Entrevista. Luís Afonso: “Há quem confunda o cartoonista com o humorista”
Luís Afonso é um nome indiscutível da imprensa diária em Portugal. Este orgulhoso alentejano nasceu em Aljustrel em 1965 e vive em Serpa desde 1988. É reconhecido por ser o autor dos cartoons “Barba e Cabelo” n’A Bola, “Bartoon” no Público, “SA” no Jornal de Negócios ou “A Mosca” na RTP/Antena1. Usa esses meios para produzir uma variedade de humor, sarcasmo e crítica diária há mais de 30 anos; o foco dos seus cartoons pode ser social, económico, desportivo, ou todos em simultâneo. Por vezes, confessa alguma “preguiça” para o desenho e tem-se envolvido progressivamente no campo da literatura. Neste momento tem três livros publicados na editora Abysmo: “O Comboio das Cinco” (2012); “O quadro da mulher sentada a olhar para o ar com cara de parva, e outras histórias” (2016); e o seu último livro é “Morte de A a Z” (2022). Recentemente, publicou o breve conto “O Chef” na colecção Contos Singulares da editora Relógio D’Água. Conduzimos esta agradável conversa na Casa Comum do Bairro Alto – Centro Cultural, que cedeu gentilmente o espaço a poucos dias da inauguração. Esta foi a primeira entrevista nas instalações do derradeiro projecto do livreiro José Pinho (que faleceu este ano), um grande companheiro de aventuras de Luís Afonso.
A tua aventura começa com a saída de Aljustrel para ir estudar Geografia, depois regressas ao Alentejo para morar em Serpa e constituir família. Conta-nos um pouco do teu percurso desde esta época até chegares ao desenho e à carreira de cartoonista.
Já desde miúdo que desenhava, fazia bandas desenhadas e coisas assim para “consumo interno”. Fiz uma BD de quatro páginas e vim com ela para Lisboa com a ideia de a publicar num jornal qualquer. Na Faculdade de Letras aconselharam-me um jornal, que na altura tinha um suplemento que publicava jovens, o Diário, na Venda-Nova, então fui lá e publicaram a minha BD. Quando fui buscar os originais, umas semanas ou meses mais tarde, perguntaram-me se não queria fazer cartoons. E nunca tinha feito, e foi aí que comecei a fazer os cartoons sem nunca ter pensado nisso. Pensava, eventualmente, em fazer banda desenhada, e sempre em paralelo com outra atividade, que nessa altura seria o que estava a estudar, a Geografia. E acabei o curso ainda sem saber o que queria fazer no futuro, se queria ser professor ou outra coisa qualquer. Depois de aparecerem os cartoons na minha vida, comecei a fazer semanalmente e nunca mais parei, desde 1985! E era uma carga de trabalhos, a fazer um cartoon semanal, talvez dois ou três dias antes, ficava em stress com medo de não ter uma ideia. Foi em 1988, quando acabei o curso, que voltei ao Alentejo, porque fui atrás da minha mulher que foi para lá trabalhar, mas nem eu nem ela somos de Serpa. Terra onde nunca tinha ido e que não conhecia.
Dirias então que existe uma forte influência alentejana no teu sentido de humor?
É das tais coisas que não tenho como dizer que não, somos influenciados pelas nossas experiências e pelas nossas vivências, isso é óbvio. Às vezes, digo assim um bocado na brincadeira: assumo-me como um luso-alentejano. E digo isso no sentido de que toda aquela parte do interior do Alentejo ou Algarve, são regiões do país esquecidas. A malta é completamente ignorada em quase tudo, tanto que, quando me ligam para subscrever serviços ou responder a questionários, respondo algo que sinto que não é mentira, digo-lhes: “não estou em Portugal”. Aquilo está esquecido, não temos hospital funcional, não temos nada… Que tínhamos quando fui para lá! Havia Hospital, comboio, centro de saúde a funcionar bem e, neste momento, só abrem o Hospital durante o dia e não há urgências, já não há comboio, a escola (onde ainda cheguei a dar aulas) degradada. Tenho três filhos e constituí lá família, porque era um sítio porreiro, que nos dava confiança e tudo funcionava, estávamos muito melhor lá e puderam crescer e brincar à vontade. Foi uma opção nossa e, indo para lá hoje, nós não teríamos tido filhos, ou seja, não poderíamos ter ido para Serpa.
“Acaba por ser uma espécie de filtro, não só na perspectiva de ser alentejano, mas também na de estares afastado dos centros de decisão. Mas a malta de Lisboa também se esquece disso, que está afastada dos centros de decisão do mundo, nessa escala acaba por ser tão periférica como Serpa.”
