Entrevista. José Carlos Mota: “É importante transformar uma aula num permanente processo de inquietação, curiosidade e pesquisa”

por Comunidade Cultura e Arte,    23 Fevereiro, 2020
Entrevista. José Carlos Mota: “É importante transformar uma aula num permanente processo de inquietação, curiosidade e pesquisa”
José Carlos Mota / Fotografia de Universidade de Aveiro

José Carlos Mota é professor do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT), e considera que a Universidade de Aveiro atravessou três fases na relação com a comunidade: cooperação com o tecido industrial, relação com as autarquias da região e aproximação às comunidades locais. “A falta de cultura participativa dos portugueses é um ‘mito urbano’”, contesta.

Como define um bom professor? Na sua perspetiva, que caraterísticas deve ter um bom professor?
Não é fácil captar a atenção de um aluno ao longo de uma aula ou de um semestre. Há estudos que mostram que as metodologias ativas de aprendizagem baseadas em demonstrações e questões mantêm os alunos atentos e estimulam o interesse pelas matérias. Pelo contrário, as aulas em formato de palestra tendem a ser menos eficazes. Nesse sentido, é importante procurar transformar uma aula ou uma unidade curricular num permanente processo de inquietação, curiosidade e pesquisa. Para isso, um docente tem de ser um estudioso das matérias, um bom comunicador e alguém disponível para acompanhar o aluno nesse caminho longo e difícil da aquisição e sedimentação de conhecimentos.

O que mais o fascina no ensino e na função docente?
A vida académica tem desvalorizado a função docente em detrimento de outras como a investigação, por exemplo. Considero que a função docente é a mais nobre das atividades académicas pois é aquela que permite ajudar um aluno a crescer como pessoa, como profissional e como cidadão. Por outro lado, ajuda-nos também a nós docentes a evoluir e a apurar a clareza e a argumentação.

Como qualifica a formação que é dada aos estudantes no(s) curso(s) a que está (esteve) ligado?
Dou aulas há dezasseis anos na UA, sobretudo a estudantes da Licenciatura em Administração Pública e do Mestrado em Planeamento Regional e Urbano. São formações de natureza inter e transdisciplinar que procuram combinar os diálogos entre a teoria e prática, centradas numa reflexão crítica sobre a sociedade e o território e com um sentido de forte responsabilidade social e cívica com a comunidade onde nos inserimos.

Se lhe fosse pedido um conselho dirigido aos alunos, que conselho daria?
Sejam muito exigentes com os docentes, com os colegas, com a universidade e claro também convosco. Somos, infelizmente, uma sociedade pouco exigente.

Houve alguma turma/grupo de alunos/aluno que mais o tivesse marcado? Porquê?
Todas os alunos e turmas marcam. A apresentação dos trabalhos finais é sempre um momento importante. Ao contrário do que os alunos julgam, aquele momento é um enorme exercício de avaliação dos docentes. É ali que percebemos se conseguimos ou não fazer um bom trabalho ao longo do semestre.

Pode contar-nos um episódio curioso que se tenha passado em contexto de sala de aula ou com estudantes (constrangimento/situação agradável)?
Há um momento curioso que deu origem a uma causa que tenho de recuperar. Certo dia, uma aluna Erasmus queixou-se, no início de uma aula, dos colegas portugueses. Dizia ela que eles nunca chegavam a horas. Marcavam uma reunião e ou não apareciam ou chegavam atrasados e raramente davam satisfações. Isso incomodou-me e resolvi lançar uma campanha cívica chamada tolerância zero à falta de pontualidade. Considero que este é um dos problemas mais graves da nossa vida coletiva e um dos responsáveis pela nossa baixa produtividade. Um dia destes volto à carga com a campanha.

Tem centrado o seu trabalho de investigação nas estratégias de envolvimento dos cidadãos no processo de planeamento, ou em como tornar a cidade um espaço ainda mais dos cidadãos… Provavelmente, mais de 40 anos de ditadura em Portugal ainda estão a marcar a sociedade. Mesmo assim, haverá bons exemplos.
A falta de cultura participativa dos portugueses é um “mito urbano”. O que acontece é que tem havido poucos estímulos consequentes à participação e os que existem ocorrem quando os cidadãos pouco podem acrescentar. Nessas condições, até acho muito bem que as pessoas não participem. No sentido inverso, quando se usa as metodologias adequadas e as pessoas sentem que o seu contributo é útil, a participação acontece com uma intensidade e riqueza mágicas. E isso ocorre em territórios e condições tão diversas como Aveiro (VivobairroAveiro SoupLab Cívico SantiagoSerras do PortoLousada ou Maia). Podemos estar descansados, os portugueses não possuem nenhum problema genético que os debilite para a participação cívica.

Como poderão as redes sociais facilitar o caminho para uma sociedade mais participativa?
As redes sociais que fazem a diferença não são as virtuais, são as de proximidade. O que falta é criar condições (espaços físicos, momentos temporais e oportunidades temáticas) para despoletar a energia cívica adormecida. As redes virtuais podem dar uma ajuda para divulgar e difundir oportunidades, para levar a mensagem e para criar o efeito “bola de neve”. Mas não são elas que fazem a ignição. São os diálogos presenciais entre pessoas e as causas que as movem que podem fazer a diferença.

Quem se forma na UA, nestas áreas, estará mais preparado para trabalhar em prol de cidades mais vividas e próximas dos cidadãos?
Julgo que sim. Eu diria que a UA tem algumas “bandeiras” e a relação com a comunidade é uma delas, como o prova a sua história. Se na sua origem esteve uma forte cooperação com o tecido industrial, num segundo fôlego ganhou destaque a relação com as autarquias da região. Mais recentemente, “surgiu” uma nova frente de aproximação com as comunidades locais, reforçando o carácter de “universidade cívica”. Há em vários departamentos da UA esse esforço de capacitação dos alunos com as competências de diálogo com a comunidade e de compreensão das suas necessidades e do papel que a ciência pode desempenhar na melhoria das suas vidas. Esse sentido de utilidade social do conhecimento é fundamental.

José Carlos Mota coordenou sessão, com alunos e residentes, sobre a rua de Espinho (bairro de Santiago, Aveiro)

Impressão digital
Traço principal do seu carácter
Inquietação
Ocupação preferida nos tempos livres
Fotografia
O que não dispensa no dia-a-dia
Telemóvel, para desespero da família.
O desejo que ainda está por realizar
Dar a volta ao mundo.

Esta entrevista foi originalmente publicada no site da Universidade de Aveiro.

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