Entrevista. Kalaf Epalanga: “A Kizomba revolucionou a forma como a cultura é consumida”

por Margarida Valença,    24 Abril, 2024
Entrevista. Kalaf Epalanga: “A Kizomba revolucionou a forma como a cultura é consumida”
Kalaf Epalanga / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Kalaf Epalanga é escritor, músico, produtor. Autor dos livros “Também os Brancos sabem dançar”, “O angolano que comprou Lisboa” e “A minha pátria é língua pretuguesa”, tem marcado o seu percurso por ser um agitador cultural, mexendo as águas, criando novas ondas, novas perguntas, novos caminhos. Foi membro dos Buraka Som Sistema, banda afro-punk responsável por levar a sonoridade de uma Lisboa misturada e mexida a vários lugares do mundo. Quando se fala hoje numa Nova Lisboa, música escrita pelo próprio e cantada por Dino D’Santiago, Kalaf Epalanga é um nome que de forma discreta mas importante, tem marcado o tom de sonoridades, discursos e narrativas sobre uma cidade que é filha de vários tons e culturas, tendo trabalhado perto de artistas como Ana Moura, Slow J ou Toty Sa’Med. Foi na baixa lisboeta que Kalaf Epalanga nos acolheu, numa conversa inicial que começou sobre um quadro – “O Chafariz d’El-Rey”, pintura que retrata uma Lisboa que remonta ao século XVI, onde se pode ver, entre as várias pessoas que são retratadas no quadro, pessoas negras, num espelho daquela que é a presença negra antiga que por cá sempre habitou. Foi sobre esta mesma cidade, a ideia e os paradoxos da afirmação daquilo a que se tem chamado uma Nova Lisboa, a kizomba, a lusofonia e a relação de Portugal com a sua história que nos debruçamos nesta entrevista.

Tens sido uma pessoa bastante importante na afirmação deste fenómeno a que se tem chamado “Nova Lisboa”. Qual é a tua visão sobre ela e o que esta designação significa para ti?
É bastante interessante, porque eu fui um dos autores dessa canção do Dino D’Santiago. Geralmente quando a gente escreve uma coisa, não temos ideia de como é que vai ser interpretada. Longe de imaginarmos que essa canção iria cunhar uma ideia, uma estética, um posicionamento social. De repente, aquelas palavras e a ideia de uma Lisboa renascida couberam nas pessoas. Acho que o próprio Dino defende isso também. Para nós aquilo era uma continuidade. Essa “Nova Lisboa” não é assim tão nova. Começamos a nossa conversa a falar sobre o quadro Chafariz d’El-Rey. Há registos históricos de que essa presença já está ali bem vincada há muito tempo. 

Houve uma revolução que já aconteceu antes por outras figuras. Não sinto que essa “Nova Lisboa” represente algo de necessariamente novo. Mas representa um desejo do mundo em geral, e de Lisboa, de querer ter um liftup, até quase pedindo para deixarmos os anos de austeridade de 2008/2009, deixar as complicações da Troika. Depois houve essa lufada de ar fresco que o turismo trouxe, e toda essa energia que a cidade está a ter. De repente vem uma canção do Dino D’Santiago com esse termo de “Nova Lisboa”, tinha-se acabado de ganhar a Eurovisão, havia esse espírito vencedor da cidade, que sinceramente, não sinto que seja totalmente verdadeiro. É estranho falar disso, porque estou no centro do furacão, e não quero deixar de negar que aquela canção só existe porque ela veio na continuidade e na cauda de coisas marcantes culturalmente que estavam a ser feitas. Passei por alguns períodos antes e depois de 2010, que me levam a dizer que essa “Nova Lisboa” é bastante antiga.