E como descreverias o seu impacto na maneira como pensas, escreves e crias?
Acaba por ser uma espécie de filtro, não só na perspectiva de ser alentejano, mas também na de estares afastado dos centros de decisão. Mas a malta de Lisboa também se esquece disso, que está afastada dos centros de decisão do mundo, nessa escala acaba por ser tão periférica como Serpa. A nível nacional, todas as decisões são em Lisboa. Nos cartoons, o facto de fazer muita coisa sobre o que se passa em Portugal, e do poder em Lisboa, acaba por ser benéfico esse afastamento. Gosto de estar longe por ter muito menos contacto com políticos ou pessoas sobre as quais vou fazer cartoons, apesar de conhecer alguns até do tempo de faculdade, visto que estudei em Lisboa. Prefiro sempre não conhecer e estar mais à vontade, não é uma chatice para ninguém e não dá origem a “se faço é porque faço” ou “se não faço é porque não faço”. Isto em relação aos cartoons, nos livros de ficção, eu aí não sei se a influência é boa ou má, é diferente. São histórias que me vêm à cabeça sem ter que ver com nada, e os cartoons são sobre a actualidade, com o que está a acontecer. São a propósito de alguma coisa e nos livros é a “despropósito” (risos).
Tenho histórias mais urbanas, porque também tenho um lado urbano, e outras menos urbanas, como o “Comboio das cinco”, que foi inspirado por um sinal de trânsito que está perto de Serpa. Já muitos anos depois de terem desmantelado a estação, remodelaram um troço de estrada e colocaram uma placa nova a indicar algo como “estação a 1km”, e quem passa por ali pensa que há uma estação e não há. E foi esse o “clique” para o meu primeiro livro de ficção, e com medo de assinar um livro de prosa como um gajo que vem dos “bonecos”, tinha algum desconforto com alguma intolerância que existe neste país, é o “cada macaco no seu galho”. Não estava à vontade e sentia-me inseguro, e o livro é escrito por uma personagem, Lopes – o escritor pós-moderno. Que aparece no livro em boneco também e propõe a um cineasta passar o livro para cinema, e eles próprios se encarregam de mandar o livro completamente abaixo. E foi o João Paulo Cotrim que me incentivou a continuar a escrever, e só no livro seguinte escrevo sem bonecos pela primeira vez. O último foi mais complicado, pois era para ser em 2020, mas, entretanto, estive quase a morrer em 2019 com uma dissecção da artéria carótida. Depois aparece a pandemia e tudo se atrasa, o João Paulo morre em 2021 e o livro estava pronto e saiu finalmente em 2022. Entretanto nesse ano tive um cancro e, por ironia dos destinos, o livro é “A Morte de A a Z”, sobre 26 personagens que morrem, de A a Z! E foi apresentado duas ou três semanas antes de ser operado e que, para já, está estável.
Visto que possuis carteira profissional de jornalista, gostarias de ter sido jornalista a tempo inteiro?
Não… Quer dizer, quando faço uma coisa estou a fazê-la a tempo inteiro, mas tenho de ter várias coisas a tempo inteiro! Não consigo ter só uma, porque depois canso-me. Gosto de fazer várias coisas, tanto que por dia tenho quatro cartoons. E, no momento que estou a trabalhar neles, estou completamente absorvido por aquilo. A rotina do jornalismo, se não tiveres a possibilidade de fazer reportagens e outras coisas, se ficares só na redacção… Não é para todos. Há uns que gostam de editar e coordenar, outros de andar por fora e a investigar. Cansava-me se estivesse só num projecto, e escrever livros veio ajudar-me ainda mais nisso.
“Acho que vivemos numa altura perigosíssima pela capacidade que a desinformação tem perante a informação, ou seja, a desinformação chega às pessoas muito mais depressa do que a informação. E as pessoas, não sei se numa perspectiva masoquista ou mesmo de atracção pelo abismo, estão mais abertas e predispostas a receber a desinformação.”
Como vês o “estado da arte” desta profissão essencial ao funcionamento de uma sociedade democrática?
