasceu o Dan Kye. De uma certa forma, adoro o Dan Kye da mesma forma que adoro a música do Jordan, a minha própria [risos]. Adoro EDM [electronic dance music, ou música eletrónica] e, provavelmente, será o próximo projeto que farei, um novo álbum do Dan Kye.

Jordan Rakei / Fotografia de Joseph Bishop

Já colaboraste com bastantes artistas contemporâneos de grande qualidade, como o Tom Misch, o FKJ, o Bonobo ou os Disclosure, entre muitos outros. Com quem gostarias de colaborar no futuro?
É uma boa questão. Similar aos temas que explorei e à alteração que fiz da minha música, adorava fazer algo como o Pharrell [Williams] fez em 2003, quando andou a produzir álbuns de popstars, como o do Justin Timberlake [“Justified”, de 2002], com aquele som clássico incrível. Aí, ele conseguiu pôr a sua marca criativa. Mas gostava de colaborar com o Frank Ocean, seria brutal ou… nem sei, o Harry Styles? [risos]. Mas sim, adorava produzir álbuns de grandes estrelas, isso era porreiro.

Tens alguma mensagem ou causa social que queiras destacar com a projeção que tens conquistado com a tua música?
Aquilo que tento inspirar os outros a fazer é com que falem abertamente das suas dificuldades com outras pessoas e desempacotem o seu interior, porque nem nos apercebemos do que outros passam por algo. De igual forma, que se tornem mais empáticos na forma como veem o mundo, em vez de lutarem internamente com as suas adversidades. É isso que quero com a música que faço e com as letras que escrevo: inspirar as pessoas a olharem para dentro de si e a perceberem com o que estão a lidar.

Vens cá ao EDP Cool Jazz, mas já cá estiveste neste evento há 4 anos. O que conheces de Portugal e da sua música? (fora a Maro, que apresentaste nos teus “Late Night Tales”)?
Adoro a Maro! Conheci-a há uns anos, porque ela tocava na banda do Jacob Collier e, como referido, foi uma das minhas “Late Night Tales”. Mas o que eu adoro em Portugal é, sempre que eu vou aí, sente-se uma energia diferente, incrível, um bocadinho similar à Austrália, onde toda a gente está feliz, já que o tempo é tão bom, e onde estão sempre dispostas a boa música. Quando aí fui, o público foi fantástico, porque é tão feliz e eu fui feliz aí. Às vezes, metes-te num beco [risos] e, no resto da Europa, a gente é fria, mas, em Lisboa, é mais alto astral. Quando toquei aí, no EDP Cool Jazz, há quatro anos, lembro-me de ver toda a gente sentada, num ambiente bonito e incrível, num espaço amplo… foi tão bom, que mal posso esperar para voltar. Mas não, não conheço muita música daí.

Jordan Rakei / Fotografia de Joseph Bishop

Existe alguma outra cultura em específico que te puxe ou que te encante?
Uma das coisas que gostaria de fazer era, precisamente, ir às Ilhas Cook, de onde o meu pai vem, e colaborar com os músicos locais. Fazer lá um álbum, como Dan Kye ou com umas músicas do Jordan. Um dos meus produtores de dubstep preferidos, chamado Mala [parte, ao lado de Coki, da dupla Digital Mystikz], que foi a Cuba e gravou com músicos de jazz locais. O resultado final [“Mala in Cuba”, de 2012] é incrível, repleto de energia. Gostava de fazer a mesma coisa nas origens do meu pai e de conectar-me com essa cultura dele.

O que é que queres fazer com a tua música no futuro?
Sinto que quero mudar. Não sei o que vem a seguir, mas, depois de ter lançado o “What We Call Life”, que foi um álbum mesmo muito cansativo, porque tem tantas camadas e é tão intenso, disse para mim mesmo: “quero que o meu próximo seja bonito e pacífico, calmo e leve de se ouvir, relaxante”. É o que estou a imaginar agora, compor um disco que seja agradável e bom de se ouvir. O meu anterior tem canções com muita trepidação e muito abstratas, de certa forma, duras, o que adoro, mas quero que seja relaxante e bom. A longo prazo quero ser um artista pouco ortodoxo e, para isso, tenho algumas aspirações. Quero escrever música para cinema — talvez uma comédia [risos] —, quero compor na íntegra para uma produção teatral, e, com isto, entenda-se teatro in situ, no momento. Posso continuar a lançar álbuns, mas quero desafiar-me sempre mais e fazer algo diferente. Estes são os meus sonhos, talvez mudar aqui e ali, mesmo com instrumentos novos, mas estou e estarei feliz com o que acontecer daqui em diante.

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