Entrevista. Lua Carreira: “A tecnologia traz-nos muitas possibilidades. Enquanto artista, na era digital, foi uma libertação”

por Ana Monteiro Fernandes,    17 Janeiro, 2025
Entrevista. Lua Carreira: “A tecnologia traz-nos muitas possibilidades. Enquanto artista, na era digital, foi uma libertação”
Lua Carreira / Fotografia de Joanna Correia

O colapso, a explosão, a expansão e a regeneração humanas em aliança com a tecnologia. De que forma o espaço, o som e a luz, aliados ao movimento do corpo através de sensores, podem contribuir tanto para o entendimento da fragilidade e colapso humanos, como para uma visão integral e disciplinar em que a arte não é só arte por si só, mas vai beber a outras áreas como a física?

É a paixão pelo movimento, mas com a vontade, sempre, de querer desafiar os limites tanto do meu corpo como das minhas possibilidades criativas“, diz-nos a bailarina e artista coreógrafa Lua Carreira, que passou pelo Ballet Junior de Genéve, na Suíça; pela companhia EgriBianco Danza, em Itália, e pelo Instituto Gregoriano de Lisboa. “Black Sun” trata-se da sua nova performance que reflete a experiência de colapso emocional, físico e intelectual e, como a própria artista explica, conta com “a contribuição artística de outros dois performers que vão estar comigo: o João Pedro Fonseca que vai estar em cena e que fez o desenho de luz, e a Carincur que fez toda a parte da criação musical para depois incorporar na parte dos sensores e com o corpo em movimento na performance.

Partindo da ideia do eclipse, da física e da sua noção de movimento e explosão, mostrando como a regeneração humana também pode estar aliada à ao colapso e regeneração tecnológica, a performance “Black Sun” vai ser apresentada no Artist Run Space Mono, em Lisboa, nos dias 24 e 25 de Janeiro. “Enquanto artista que está a trabalhar com a arte, tem muito a ver com o diálogo interespécies, ou seja, com o abalo da ideia de que o ser humano é o centro do mundo, a ideia antropocêntrica de que tudo gira à nossa volta. Estamos, no entanto, em contacto com outras espécies, nomeadamente espécies que podem ser artificiais, mais robóticas. Isto faz com que não exista uma dualidade competitiva entre a parte tecnológica e a parte da arte do ser humano“, explicou a artista à Comunidade Cultura e Arte na entrevista que se segue.

Como começou o teu gosto pela dança e, em especial, o teu interesse em ligar a dança à tecnologia? Trata-se de base importante do teu trabalho, esta ligação que estabeleces entre a dança e a tecnologia.  

Comecei a dançar muito nova, aos quatro anos de idade, e foi algo que me acompanhou desde a minha infância. Mesmo quando era pequenina, sentia a certeza de que queria seguir a dança. A minha paixão começou pelo ballet, pela dança clássica, pela parte do movimento, e era uma coisa de criança, de pequenina, como acontece com a maioria das pessoas. Quando tinha 13 ou 14 anos, um professor perguntou-me se não gostava de apostar profissionalmente na dança. Foi então que iniciei toda uma preparação para entrar para o conservatório. Foi algo que veio desde pequenina e na qual sempre apostei. Experimentei muitas coisas, mas a dança também manteve-se. Fiz todo o meu percurso com a dança clássica e com a dança contemporânea, na Escola do Conservatório Nacional e, depois, quando acabei o secundário, continuei nas companhias de dança em Genéve, na Suíça, em Itália, e voltei para Portugal em 2019. Sempre tive um lado muito criativo e uma vontade muito grande em criar os meus próprios projetos. Comecei por fazer os meus projetos de maneira independente, mas ainda muito ligados só à dança, só à parte da estrutura coreográfica. Conheci, por fim, dois artistas — o João Pedro Fonseca e a Carincur — que me vão acompanhar durante este processo. Vêm de áreas diferentes e já trabalhavam um pouco com a tecnologia. Comecei a descobrir com eles que a tecnologia dava-me a nível criativo muitas mais possibilidades. É quase como se a tecnologia potenciasse ainda mais o meu lado criativo. Depois quis explorar mais o que significava a performance para além da dança. Tinha uma vontade muito grande em desconstruir os cânones pelos quais eu praticava a minha dança e queria perceber como é que conseguia desconfigurar todas as técnicas, todas as formações, toda esta parte que tive muito presente durante a minha educação. A tecnologia e a parte da performance proporcionaram-me encontrar um lugar mais único e mais identitário através do movimento e do gesto, ligando-os ao potencial criativo das máquinas. É a paixão pelo movimento, mas com a vontade de querer desafiar os limites tanto do meu corpo como das minhas possibilidades criativas.