Foste um dos membros dos Buraka Som Sistema, que também foi muito percursora na afirmação desta Lisboa misturada e multicultural. Hoje vemos um Dino D’Santiago a ser quase um embaixador cultural de uma Lisboa que é diversa, vemos uma Ana Moura que fez um álbum a cruzar o fado com a kizomba, ou um Slow J com um Afro Fado que esgotou duas datas da MEO Arena. Tendo havido continuidade, houve várias coisas que aconteceram e moldaram uma coisa que hoje tem um nome, um movimento mais declarado e assumido. O que mudou?
O fator determinante para essa “Nova Lisboa” se fixar é o consumismo. Existe esse movimento de fora para dentro e de dentro para fora. Não falo necessariamente de ir para o estrangeiro, mas do centro. O coração da cultura portuguesa deixou de estranhar os produtos que a periferia produz. Deixou de ser “ah, isso é coisa dos outros”. Quando entras num ginásio de classe média em Alvalade, e há aulas de bicicleta ou aeróbica que têm sonoridades e ritmos que buscam essa estética, tens mais um tijolo para esse castelo que se está a construir.

A kizomba revolucionou completamente a forma como essa cultura é consumida. Se olharmos para os rostos mais visíveis desse movimento que são os dançarinos, se virmos quem aprende a música, quais são os alunos do Mestre Petchu ou do Avelino… Se olharmos para o jazz, aquele ginásio ali à beira-rio, ou para o Pack Five Bundas que a Blaya criou. Quem está a aprender isso? São white middle class women. Se a minha contabilista branca de classe média está a dançar kizomba no ginásio todas as quartas-feiras, de repente vem um Anselmo ou C4 Pedro anunciar um concerto, essa pessoa diz : “Oiço essa música todas as quartas-feiras. Associo essa música a momentos felizes da minha vida. Vou frequentar esses concertos”. 

Se fores a esses concertos, e eu fui a alguns, porque de facto eu realmente queria estudar o fenómeno. Do Anselmo, Nelson, C4 Pedro, Matias Damásio, e cito estes nomes não por serem representativos da cultura toda, mas por terem sido pontas de lança. Fui a estes concertos no Coliseu, na MEO Arena, e garanto-te que 70% da audiência era branca. Uso este termo não porque acredito no conceito de raça, mas para abrir a conversa e tornar a coisa mais fluída. Havia outro tipo de consumidores. Já não éramos só nós a ir aos domingos ao Mussulu. Já não eramos só nós a consumir as cassetes da Praça de Espanha. Houve essa mudança, e sem dúvida Buraka também fez parte desse processo, mas eu associo essa mudança, essencialmente à mudança dos hábitos de consumo em Portugal.

“Quando discuto a lusofonia, de certa forma, estou a pedir para encontrarmos um lugar de entendimento antes da violência”

Kalaf Epalanga

Num debate no ‘É ou não é’, falavas sobre o afastamento das pessoas das ofertas culturais promovidas pelo Estado por não se reverem nelas, e dizendo que há uma distinção feita entre alta e baixa culturas. Lançaste esta ideia de olhar para a kizomba como uma cultura popular, e reconhecê-la institucionalmente através de um Museu da Kizomba, e inclusive fundaste o Kizomba Design Museum em São Paulo. Como imaginas o Museu da Kizomba em Lisboa, e porque julgas que ele é necessário?
Isso começou com uma crónica que publiquei em 2014 no Público, que chamei exatamente Museu da Kizomba, porque estava realmente a observar esse fenómeno. Nesse ano, a kizomba já estava completamente presente nas nossas vidas, e achei que era interessante termos um Museu da Kizomba. Provocava os agentes políticos, económicos, a pensarem que, talvez, esse museu precisasse de vários polos.

É óbvio que Luanda é o berço, mas também não posso negar o papel que Cabo Verde teve na fixação e na construção da kizomba. Sem dúvida, Lisboa é o lugar onde essas culturas se convergem, encontram, e realmente tarraxam de verdade. Lisboa também podia ter um pólo dessa natureza. Está ali, até comercialmente falando, uma oportunidade de nós organizarmos esse turismo da kizomba, que existe. Nas minhas viagens, porque normalmente falo muito sobre kizomba, as pessoas correm até mim e dizem: “tens que vir, e vamos lá à noite de kizomba em Nairobi, ou vamos à noite de kizomba em Pequim”. Está lá. É presente. É real. Da mesma forma que consumimos hip-hop, afro-beat, amapiano, reggae, essas manifestações culturais que vêm de lugares muito específicos, a kizomba também é uma cultura muito específica, e foi criada por nós, falantes de português a circular nesse corredor África-Lisboa. 

