Entrevista. Lav Diaz: “As democracias estão a desaparecer”
Na sequência da exibição de A Estação do Diabo no festival de Berlim, edição de 2018, o Insider sentou-se com o realizador filipino para discutir as suas opções estéticas e conceptuais, bem como o desafio de optar pelo género musical. E, claro, um inevitável olhar político para a sociedade populista de hoje. Abordámos ainda o que deverá ser o seu novo projeto, o que intitula como “o maior film noir da história do cinema”. Isto talvez para referenciar a duração dos seus filmes, normalmente com mais de quatro horas, precisamente a duração de A Estação do Diabo.
Acho que poderemos dizer que este filme forma um corpo com os seus trabalhos anteriores.
Sim, é uma extensão.
Pois, sempre povoado por fantasmas. Aqui com uma perspetiva diferente.
Refere-se à música?
Sim.
Originalmente estava a pensar num filme de género, um film noir, mas dei por mim a escrever uma espécie de lamento sobre o que se passa no país. Uma espécie de marcha fúnebre.
E quando foi isso?
Por volta do final de 2016. Comecei a escrever estas músicas entre setembro e dezembro desse ano. Estava nessa altura em Harvard, onde tinha uma residência. Escrevia um livro sobre o cinema filipino e um guião para um filme de gangsters. Mas foram as músicas que acabei por escrever. Percebi que existia aí um fio narrativo muito fluido, uma porta aberta. Foi então que pensei em optar pelo musical. O que quer que seja um musical… Liguei à minha produtora e disse-lhe que já não fazíamos um filme de gangsters mas um musical. E que já tinha muitas canções e que poderia criar um arquivo que pudesse dar um filme.
No filme os atores cantam a capella. Porque escolheu este registo?
Queria que fosse algo puro, queria que fosse algo primordial, antigo, o mais antigo que pudesse. Queria usar instrumentos antigos, tão antigos quanto os conhecemos. Queria aproximar-me do real. Foi este o nosso ponto de partida. Espero ter conseguido.
Sente que representa o universo asiático?
Eu sou filipino e estas são histórias filipinas. Em todo o caso, a luta do povo filipino é uma luta universal. É a luta do povo sírio, etíope, tunisino, do Laos. Acontece em todo o lado. As ditaduras e demagogos estão de volta. As nossas narrativas de trajetórias em termos de luta são compreensíveis tanto para ao europeus como para os africanos. Por muito esotérico que o nosso trabalho possa ser, penso que toda a gente se pode relacionar com ele.
O filme é baseado em factos verídicos e em personagens reais. Como escolheu essas personagens?
Eu cresci durante o período marcial (de Ferdinando Marcos), tal como tanta gente no meu país. No fundo, o filme é uma composição de eventos verdadeiros e personagens verdadeiras. E estabeleço uma narrativa em redor dessas personagens tentando não perder a perspetiva. O filme desenrola-se num período particular, mas está muito próximo com o que se passa agora.
E como acha que pode ser a reação nas Filipinas?
Não sei. Mas isso faz parte do acordo. O confronto esta lá. É a prerrogativa do realizador, do artista em estabelecer estas pontas. Não podemos virar as costas.
Quando abordou este projeto, antes ainda de se transformar num musical, tinha uma ideia de partida? Por exemplo, em relação à duração do filme?
Não, não. Nunca tenho uma ideia pré-concebida. E nunca penso na duração dos meus filmes. A duração apenas surge na montagem. Quando estou a filmar nunca penso nisso. Nesse sentido, sou muito fluido e sigo todos os meus instintos. É claro que tem uma narrativa. No final ficou com cerca de quatro horas.
No seu caso, quatro horas é quase uma curta… (risos)
Sim, é um filme curto. (risos) Acho que me vão acusar de me vender a um lado mais comercial… (risos) Se um dia fizer um filme de duas horas é porque tinha de ser assim. Não cedo a esse tipo de receira.
Fale-nos desse projeto de gangsters.
Sim. Chama-se When the Waves Are Gone. Já tenho a história.
É um filme que irá nascer, portanto?
Sim, deveria ter sido este projeto. Mas já me pediram para preparar esse guião. Acho que estará pronto para meados de 2019. Terei de fazer um casting e encontrar pontos de rodagem. Vamos ver.
Imagino que será um projeto que continue o corpo de trabalho que tem feito?
Sim, sim. Vou apenas usar o género, o film noir mas é uma continuação da sua obra.
Quando está a rodar já vê o filme a preto e branco?
Sim, eu vejo o cinema a preto e branco. É por isso que filmo sempre a preto e branco.
E de onde vêm essas ‘sombras de cinzento’?
(risos)
Peço desculpa, não resisti à analogia… (risos)
Não faz mal (risos). Eu sempre vi muitos filmes a preto e branco. Cresci na parte sul do país, perto da floresta. Os meus pais eram professores numa escola pública. Há uma cidade a três horas de distância onde há cinemas, com double bills (sessões duplas). Todos os fins de semana íamos e víamos oito filmes. Isto nos anos 60 e sempre com filmes a preto e branco.