Podes explicar como nasceu a ideia para a residência artística do “Black Sun”? Como é que surgiu a oportunidade?

Fiz, anteriormente, uma performance que se chama Halo Blakness of the Heart, com a qual tive o meu primeiro contacto com os sensores de movimento — a grande ferramenta tecnológica que uso nesta performance. Começou, assim, a minha primeira pesquisa para perceber o que os sensores de movimento poderiam trazer para este projeto. Entretanto, esta peça em específico, o “Black Sun”, surgiu aliada ao fascínio muito grande que tenho sobre a explosão atómica, em perceber como funciona. Comecei com esta ideia, o que é a explosão atómica ao nível da física e da química, e como é que se comporta a nível de reações moleculares. Acho muito interessante inspirar-me na parte da ciência e da física também, porque é movimento. A física também fala de forças, fala de movimento, de comunicação entre átomos e moléculas.

Desde então, iniciei uma investigação conceptual muito grande que abarcou estas questões da física até às questões filosóficas que se direcionavam mais para a tecnologia, nomeadamente o aceleracionismo tecnológico. Cheguei, depois, a um ponto em que me perguntei: “Tenho sensores de movimento, uma investigação conceptual sobre explosões atómicas, sobre física, sobre tecnologia, e agora como é que desenvolvo isto tudo?” Cheguei ao ponto de focar a minha investigação, o meu processo criativo, na parte da emoção e dissecar como é que as minhas experiências pessoais e emocionais pelas quais passei nestes últimos tempos poderiam constituir o desenvolvimento desta peça. Isto começou com um fascínio muito grande por um fenómeno da física e foi crescendo até chegar a uma zona mais pessoal que fala muito sobre emoção.

“A física gera o movimento e é das coisas mais importantes para perceber como é que podemos dançar. Mas mais do que dançar, é fundamental para perceber o espectro do movimento, que acho que é um conceito importante.”

Mas esse interesse pela física e pela ciência já vinha de trás? Já era um interesse que tinhas? 

Sim, associo muito a física ao meu percurso enquanto bailarina, porque sempre trabalhei o movimento através da compreensão do movimento, do gesto, das forças, da dinâmica, da velocidade, e são coisas que nós trabalhamos muito a nível técnico, numa formação profissional e também enquanto bailarina profissional, num trabalho de companhia. A física gera o movimento e é das coisas mais importantes para perceber como é que podemos dançar. Mas mais do que dançar, é fundamental para perceber o espectro do movimento, que acho que é um conceito importante. 

Então, para ti, todas estas áreas se cruzam. 

Exatamente.

Não se pode olhar para a arte só como arte e para a ciência só como ciência, ou seja, há aqui toda uma ligação.

Exatamente. Por isso é que apresento esta peça, o “Black Sun”, enquanto uma performance transdisciplinar. Acho que é um conceito muito importante, porque não se trata de uma área artística específica, ou seja, não me direciono para a dança. Vejo como uma performance na qual existe uma interação direta entre estas áreas todas, quer seja durante o processo criativo, quer seja mesmo no momento da performance. É importante dizer que esta questão da transdisciplinaridade é uma integração profunda das várias áreas, ou seja, há mesmo um modelo de comunicação. Neste caso, tenho os sensores de movimento que, através dos gestos do meu corpo, podem manipular som ou luz. Não existe um só trabalho separado, numa bolha, sobre luz, outro trabalho sobre som e outro sobre o que é o corpo. Estão todos a ser criados ao mesmo tempo e estão em constante interação. A parte conceptual da investigação, a minha ideia emocional e a ideia inicial deste projeto estão sempre em transformação e em movimento connosco.

Lua Carreira / Fotografia de Joanna Correia

Quanto aos sensores de movimento, foram também adaptados em exclusivo para esta performance? 

Os sensores de movimento são aparelhos tecnológicos que adquiri já com uma otimização que me permite ligá-los a diferentes softwares. Mas tudo aquilo que escolho e que os sensores ativam — ou seja, a música e a luz que ativam — tudo isso foi criado comigo e com a minha equipa. A parte interessante é que mesmo que o sensor já esteja otimizado para transferir dados, para transferir sinais para softwares de música ou de luz, eu e a minha equipa é que construímos aquilo que eles ativam. Essa parte do projeto é muito única e tem, também, a contribuição artística dos outros dois performers que vão estar comigo: o João Pedro Fonseca que vai estar em cena e que fez o desenho de luz, e a Carincur que fez toda a parte da criação musical para depois incorporar na parte dos sensores e com o corpo em movimento na performance. 

Também é muito importante haver uma comunicação entre os sensores de movimento e toda a ideia do espaço.

Exatamente. Também falo, sobre esta peça, que a emoção é o nosso fio condutor nas relações. As relações das quais falo durante este projeto criativo são relações humanas e são relações biotecnológicas. A emoção é aquilo que se transporta de um lado ao outro e, portanto, estas relações têm a ver com a parte da comunicação e essa comunicação faz-se com o corpo de nós os três — o meu, o do João Pedro Fonseca e o da Carincur, que estamos em palco — e os sensores que depois amplificam este sinal para estímulos sonoros e visuais, como a luz. Há, depois, uma componente cenográfica que liga tudo. A parte espacial é como se fosse, também, outra componente que nos faz mergulhar num espaço específico, numa atmosfera. O projeto vive muito da criação de atmosferas, vivências e, portanto, a cenografia dá-nos estrutura. Dá estrutura tanto ao movimento — acho que a cenografia é um dos pontos nos quais me apoio mais a nível de estrutura coreográfica, que é aquilo que eu posso trazer do meu percurso na dança — como ao comportamento da luz e até comportamento do som e das ligações tecnológicas.

Mas quando falas em luz e da parte cênica, há o objetivo de tentar criar, em quem vê, uma experiência mais sensorial? 

Sim. O objetivo, quando estamos a construir com som, com luz e com corpo, prende-se com a criação de uma experiência imersiva e que esta seja o mais impactante possível a nível da sensação. Além das camadas sonoras e do tipo de luz que usamos, existe também um trabalho sobre vibração que é imaterial, tal como a emoção. Ou seja, essa emoção está sempre em movimento através da vibração, através da energia. Por exemplo, uma das coisas que também estive a pesquisar tinha a ver com a cor, com o lugar onde a emoção se aloja. Qual é a memória da emoção no corpo, num processo digital, num processo mais intelectual? É uma peça, uma performance bastante imersiva, acho que tem um caráter imersivo. 

Mas achas que as novas tecnologias e o meio digital têm contribuído para dinâmicas mais interessantes na arte? Como é que é, principalmente hoje em dia, ser-se um artista na era digital?

Penso que a melhor maneira de responder à tua pergunta é falar também sobre a Zabra. Estou a desenvolver este projeto enquanto artista residente da Zabra, um centro de investigação de arte pós-humana. Isso significa que o trabalho que está a ser desenvolvido tem como foco as artes computacionais, em que o computador tem um papel crucial naquilo que é a produção e a representação da arte. Acho que isto traz muitas possibilidades e coisas muito positivas a nível da prática artística. Enquanto artista que está a trabalhar com a arte, tem muito a ver com o diálogo interespécies, ou seja, com o abalo da ideia de que o ser humano é o centro do mundo, a ideia antropocêntrica de que tudo gira à nossa volta. Estamos, no entanto, em contacto com outras espécies, nomeadamente espécies que podem ser artificiais, mais robóticas. Isto faz com que não exista uma dualidade competitiva entre a parte tecnológica e a parte da arte do ser humano. Considero que isto é das coisas que pode potenciar cada vez mais a criatividade, porque a arte vive disso, vive da criatividade e vive das associações que podemos fazer, assim como do cruzamento de dados, quer sejam mais biológicos, mais artificiais, mais orgânicos, mais emocionais ou intelectuais. A tecnologia traz-nos muitas possibilidades. Enquanto artista, na era digital, foi uma libertação. Permitiu-me crescer a nível criativo de uma maneira completamente diferente do que quando trabalhava enquanto bailarina profissional, por exemplo, e estava oito horas, se fosse preciso, fechada dentro de um estúdio a praticar só com o meu corpo.

As novas tecnologias oferecem-nos, então, mais ferramentas para nos expressarmos mais facilmente? 

Penso que as ferramentas tecnológicas ajudam-nos a retirar aquilo que está cá dentro, aquilo que pertence a um universo mais imaterial, mais interior, e consegue exteriorizar essa mesma realidade. Mas são apenas ferramentas, não acredito que elas nos façam melhores ou piores, bem ou mal. As ferramentas tecnológicas influenciam-nos e temos a responsabilidade de perceber como usá-las. Isso depende muito de cada artista. Não comecei a lidar com a tecnologia desde o início, nem fui uma pessoa digital desde o início. Comecei a ser mais digital e a ter mais interação com a tecnologia quando consegui perceber o potencial criativo que me poderia trazer. No meu caso, sim, ajuda-me nos meus processos criativos e melhorou imenso a maneira como trabalho esses processos, assim como a forma como quero pôr cá fora as minhas obras de arte. Trata-se, no entanto, de uma experiência bastante pessoal e depende da responsabilidade de cada um. 

Lua Carreira / Fotografia de Joanna Correia

Há, por vezes, a tendência de olharmos para a tecnologia como algo mais frio, mais impessoal, até. Mas também pode ser utilizada como uma forma de expressão, uma ferramenta de expressão, tal como tudo que foi criado pelo ser humano.  

Por isso é que também, neste processo, falo sobre a emoção como uma âncora. Houve um grande interesse meu, uma grande vontade em perceber como é que conseguimos criar estas relações afetivas, mesmo através de canais tecnológicos. Essa afetividade com a tecnologia pode-nos trazer alguma proximidade, com ferramentas que nos dias de hoje são vistas com resistência e sobre as quais há muita visão apocalíptica. O meu interesse em explorar a afetividade e a emoção neste projeto tem a ver com isso, uma aproximação com processos que nos podem ajudar criativamente e, também, a perceber melhor a nossa existência e o nosso papel no mundo. As fronteiras estão muito diluídas agora, entre a parte da natureza e a parte artificial. Há cada vez menos fronteiras e barreiras. Acho que esta aproximação com a tecnologia é muito importante.

Porquê a ideia de um sol negro para o espetáculo? O que é que significa este “Black Sun”?

O “Black Sun” veio de uma imagem que produzi na peça anterior e que começava com um grande círculo a apontar no meu peito. Este círculo negro que desenhei no meu peito com uma produção de vídeo acabou por ser o início da minha descoberta de que havia uma data de experiências emocionais que gostava de desenvolver a nível criativo. O “Black Sun” tem a ver um pouco, portanto, com esta ideia de eclipse. Tem uma componente bastante negra e pesada, honestamente. É uma peça que fala sobre colapso emocional, colapso físico e intelectual. Fala também sobre explosões como triggers, como elementos de ativação que nos podem desencadear certas emoções e certas maneiras de pensar. Esta peça, no final, é um aglomerar de várias situações que foram bastante pesadas, negras e que, algumas vezes, eclipsaram a emoção e, depois, essa emoção acabou por explodir. Para além disso, foi também uma expressão que acabei por encontrar em algumas obras de filosofia que investiguei, nomeadamente um ensaio de Georges Bataillhe, em que ele fala sobre o “Black Sun”, a potência e o excesso de emoção e energia. 

Também existe uma componente física, ou seja, a parte do universo. Há aqui muitas camadas que me fizeram chegar a este título do “Black Sun”.

Como já disseste, é uma performance transdisciplinar sobre a destruição, regeneração e expansão do ser humano. O que é que significa esta destruição e regeneração do ser humano? Se calhar tem um bocadinho a ver com a ideia do eclipse. O sol desaparece, fica escuro, mas depois tudo volta, o sol e a iluminação.

Exatamente. Quando falo de destruição, falo um pouco sobre a capacidade autodestrutiva que o ser humano tem. Existe uma componente de autodestruição que acho que pode ser bastante massiva. Mas, em contraponto com essa capacidade autodestrutiva que o ser humano tem vindo a desenvolver, acho que também existe a capacidade de expansão e regeneração. Quando falo em regeneração, tem a ver com a capacidade de adaptação. À medida que vão acontecendo mudanças paradigmáticas na nossa sociedade, quer tenham a ver com mudanças político-económicas, a forma como o ser humano se relaciona, a parte da afetividade e a parte da saúde, para tudo isso existe uma capacidade de adaptação. Essa capacidade de adaptação é uma regeneração criativa. A criatividade está sempre presente enquanto processo de regeneração. Quanto à expansão, tendo em conta que existe um elemento de autodestruição e existe um elemento de regeneração, existe o pensamento crítico também. O pensamento crítico é aquilo que nos faz expandir para além dos nossos limites, para além da bolha em que cada um de nós vive. Essa parte da expansão tem a ver com o conhecimento, com a maneira como conseguimos desenvolver a parte intelectual e refletirmos sobre aquilo que estamos a sentir, aquilo que se passa à nossa volta. Considero que este triângulo — expansão, destruição e regeneração — fala também sobre emoções, relações humanas e biotecnológicas. Sobre explosões emocionais, físicas e intelectuais. É também uma questão de colapso, não como elemento apocalíptico, mas como elemento de transcendência quando ultrapassamos certas situações.