Acho que vivemos numa altura perigosíssima pela capacidade que a desinformação tem perante a informação, ou seja, a desinformação chega às pessoas muito mais depressa do que a informação. E as pessoas, não sei se numa perspectiva masoquista ou mesmo de atracção pelo abismo, estão mais abertas e predispostas a receber a desinformação. E neste momento vivemos num mundo a preto e branco, onde as pessoas já tomaram as suas decisões e já escolheram o seu lado, e depois as notícias e os factos só encaixam nas suas narrativas. As pessoas já têm uma narrativa nas suas cabeças que acaba por ser o fio condutor da sua acção e da sua visão. Portanto, o jornalismo está a ser ameaçado pela desinformação e tem outras ameaças, como a insustentabilidade do negócio. Porque o modelo de negócio mudou completamente com a internet, os jornais e meios de comunicação foram demasiado temerários no início e acharam que seria uma aliada das edições impressas, para sua divulgação, e que depois iria consolidar as leituras nas edições impressas.
Como bem sabem, as pessoas habituaram-se a ler gratuitamente e o negócio entrou em perigo. Mas algumas pessoas, até das gerações mais novas, já começaram a perceber que a informação tem um custo. Por exemplo, há alguns sinais positivos: o Público tem agora muitas assinaturas digitais, mas tem sido complicado e ainda não está na situação ideal. E é engraçado que nunca se consumiu tanta informação como hoje, até os emigrantes conseguem consumir as notícias como se estivessem aqui, como o meu filho que está em Toronto e lê os mesmos órgãos de comunicação que leio. É importante que as pessoas estejam predispostas e aceitem que a informação tem custos, tal como qualquer produto, se não questionam o pagamento destas coisas que consomem, seria importante estarem dispostos a pagar pelo acesso a sites de informação de qualidade, que é um serviço especializado onde, por vezes, os jornalistas até são o seu próprio inimigo, ao aceitarem o papel do “cidadão jornalista”, é que daqui a pouco também temos o “cidadão cirurgião” e assim. É importante que se tenha aprendido a profissão.
“É impressionante como tens pessoas radicalizadas em pleno século XXI, sabendo a história da humanidade e onde levou a intolerância e o radicalismo. Mas continua a existir, e vai haver sempre alguém que não aceita o que tu fazes, com pontos de vista completamente diferentes.”
Sobre a liberdade de expressão, e partindo de exemplos recentes de Steve Bell no The Guardian ou da Cristina Sampaio no Spam Cartoon, ao caso mais extremo do Charlie Hebdo. Achas que a autonomia do desenho humorístico enquanto ferramenta crítica (ainda) está sob ameaça?
Vai estar sempre sob ameaça. Há sempre intolerantes, como sempre houve. Acho que a intolerância faz parte da natureza humana e isso é uma coisa que tu pensas que pode melhorar com o tempo que passa, mas não melhora. É impressionante como tens pessoas radicalizadas em pleno século XXI, sabendo a história da humanidade e onde levou a intolerância e o radicalismo. Mas continua a existir, e vai haver sempre alguém que não aceita o que tu fazes, com pontos de vista completamente diferentes. Por exemplo, lembro-me de ter conhecido um cartoonista iraniano há uns anos em Brasília, fui lá membro de um júri de um concurso de cartoons. Massoud Shojai Tabatabai, acho que era o nome dele. Um tipo encantador, impecável, e falámos bastante tempo sobre as visões diferentes destas coisas. E, depois, por causa de uns cartoonistas dinamarqueses, ainda antes do Charlie Hebdo, que fizeram caricaturas de Maomé. O que é que ele faz? Organizou um salão em Teerão a gozar com o Holocausto e com os judeus.
Depois até troquei umas mensagens e ele “sim, vocês gozam com Maomé e não aceito isso”. E atenção, estamos a falar de um tipo do mais civilizado e cordial e afável, que não percebe que se goze com Maomé e que o desenhem, porque é contra a religião, e também que não gostam de judeus, que são falsos e assim e assado. Como é que me convencem a mim a gozar com o Holocausto e a ele a gozar com o Maomé? É uma complicação. E aqui há uma certa culpa ocidental, depois de terem satisfeito os seus interesses nas regiões, saíram e dali só podiam crescer fundamentalistas e assim. Por exemplo com a Primavera Árabe, onde os fundamentalistas, mais organizados, subiram ao poder. Não podia dar bom resultado. E se as nossas sociedades ocidentais, por alguma razão, ficassem todas fragmentadas, quem subirá ao poder será alguma seita ou organização extremista e fundamentalista, tipo aquelas milícias pro-Trump ou assim.
“Às vezes, prefiro não fazer algo sobre um assunto no imediato, a fazer uma asneira. Preciso de perceber o que é que se está a passar e perceber o quadro geral, e não logo ao primeiro estímulo e de comentar tudo passados minutos de acontecer.”
Dos cartoons aos “memes” na internet, como encaras a evolução do humor e da crítica nestes formatos?