Percebo, daí lhe vem a duração dos seus filmes…. (risos)
(risos) Pode ser. Veja bem, o meu pai era um cinéfilo. Levava-nos ao cinema no sábado e domingo. E víamos oito filmes. De Hollywood, Hong Kong, India, bem como o cinema das Filipinas. Portanto, acho que o meu cérebro ficou gravado neste vortex a preto e branco. Não sei, é assim que vejo o cinema. Sempre que vejo um filme a preto e branco entro num outro universo. É um lugar místico para mim.
É capaz de ver também filmes de Hollywood mais comerciais?
Sim, para me divertir. Desde que tenha o controle criativo. Dê-me o dinheiro e eu faço o filme. Desde que não tocassem no filme.
Ah, ok. Eu perguntava se via esse cinema. Mas admite então que seria capaz de fazer cinema comercial?
Desde que tenha total controle criativo.
Mas teria de ser a preto e branco…
Exatamente (risos).
Quanto custou este filme?
200 mil dólares. É muito barato. O filme que venceu – o prémio de realização – o ano passado (2016) em Veneza, The Woman Who Left, custou metade. Tenho o meu próprio equipamento, câmaras baratas e lentes, uma equipa de duas a sete pessoas. É essa a minha equipa. Assim é fácil deslocar-nos a uma ilha obscura e fazer ali um filme. É um tipo de cinema zen. Não nos distraímos com muitos preparativos. Não quero fazer isso.
Foi sempre assim que trabalhou?
Nem sempre. Fiz três ou quatro filmes com estúdios em que tinha mais de uma centena de pessoas em meu redor. Há muita distração que nos faz perder a perspetiva e comprometer tudo. Agora é tudo muito mais simples.
Já falámos antes sobre isso, mas é verdade que não faz muitos takes, certo?
Correto. Por vezes, um único take. Se esse for bom para quê repetir?
Fale um pouco do tema dos mitos que escolheu para este filme?
A criação de mitos deveria ser o discurso atual. Temos todos estes demagogos devido a essa criação de mitos. Temos o Putin, por exemplo. É uma pessoa criada por mitos. (Ferdinando) Marcos foi criado por mitos. Os líderes populistas são criados assim, desenvolvem influências místicas, poderes supremos e mentiras em redor dessas figuras. A certa altura o povo irá acreditar. É aí que se tornam líderes e impõem a sua vontade. Todos os ditadores e demagogos da atualidade vêm daí. É algo muito perigoso, porque as pessoas estão dispostas a acreditar. Agora chamam-lhe ‘fake news’. É o revisionismo da História.
Nesse sentido, este é também um filme atual?
Sem dúvida. Podem mostrar o filme aos sírios que irão identificar-se. Ou aos russos, ou chineses. As suas lutas são familiares. É algo que está por todo o lado. No sudoeste asiático temos ditaduras me todo o lado: Singapura, Laos, Camboja, Filipinas, Vietname, Taiwan. Tudo regimes militarizados. A Malásia, a Indonésia. Não resta nada. As democracias estão a desaparecer.
Como explica este fenómeno?
O problema principal é a ignorância. É o muro da ignorância. É a criação dos mitos. E de todos os movimentos populistas. Líderes que assim podem manipular as massas com facilidade. O papel do artista e do cinema é esse: ser responsável e comprometer-se contra esse muro da ignorância. Temos de educar as pessoas, porque isso não vai parar. Mesmo nos Estados Unidos, onde existem grandes instituições, como Harvard, Columbia, MIT, porque razão elegeram o Trump? Foi devido ao populismo e a ignorância. Nós temos de aceitar que falhámos. Por isso temos de regressar e lutar.
Acha que o cinema pode ajudar?
Sim, em parte. Pode ser um movimento para lutar contra este estado de coisas. Por isso há necessidade de cineastas que se comprometam com o seu cinema. É importante.
Acha que há cineastas suficientes que fazem isso?
Temos de ter mais (risos)… É esse o problema. Temos de aceitar que muitos deles são estrelas. Estão demasiado dentro das suas próprias personas. O mundo é pequeno demais para o ego deles.
Mesmo que o filme siga este perfil, será mais curto (apesar das quatro horas) por este lado musical?
Preciosamente. A montagem é determinada pelas canções. Temos de cortar quando a canção termina, não podemos prolongar. Pela mesma razão tive de fazer cortas dramáticos neste filme.
Como realizador cinéfilo é apreciador também de musicais?
Claro. Vi muitos. Tommy, Jesus Christ Superstar, Hair. West Side Story. Gosto de todos esses.
E quanto ao cinema noir tem alguns como referência agora para o seu próximo projeto?
Claro. A vaga do cinema francês noir, os americanos. São muito bons. Quero usar isso. Não sei o que será. Mas uma coisa é certa, será o filme noir mais longo da história. Talvez com 40 horas… (risos) ou doze horas de filmes de gangsters. Terá de ser divertido.
Será então em meados de 2019? Talvez o festival de Cannes reserve só para si um dia de projeção…
Talvez sim (risos).
Entrevista de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt.