Entrevista. Juho Kuosmanen: “Quando faço filmes centro-me sempre nas personagens e actores”
Compartimento n.º 6, do finlandês Juho Kuosmanen, já em exibição nas nossas salas, oferece muito mais do que uma viagem de comboio pela estepe russa. É um daqueles filmes que ao facilitar uma proximidade com o espectador estabelece ao mesmo tempo um diálogo subtil de intimidade com as personagens. O cinema de Kuosmanen é assim. Aparentemente fácil de modo a permitir essa abertura. E que deixa para trás a motivação narrativa que o move. No caso, a busca de um artefacto, no caso, a pesquisa de gravuras no círculo polar árctico. Talvez seja até essa dimensão ontológica (que nos oferece também essa visão muito mais longínqua do próprio cinema) a segredar-nos para a abertura de todas as possibilidades. Mesmo as mais insólitas, como a de fazer uma viagem com uma pessoa que será o nosso antípoda. E é quando aquilo que é verdadeiramente importante se submete ao mundano e ao efémero, então talvez possa estar a nascer algo mais genuíno. Ou avassalador. É um pouco esse turbilhão que vivemos nesta viagem de Juha Kuosmanen. Foi também essa sensação que tornou inevitável a conversa em Karlovy Vary, na República Chega, bruscamente o verão passado. Pouco depois da premiação de Compartimento n.º 6 com o Grand Prix, em Cannes (ex-aequo com Hero, de Ashgar Farhadi).
O Juho é agora um dos cineastas mais na berra, sobretudo depois do prémio em Cannes. Superou assim da melhor formam o que se costumava apelidar aos músicos, o trauma do segundo disco, isto depois do sucesso do primeiro. No seu caso, o sucesso do segundo filme parecer até ter sido algo fácil. Concorda?
Olhe que não é bem assim. O que pode parecer fácil, levou muito tempo. Ao ver o filme, pode parecer algo simples, mas na verdade, tudo faz parte de um processo muito lento. Por exemplo, eu li o livro há dez anos. E o primeiro esboço que fiz foi há sete ou oito. Num primeiro momento comecei a escrever sozinho, numa altura em que trabalhava ainda em O Dia Mais Feliz na Vida de Oli Maki (2016, vencedor no prémio Um Certain Regard, em Cannes, nesse ano). Está a ver, o processo é longo, mesmo que o livro nos ajude. Há muitas alterações que são feitas, como o local, a idade das personagens. E, claro, deixamos muito de lado, pois os livros são muito maiores.
O que lhe chamou a atenção nessa história para fazer um filme? A ideia da viagem?
Basicamente aquela longa travessia de comboio na Rússia. Gosto muito de comboios. São muito cinemáticos.
Mesmo que a ideia de estranhos que se conhecem num comboio não seja nova, a novidade é mesmo como a sua história é explorada. Até porque não segue a linha, por exemplo, de Antes do Amanhecer (1995)… a ideia de filmar na paisagem russa confere-lhe logo uma nova dimensão. De que forma abordou a adaptação do romance original?
Sim, o filme é uma adaptação do romance da finlandesa Rosa Likson, e a acção desenrola-se na Rússia, em meados dos anos 80, ainda na União Soviética. Entretanto, já numa fase de produção, os meus produtores propuseram argumentistas da Estónia que tinham bons contactos na Rússia. Filmámos em locais diferentes (Murmansk, São Petersburgo e outros) conhecemos locais ótimos e pessoas incríveis.
Compartimento Nº 6 foi filmado durante a pandemia?
Na verdade, a rodagem decorreu mesmo antes. Deixe-me ver, foi em 2020. Na primavera. Quando terminámos a rodagem a fronteira já estava fechada.
Mas tudo começado mais cedo, não?
Sim, tudo começou muito mais cedo.
Imagino que filmar dentro e um comboio não tenha sido fácil. Como superou esse desafio?
Sabe, a maior dificuldade nem foi essa. Para mim, como realizador, e também para o meu diretor de fotografia, as maiores dificuldades foram mesmo do lado da produção. Em particular, como lidar com uma companhia enorme como a RZD (ferroviária russa) para podermos seguir com o nosso próprio comboio.
O vosso próprio comboio?!
Sim, acabámos por conseguir. Algo que que permite um efeito muito diferente e o ambiente. Naturalmente, seguir num comboio com passageiros seria mais complicado. Ou num estúdio, diante de um ecrã verde, não estaria a ver a paisagem e certamente iria afectar a forma como os atores representam e o próprio ambiente no set.