Quanto aos memes, confesso a minha ignorância, é que não tenho redes sociais e isso circula mais nesses meios. Mas sei que são fotografias utilizadas com texto, que são algo rápido e com alguma eficácia. O cartoon tem assim de fazer o que o jornalismo deve fazer em relação ao “jornalista cidadão”, que é acrescentar algo mais. No sentido de pôr alguma coisa e um pensamento mais elaborado, e isso implica não fazer algo demasiado rápido. Às vezes, prefiro não fazer algo sobre um assunto no imediato, a fazer uma asneira. Preciso de perceber o que é que se está a passar e perceber o quadro geral, e não logo ao primeiro estímulo e de comentar tudo passados minutos de acontecer.
Produzir qualquer forma de arte, com a cadência com que o fazes há mais de 30 anos, não será fácil, como lidas com a pressão do imediatismo relacionada com o formato tira diária?
O formato defende o cartoon editorial, é que se fazes e constróis a ideia do zero, grafismo e tudo, é muito difícil acompanhar o ritmo diário. Agora, trabalhando sobre a tira pré feita tu podes trabalhar na ideia por cima desse ambiente já definido.
Exacto, e em 2022, na apresentação do teu último livro na Casa Abysmo do Fólio (acompanhado do Valério Romão), mencionaste que agora gostas mais de escrever do que de desenhar. Como gostas mesmo é de escrever, ficaste contente com a evolução das técnicas de desenho digital?
O aspecto digital permite-me trabalhar em qualquer parte do mundo, com uma facilidade incrível que não tinha há trinta anos, quando trabalhava com aguarelas e tinta-da-china. tinha uma ideia e depois desenhava, para materializar essa ideia podia levar duas, três ou quatro horas e, às vezes, ao fim desse tempo tinha uma ideia melhor. Era um drama, porque sentia que tinha uma ideia melhor e tinha de estar a acabar porque já não tinha tempo útil. Com o método de trabalho digital encurtei imenso o tempo gasto no desenho, posso esperar mais tempo para realizar a ideia que quero, mas tive de deixar cair o elemento material do desenho, agora com aguarelas e tinta talvez conseguisse fazer um ou outro cartoon por semana, diariamente é impossível…
Sabendo que não se deve distinguir preferência entre os “filhos”, qual das tuas séries te dá mais gosto a criar?
É mesmo isso dos filhos, tem graça porque as séries nasceram mais ou menos em paralelo com os meus. O meu filho mais velho tem à volta de um ano a menos que a minha série mais velha, o meu filho do meio tem a idade do “Bartoon” e só o meu filho mais novo é que não nasceu alinhado com nenhuma série. É mesmo difícil dizer qual gosto mais, a grande sorte é que não colidem entre si e são sobre áreas diferentes, e não poderia ser de outra forma ao trabalhar para diferentes jornais, era um bocado complicado. Ora, quando tenho um tema de economia ou finanças é para o Jornal de Negócios; de política ou informação geral nacional e internacional, aí tenho duas hipóteses: no Público ou na RTP com “A Mosca”, mas aí o formato ajuda-me a escolher, uma coisa mais longa é para “A Mosca” e uma coisa mais curta e incisiva vai para o “Bartoon”. Se for mais importante o aspecto gráfico, vai também para este, pois “A Mosca”, apesar de ser uma série animada, também passa na rádio, o que explica ter poucos elementos gráficos, porque passam ao lado dos ouvintes; um tema que seja de desporto é para A Bola, ainda que às vezes existam temas que se entrelaçam e que passam pelo futebol, pela política, e pela economia.
Qual o momento que mais te orgulha na tua carreira?
Tive vários momentos marcantes, é difícil escolher. E nem vou por prémios que recebi ou nada disso, que é significativo, mas há outras coisas que me marcam. Talvez, o momento em que dou início às minhas colaborações, foi muito marcante começar a fazer o “Barba e Cabelo” n’A Bola em 1990, que hoje é a tira de cartoon em imprensa mais antiga em Portugal. O início do “Bartoon” é, obviamente, muito importante para mim, passar a fazer cartoons diários no Público. Houve vários momentos importantes, até parece mal dizer isto, mas tenho de dizer que o momento mais importante será hoje, ao chegar a casa e fazer os cartoons para amanhã, que ainda não estão feitos.
Quais os cartoonistas, comediantes e artistas que mais te inspiram (nacionais ou não)?