Da mesma forma que temos o Museu do Fado e o celebramos, estudamos e analisamos, mesmo até sem saber bem qual é a origem de facto, porque é debatível, há pessoas que dizem que tem uma influência africana, eu sou das que o defendem. Mas, facto é que ela está presente e está a ser estudada, arquivada e catalogada como deve ser.

A kizomba também precisa de passar pelo mesmo processo, porque não é uma moda, já está há tempo suficiente para sabermos que provavelmente vai manter-se aqui até ao resto dos tempos. Porque não? É só uma provocação. E o Kizomba Design Museum é mais um desdobramento dessa provocação. Espero que seja itinerante, mas cada gesto que fazemos custa uma pipa de massa, então, eu escolho mais ou menos os territórios onde quero que não só os meus pares mais próximos, mas a minha comunidade, no sentido alargado, comece a prestar atenção. E, para mim, São Paulo é a grande meca da língua portuguesa e onde temos provavelmente as nossas oportunidades para conseguir passar de nicho para cultura global. Acho a cultura brasileira bastante esponja, só que ela absorve mais o que se produz na América do Norte, do que deste lado do Atlântico. Isso é facto, e eu acho que devemos corrigir isso. E o Kizomba Design Museum é uma tentativa de correção desse fator.

“A mesma nação que celebra a “Nova Lisboa” consegue votar em cinquenta deputados do Chega. Por isso é que eu digo que não é tão nova assim. Lisboa não mudou em termos práticos.”

Kalaf Epalanga

Apesar de a kizomba ter nascido em Luanda, Lisboa também teve um papel muito importante pelos produtores e dj’s que vinham cá gravar. Há ainda uma incapacidade de Portugal em lidar com e reconhecer esse património cultural, incluindo pessoas afro-portuguesas que cresceram cá e têm essa herança misturada?
Sinto que, no plano individual ou em pequenos grupos, Portugal não tem dificuldade em abraçar essas culturas. Conhece muito bem, dança muito bem e está muito familiarizado com essa cultura, mas depois no plano macro, a coisa é diferente porque entra em conflito com a ideia da Portugalidade. Há essa resistência que eu acho histórica, de Portugal ter o que os brasileiros chamam a síndrome do vira lata, que é a síndrome do pequenino. A síndrome do: “Eu não sou bom o suficiente. Tive o império mas os meus primos ingleses não me respeitavam quando eu disse que o nosso território era do Atlântico ao Índico, com o Mapa-Cor-de-Rosa. Fui de mão estendida para a União Europeia. Não tinha nada para oferecer”, enfim. Todas essas questões, que tocam na auto-estima da Portugalidade, no sentido alargado do termo, impossibilitam olhar para as coisas que estão realmente à frente do nosso nariz.

Ele é cessante, até de uma forma bastante violenta, em que Portugal diz que inventou o multiculturalismo, a mestiçagem: o discurso lusotropicalista que serviu muito bem o poder. Mas quando vamos de facto dizer: ok, bora lá fixar essas ideias todas e tornar isso realmente parte da nossa identidade. Aí já é difícil. “Não, desculpa lá, Portugal é Guimarães, Portugal são as quinas, Portugal é o Padrão dos Descobrimentos”.

Acho que é esse conflito interno, de entender que se calhar é mesmo pequenino e não é tão grandioso, ou já foi e já não é. Então, vamos lá encontrar uma forma de nos relacionarmos com base nessa pequenez, nesse posicionamento periférico em que o mundo já nos colocou e vamos ser felizes aqui no nosso canto. Portugal resiste a entender esse fator, a entender a sua pequenez, e depois reconhecendo a sua pequenez, a sua força. 

Kalaf Epalanga / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Também trabalhaste com a Grada Kilomba, que tem trabalhado sobre os processos da descolonização. Recentemente numa entrevista falavas sobre a romantização que existe sobre o 25 de abril, esquecendo que ele aconteceu sobretudo por causa da independência das colónias. Há uma relação muito auto-centrada na forma como vemos a nossa história, estando presos a um conjunto de símbolos como o hino que o Dino também falou sobre, ou os Descobrimentos?
Ninguém gosta que lhe sejam apontados os erros. Toda a história, mesmo se reconhecermos as coisas menos boas, é sempre pintada de forma grandiosa. O próprio hino, e eu não tenho nada contra, começa logo com a frase: “heróis do mar”. Significa que alguém se coloca ou colocou num pedestal histórico. A pergunta que faço é: isso é útil, e para quem?. Não queria entrar por aí porque não tenho argumentos suficientes para discutir a questão do hino. Não nasci aqui, e a minha relação com Portugal é sempre de alguém que vem de fora. Gosto desse privilégio, porque me permite analisar coisas interessantes a partir desse lugar. Nesse sentido, acredito que existe uma negação aguda daquilo que realmente é benéfico para a identidade nacional para unir as pessoas. É para isso que servem os hinos, as bandeiras, os símbolos. 

Não sinto que se fez o luto, a cura, e o trabalho da Grada Kilomba vai muito nesse sentido. Quando analisamos que o império caiu. Porque caiu? Essa pergunta ainda não se fez verdadeiramente. O império não caiu porque Portugal acordou um dia a dizer: “É complicado termos o nosso pé no pescoço numa data de população, não é? Não é o nosso lugar.” Vamos reformular essa relação. 

Não digo que a Inglaterra o fez por livre e espontânea vontade. Ela sentiu simplesmente que era mais vantajoso economicamente dar a independência a essas nações e estabelecer uma relação que os estudiosos chamam de neo-colonial. Custava uma pipa de massa, mas, mantiveram-se ali fixos em alguns lugares estratégicos. Até os dias de hoje vemos isso com França com as vagas de independências em África. França achou vantajoso colocar ali um ditadorzinho, manter as reservas do país nos seus bancos, e a vida seguia, até que se passaram gerações e a dada altura disseram: “Calma aí, isso não é justo”. Há um meme interessante a explicar a relação de França com as suas ex-colónias, em que dá duas maçãs. Depois diz: dou-te outra maçã, e pego-te outra. A seguir dou-te outra, e pego-te duas. A conta fica sempre desequilibrada na balança. A mesma mão que nos dá é a mesma mão que nos tira. Isso não é negociação. A boa negociação é quando todos ganham. Não me interessa vender-te o meu carro, sabendo que vais lá fora dizer assim: “Olha, aquele vendedor vende maus carros”. Não vou conseguir vender ao teu primo, à tua avó, nem à tua tia. Em vez de eu vender cinco carros, vendi-te só um, e não ganhei mais clientes. 

Acho que Portugal não fez esse processo de cura. Olhando à luz dos novos tempos a partir do lugar onde eu estou, acho problemático o espaço que se dedica às atrocidades feitas pelo colonialismo português. É atirar a coisa para debaixo do tapete. Há muito pouco investimento em estudarmos os efeitos nocivos do colonialismo. Defendo que devemos saber enquadrar a história. Que tipo de história está realmente a ser contada? Uma coisa é a gente dizer que a escravidão é horrível e não deve acontecer. Mas, ao mesmo tempo, estamos a celebrar e glorificar os próprios efeitos dessa escravidão. Não dá para ter as duas coisas. Bora falar de reparação?! Bora tentar corrigir e equilibrar um pouco o mundo de uma forma justa?! 

Nós enquanto cultura, embarcamos nessa ideia de que quem está no topo é quem tem a verdade. A democracia é um bom princípio a partir do momento em que não existam hierarquias: culturais, políticas, económicas. Se fosse possível construir uma democracia sem elas, diria que Portugal tinha uma chance de rever toda a sua história. Eu não consigo deixar de me ver como um imigrante africano na Europa. Porquê? Porque apesar dos discursos, as ações, na prática, dizem-me que o que estou a produzir culturalmente está a cair num vazio. Não vamos negar os resultados das eleições passadas. A mesma nação que celebra a “Nova Lisboa” consegue votar em cinquenta deputados do Chega. Por isso é que eu digo que não é tão nova assim. Não ganhámos a corrida. Não vencemos. Lisboa não mudou em termos práticos. 