Dessa forma privilegiando a representação e a química. Aliás, o que mais me impressionou foi mesmo o relevo que têm as pequenas coisas que acontecem entre essas duas personagens. Não só no que diz respeito à história, mas também ao poder do filme e às emoções que lá estão.
Pois, isso tem a ver com os dois actores, a Seidi (Haarla) e o Yuriy (Borisov). Como atuam juntos e como alimentam essa amizade e o contacto entre ambos. É que, realmente, não acontece muita coisa. Não há grandes eventos, mas se o espectador estiver dentro daquele compartimento, se aceita tomar essa viagem juntamente com eles, então aquelas pequenas coisas tornam-se reais.
Sim, eu senti muito essa emoção de proximidade. Algo que parecia estar para além da representação. Era mesmo a proximidade a eles que se torna tocante.
Apesar de não ser um filme melodramático, porque tem muitos momentos divertidos, existe um tom melancólico que está em todo o lado e que a Seidi e o Yuriy captaram muito bem.
Onde foi que conheceu o Yuriy? Ele é tremendo.
Por acaso foi aqui em Karlovy Vary que o conheci. Descobri-o em 2919, com o filme Bull (Byk, de Boris Akopov) na secção East of the West. Já tínhamos a Sadie, mas estávamos a procura de um tipo mais velho. Depois de ter visto aqui o Bull quis falar com ele. Ele foi logo incrível, bem como no casting com a Sadie. O que me fez pensar que tinha ali o filme, com eles os dois. Quando faço filmes centro-me sempre nas personagens e actores. Como sucedeu com o Oli Maki. Sem o Yuriy e a Saidie, e a química deles, não teria filme. Foi isso mesmo que aconteceu aqui. Se não existe nada entre eles não haverá filme. Foi um momento crucial. São ambos incríveis. E o Yurik esta agora a ficar uma estrela. Teve dois filmes em Cannes e dois filmes em Veneza. E um em Locarno.
Já agora, em relação à Dinara Drukarova (a namorada da personagem de Seidi). Eu fiquei espantado porque a tinha conhecido num festival russo, inevitavelmente, numa festa russa semelhante à que vemos no filme. Foi insólito porque não conhecia a carreira dela. Como foi que ela entrou a bordo?
(risos) Temos uma longa história. Conheci-a em Cannes em 2010. Ela estava num júri e eu estava com um filme de estudante The Paiting Sellers. Conhecemo-nos na noite dos prémios e mantivemo-nos em contacto via Facebook. Quando fiz o casting ela foi a primeira pessoa em que pensei.
Voltamos a Cannes apenas para recordar aquela noite memorável, não só por aquela gaffe histórica do Spike Lee, mas também porque, provavelmente, já suspeitava que iria ganhar algum prémio, não? Como foi que se passou?
Na verdade, ficámos com essa impressão de que poderíamos ganhar alguma coisa, pois deram-nos tantos bilhetes para a cerimónia dos prémios. Pensámos que era um bom sinal, mas quando a Palma de Ouro foi anunciada logo no início (quando Spike Lee anuncia que a Palma de Ouro iria para “Titane”) ficámos a pensar que prémio poderia ser.
Acreditou que poderia ser uma piada?
Sim, pensei nisso, mas também achei que seria uma piada um pouco cruel. Estava mais inclinado a acreditar num prémio de interpretação para o Yuriy ou para a Seidi. Entretanto, os prémios foram sendo atribuídos e quando já só restava o Grand Prix. Entretanto, anunciam o Asghar Farhadi, e pensámos que não iriamos sequer ganhar nenhum prémio. Depois anunciam o nosso nome e, de repente, vejo-me no palco ao lado do Farhadi. Foi uma experiência alucinante.
Falou no Farhadi. Acha que num festival como Cannes é possível estabelecer com outros cineastas esse tipo de camaradagem, troca de ideias…
Sim, foi incrível. Mesmo em Cannes onde as estrelas estão separadas de um nível mais baixo. Mas quando estamos lá dentro é muito fácil estar em contacto com outros criadores. Podem ser pessoas que admiramos, mas já não são nossos ídolos, tornam-se mais humanos. Gostei muito de conhecer o Farhadi (Um Herói, Grande Prémio em Cannes, 2021, e o Apichatpong (Memoria, Prémio do Júri, Cannes 2021). E estar no palco com ambos foi fenomenal. É um sentimento estranho, ao mesmo tempo sentimo-nos fascinados, mas não deixa de ser algo normal.