“Um projeto artístico tem de ter uma estrutura de visão, uma estratégia de comunicação. Há toda uma componente por trás da criação e da parte criativa que pode ser expandida e pode ser potenciada com mais investimento.”

Estamos a falar de uma componente psicológica bastante forte, então. Após o colapso há sempre algo novo a acontecer.

Exatamente. É o culminar desta peça e de todo este processo criativo. Há sempre algo novo a descobrir e um lugar novo onde podemos chegar. Por muitas mais explosões que existam, por muitos mais desafios e barreiras, o quebrar dessas barreiras pode-nos levar a lugares novos que nos fazem avançar e progredir.

Lua Carreira / Fotografia de Joanna Correia

Foste cofundadora da Enfim, associação do artista, uma incubadora de projetos artísticos em dança, teatro e audiovisual. Achas que há espaço e condições para a criação destes projetos em Portugal? Enquanto artista, quais são os principais desafios que alguém que pretende seguir a dança, por exemplo, ou desenvolver um projeto artístico ainda enfrenta no nosso país? 

Penso que o grande desafio tem a ver com as questões financeiras e com a disponibilidade de investimento que existe. Essa é a grande questão. Não falta criatividade, não faltam iniciativas. Falta investimento na cultura e quando falo sobre investimento na cultura, falo não só a nível estatal mas também a nível privado. Acho que o privado é uma componente que pode ajudar a cultura a crescer bastante, tendo em conta a parte do mecenato e dos patrocínios. Há muitas possibilidades e muitas maneiras para se poder desenvolver investimento. Mas acho que esse é o grande desafio, a grande alavanca que falta e que pode potenciar ainda mais os projetos criativos. Depois, se falar da parte dos artistas, a partir do momento em que haja essa disponibilidade depois surge um outro tipo de pensamento. Pessoalmente, tenho um grande cuidado nos projetos, com a parte da estrutura de visão. Um projeto artístico tem de ter uma estrutura de visão, uma estratégia de comunicação. Há toda uma componente por trás da criação e da parte criativa que pode ser expandida e pode ser potenciada com mais investimento. 

Achas que pode haver uma ligação, uma comparação entre a psicologia do ser humano, esta capacidade de se autodestruir e depois reinventar, com os próprios ciclos da natureza e até os próprios ciclos tecnológicos? Uma vez que todo este desenvolvimento tecnológico pode ser usado para o bem, mas também há ideia de que se clicarmos no tal botão, podemos destruir tudo. 

Sim, exatamente. À medida que fui desenvolvendo este projeto houve várias reflexões sobre situações psicológicas como, por exemplo, uma sensação de vazio, uma sensação de ansiedade, um ataque de pânico, uma dissociação. Houve uma reflexão muito grande sobre esse tipo de experiências e, com a equipa, surgiu também a questão de como estas situações psicológicas são, elas próprias, pequenas explosões que vão continuar a acontecer. Não quer dizer que exista um colapso, um momento de transcendência, um momento de superação de situações psicológicas que depois nunca mais voltem a acontecer. O que é interessante sobre esta parte do colapso é que isto é um ciclo e não quer dizer que esse momento mais destrutivo não vá voltar a acontecer. Esse momento destrutivo, no entanto, acaba por ser desconstrutivo e uma reconfiguração. Essa questão cíclica que pode acontecer a nível psicológico está, de facto, presente na natureza e está presente na tecnologia quando falamos sobre softwares e desenvolvimentos open source. O open source quer dizer que alguém vai pegar naquilo que está feito e, se calhar, vai destruir ou vai emancipar ainda mais. Na Inteligência Artificial pode haver uma expansão, pode haver uma destruição da maneira como aquilo está a ser feito ou pode ser reconfigurado de outra maneira. Essa questão cíclica, penso que sim, está muito presente na tecnologia. 

Há alguma outra área de estudo que gostarias de explorar para as tuas performances?

O meu interesse em explorar outras áreas vem sempre da necessidade que tenho na criação em específico. No ano passado fiz uma peça para os alunos finalistas da Escola de Dança do Conservatório Nacional e falámos muito sobre as novas gerações e a ligação que têm com a tecnologia. Isso levou-me para as questões sociais ligadas a comunidades e cidades. Se puder nomear uma a explorar no futuro, mas num outro capítulo, seria a arquitetura, e como a arquitetura e o urbanismo se estão a desenvolver com a tecnologia e a performance. O corpo habita a arquitetura e o urbanismo é o que faz viver, portanto, diria a arquitetura e a parte do urbanismo. 

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