A partir do momento que custa mais caro a alguém da periferia vir assistir a um espetáculo da “Nova Lisboa” no centro da cidade, a conversa acaba aí. A “Nova Lisboa” seria interessante se ela existisse em todas as periferias. Quantas livrarias existem na Quinta do Mocho? Na Buraca, até a Bazofo chegar? Não ouvi falar de loja de livros nenhum. E aquilo não é uma livraria ainda, é alguém que tem uma lojinha com livros, t-shirts, etc. Falando do centro, nos anos todos em que convivo com essa Lisboa, identifico só uma livraria dedicada a literatura africana. Estava no Bairro Alto, se não me engano chamava-se Mokambo, e já não existe. 

Vamos correr as dez mais emblemáticas da cidade, garanto-te que não existe um corner sequer. Eu pergunto-me, como é que é possível que numa cidade como Berlim, onde eu vivo, existam três livrarias, de ponta a ponta, só com literatura de pessoas racializadas. Eles não têm nenhum passado, não falam da mestiçagem, não falam do multiculturalismo, não falam rigorosamente nada desses chavões que é muito bonito nas palavras, mas as ações falam mais alto. Se não vejo multiculturalismo em coisas concretas, tipo: what we talkin’ about? É aí onde me coloco. Porque circulo, viajo, vou ver os lugares. A própria São Paulo. A não ser quando eu vou, e alguém me leva na periferia, aí de facto estou em centros de produção culturais negros. Há, e é publicado, e é maravilhoso. Ou quando a Djamila Ribeiro me leva à casa das feministas plurais. Mas mesmo nos lugares mais mainstream existe uma presença inegável da produção intelectual negra daquele país. E também não podemos esquecer os povos indígenas. 

Custa-me olhar para uma cidade como Lisboa, quando se defende tanto o multiculturalismo, e isso não estar a ser traduzido em questões práticas. Estamos todos muito felizes a dançar a kizomba, o kuduru, em abanar a cabeça no rap, mas não queremos aquilo que essas pessoas pensam. Existe consumismo de produção africana lúdica, entertainment, que não revela, não agita as águas, que mantém as coisas mais ou menos no mesmo lugar. Há uma convivência pacífica nesse sentido, mas sempre que alguém se atreve a dizer: e se nós ouvirmos de facto aquilo que os rapazes da Quinta do Mocho que enchem o Musicbox com as suas noites da Príncipe? Não só do que acham, daquilo que sentem no seu dia-a-dia, mas também aquilo não é perceptível, que e se calhar é só uma sensação.

A mim custa-me viver num lugar onde a única produção cultural que existe é um quiosque de revistas onde 98% é palha, cor-de-rosa, a novela, a bola ou o crime. O único quiosque que tem produção de intelectualidade é a imprensa local. Eu pergunto-me: “esses 5%, 10%, que consomem, consomem uma dieta muito enviesada daquilo que é essa ideia de Portugal multicultural, de ‘Nova Lisboa'”? 

Por isso é que digo que o discurso do Dino D’Santiago … as pessoas acham-no contraditório. Eu sempre achei que ele é um homem do seu tempo a pensar o seu tempo. Muitas vezes está a questionar mais do que a responder, mas acho muito bonito nesse sentido. Da mesma forma que ele diz que Lisboa é um lugar do caraças, ele também acha que alguma coisa lhe está a incomodar no raio dessa heroificação de Portugal, e dessa coisa toda de que nós somos grandes, somos fantásticos e maravilhosos e etc, mas no verdadeiro sentido prático, ele sabe que as coisas continuam no mesmo lugar.

“Eu pergunto-me, como é que é possível que numa cidade como Berlim, onde eu vivo, existam três livrarias, de ponta a ponta, só com literatura de pessoas racializadas. Eles não têm nenhum passado, não falam da mestiçagem, não falam do multiculturalismo, não falam rigorosamente nada desses chavões que é muito bonito nas palavras, mas as ações falam mais alto. Se não vejo multiculturalismo em coisas concretas, tipo: what we talkin’ about? É aí onde me coloco.”

Kalaf Epalanga

Sobre a Lusofonia. Afirmaste numa entrevista à Lusa, que “A lusofonia ainda está nas mãos dos políticos. Não está nas mãos das pessoas, dos produtores da cultura. Ainda são os institutos, instituições e Ministérios que promovem e ditam o ritmo em que a lusofonia tem que ser entendida.” Que mecanismos podem ser criados para quebrar este ciclo?
Para começar, colocar nos lugares de decisão e poder pessoas que têm outro ponto de vista. Quando a gente traz tópicos como o pacto da branquitude, ele não é algo em que de repente 40 pessoas brancas entram na sala, e decidem que vão dominar o mundo de uma forma. Ele não se dá assim. Dá-se por uma soma de fatores que são desdobramentos de práticas culturais, que estão ali durante séculos. É como o patriarcado. Eu tenho dois filhos homens. Lá em casa a gente ensina que todo o mundo tem que fazer o mesmo tipo de trabalhos em casa e tem que ser realmente uma democracia horizontal. Todo o mundo faz e contribui, mas não consigo controlar o que esses dois rapazes vão aprender quando saírem porta fora. Coisas tão simples quanto peer pressure. “Ah, não faz isso, isso é coisa de maricas”. De repente, aquele ser que eu acho que estou a educar com todos os livros e toda a minha sabedoria anti-racista, blá blá blá, volta para casa um reacionário do caraças. É o mundo. Não são só os pais que ensinam. É o todo, é o conjunto, é o pacto. Todo o mundo sabe que raça é uma invenção. Todo o mundo sabe que se eu cortar aqui o meu dedo vou sangrar da mesma forma que o outro indivíduo aqui ao meu lado. Ainda assim dividimos o mundo por raças. Eu ainda venho do tempo onde a homofobia era quase culturalmente aceite, mas também estou a observar que estão-se a colocar mecanismos para a gente corrigir o nosso pacto que afirmava que a homofobia era normal. É possível fazer essa correção, se conseguimos adotar e largar coisas nesse grande pacto que define o grupo dominante. Então é possível acabar com o racismo. 

É importante colocar pessoas nos lugares de decisão que têm outro tipo de background, e não é colocar só o token. É o sistema. Por exemplo: “a cultura de empresa”, “a cultura de clube”. O que é isso? Significa que existe uma data de práticas que foram colocadas ali, que independentemente de quem está no topo, quem é o presidente, seja lá quem for, a cultura não muda. As culturas também são construções. O pacto é uma construção. Mas não se muda o pacto com tokens. Não é de repente: “Vamos colocar uma mulher no poder”. A Angela Merkel foi chanceler da Alemanha durante anos. A Alemanha continua machista. Obama foi presidente dos Estados Unidos. Não acabou com o racismo. É a cultura. Não se muda com tokens.

Não digo que para começar e tornar a lusofonia de facto nossa, comecemos por colocar nos lugares de decisão, pessoas que tenham outras perspetivas. Um exemplo: esta semana entrou na Academia de Letras Brasileiras, a primeira pessoa indígena. Krenak, filósofo, uma pessoa brilhante. Isso leva-me a pensar. E ele disse: “Eu não cheguei aqui para ampliar a lusofonia. Vou promover uma sinfonia.”

Acho interessante quando oiço brasileiros dizerem: “Eu sou brasileiro, e isso é o meu Brasil”. A primeira coisa que me surge na cabeça é: O Brasil é uma construção, alguém inventou o Brasil. Tu és brasileiro a partir daquela invenção. Da mesma forma que eu acho que Angola é uma invenção. A maior parte dos países africanos são inventados. Isso não quer dizer que não nos sentimos angolanos, e que não abracemos essa ideia, mas há também que ser humilde, dar um passo atrás e dizer que se calhar antes dessa construção, existe uma existência que se nós prestássemos mais atenção, iria responder e resolver muitas das questões que vieram a seguir. 

Quando discuto a lusofonia, de certa forma, estou a pedir para encontrarmos um lugar de entendimento antes da violência. Que é quase impossível, talvez, mas existe um lugar de primeiro, reconhecer que ela tem que ser horizontal, não tem que anular ninguém, tem que ser inclusiva de facto. Inclusiva não é só a partir das primeiras caravelas a ir para o mundo. Quero que seja inclusiva a partir do momento antes das caravelas atracarem. Eu para existir e circular no Ocidente como o faço, tenho que fazer esse exercício de voltar para trás antes do Diogo Cão chegar a Angola. Preciso de me olhar a partir daquele prisma. E não é aquela coisa do “Ah, que ele é evoluído, não é evoluído”. É só no sentido mais nato do que é que é esse conceito de liberdade. Liberdade é uma negociação constante com a comunidade. Em relação a dois, a quatro, e vai alargando. Mas preciso encontrar em mim, algures no meu consciente, o lugar onde a relação que eu tenho com a língua é completamente pura. É uma impossibilidade. Mas preciso encontrar esse lugar em que a relação que eu tenho com essa língua não seja de violência, e é-me muito difícil. A forma que tenho para conseguir fazer isso é olhando para outros polos que tiveram uma relação antes da chegada da língua portuguesa. Por isso é que por exemplo, não consigo chegar e olhar tanto atrás na minha história, porque ela “foi apagada”. Há algumas células em que ela ainda se mantém intacta, mas essencialmente, sou fruto de uma nação colonial. Há muita coisa ali a discutir. Então quando olho para o Krenak, Kapinawá, e olho para aquilo que esse povo está a fazer para manter intacto o conceito de liberdade, a palavra lusofonia me entra numa forma completamente torta, todos os dias.

Kalaf Epalanga / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Em 2050, estima-se que vão haver 387 milhões de falantes da língua portuguesa. No teu livro de crónicas “A minha pátria é a língua pretuguesa”, mencionas a Lélia Gonzalez, que falava muito sobre a forma como podemos conviver de uma forma mais harmoniosa com a nossa língua. Como é que se pode criar esta relação mais inclusiva e dinâmica entre os vários países que adotam a língua portuguesa?
Eliminando hierarquias, por exemplo. Eu autocensuro-me quando escrevo. Quando pratico o português, estou constantemente a negociar aquilo que são regras. Não estou a dizer que não goste delas, ou que não as tente aperfeiçoar. Dá-me prazer ver a forma criativa como a língua portuguesa é tratada nos países africanos. No Brasil também. Dá-me um prazer, e é tão criativa, tão rica, que acho, que à maior parte das pessoas, é-lhes negada essa experiência, porque concordamos e aceitamos de que a única forma de circularmos e convivermos dentro da língua portuguesa, é a partir de um viés só. Tenho uma grande estima pela forma popular de abraçar a cultura. Gosto, porque diz muito sobre um grupo. Diz muito sobre uma cultura, a forma como as pessoas lidam com aquilo. Não acho estranho, por exemplo, a forma como os açorianos falam, para mim é um mistério, e os mistérios atraem-me. Mas fogo, foi preciso aparecer uma série, “Rabo de Peixe”, para a gente ver isso mais presente no mainstream, e fazer parte da nossa vivência. “A minha pátria é a língua pretuguesa” é a minha vénia, embora muito do que está escrito ali não está no português todo correto, porque são crónicas, têm que ser acessíveis. Esse é o código que aceitamos usar para comunicar em grande escala. Mas queria prestar também uma vénia para aquelas pessoas que são tidas como analfabetas, mas que têm um sentido de humor, uma maneira de olhar o mundo que é tão genuína, que às vezes pergunto-me se eu é que não sou ignorante. Eu que li, sei ler, sei escrever. Ao mesmo tempo que estou a tentar construir um museu, arquivos, e estou a provocar pessoas a pensar em grande escala, também o tempo todo estou a tentar desconstruir esse próprio pensamento. Acho que essa é a função do artista. Construir e desconstruir, a toda hora. A partir do momento que um artista é absoluto, reforma-se.

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