É assim, e atenção, falámos aqui várias vezes de humor, mas o cartoonista não é necessariamente humorista. Aliás, grande parte das vezes, o cartoon é feito só para pensar, às vezes é até amargo ou triste. Pode ser várias coisas, tem de provocar ali alguma reacção ou incomodar, e levar-nos a questionar ou pensar sobre alguma coisa. Cada vez mais há quem confunda o cartoonista com o humorista, até já tenho participado em sessões onde metem “Luís Afonso – Humorista”. Há uma necessidade de tornar as coisas em rúbricas humorísticas, e nem vejo programas de televisão há anos, nem vejo aqueles tipos do stand-up, sou um perfeito ignorante, não conheço nem sigo, conheço os Monty Python. Em relação a artistas e cartoonistas, neste momento, identifico-me muito com o que a Cristina Sampaio faz, uma amiga de longa data, fora disso gosto muito do trabalho dela; o José Bandeira que fazia no Diário de Notícias e acabaram com aquilo não sei bem porquê, mas ainda colabora no JN na parte desportiva, gostava muito da do DN. Isto mais dentro do meu estilo, mas também gosto de ver cartoons diferentes como os do André Carrilho… O João Abel Manta e o Stuart Carvalhais, o próprio Rafael Bordalo Pinheiro, têm todos coisas fantásticas. Mas o João Abel Manta é, talvez, o que marca mais a minha geração. Gosto muito do registo dele. É que, ainda por cima, começo a fazer cartoons sem referências, só de banda desenhada. Os cartoons que conhecia na altura eram os da “Mafalda” e os “Peanuts”, e aquilo não tem graça todos os dias, não lia a analisar aquilo e, quando sou confrontado com a ideia de fazer cartoons, começo a fazer sem ter qualquer referência nessa área. O que é engraçado, para o bem e para o mal.
Apesar de já teres alguma presença em animação, recentemente estreaste em televisão a tua curta-metragem “Everestalefe”, onde foste guionista, productor, co-realizador e ator. Como foi esta experiência?
Sim, foi reproduzido recentemente em televisão n’A Bola TV, mas estreou num festival de cinema nos Estados Unidos, para onde fomos selecionados. O filme é muito estúpido, é uma curta de 30 minutos com o João Garcia. Foi parar a um festival de curtas, o Directors Circle Festival of Shorts e fartei-me de rir, quase que rebolei no chão quando fomos escolhidos (risos). Mas depois tive o tal problema da carótida e fui proibido de viajar de avião por causa da pressão, não podia por causa disso, a carótida rompeu. Fazer o filme deu-me muito gozo, mas é uma brincadeira a não repetir desta forma, porque é só despesa. Isto porque fui eu que produzi e não recorri a qualquer financiamento.
Agora uma pergunta verdadeiramente importante. Quando é que o Pedro Lamares tem direito a aparecer em destaque numa capa tua?
Isso é uma coisa que ainda tem de ser muito bem analisada. Mas no próximo não será, talvez no outro a seguir!
“O João Paulo Cotrim… Com ele tenho tantas e tantas histórias, é difícil estar a escolher uma. Nós eramos como irmãos.”
Como amigo e autor da Abysmo, deve ser estranha a sensação de estar na casa do João Paulo Cotrim na sua ausência. Conta-nos um pouco da vossa história e peripécias.
O João Paulo Cotrim… Com ele, tenho tantas e tantas histórias, é difícil estar a escolher uma. Nós eramos como irmãos. Acho que ainda o conheci no tempo da Bedeteca, mas ele também andava pelo Alentejo, não sei se pela Lusa, no distrito de Évora. Mas nunca nos cruzámos, na altura trabalhava com o Camilo Mortágua (que trabalhava com ele) como Geógrafo para a Associação Terras Dentro, na implementação do primeiro programa “LEADER” em Portugal. E nessa altura o João Paulo também estava no distrito, mas não tenho a certeza se me cruzei aí com ele, talvez tenha sido mesmo no início dos anos 90 na Bedeteca. A verdade é que ficámos amigos desde aí, quase irmãos. Uma história muito engraçada, e pegando no Lamares, foi ele ter encenado a capa do Comboio das Cinco. O João Paulo sentou-se num banco daqueles de jardim e faz a encenação da posição do Pedro Lamares na capa interior do livro, depois peguei na foto dele e coloquei por cima do Pedro e ficou uma capa muito melhor! (risos).
Na Casa Abysmo no Fólio 2023, contaste uma história muito engraçada sobre como conheceste o Luiz Pacheco, podes relembrar esta história surreal para quem não esteve presente?
A história do Luiz Pacheco está ligada à Ler Devagar, e já nem sei em que ano foi. Lembro-me de ter ido lá para me encontrar com o Zé Pinho, que ainda não tinha chegado, e então sentei-me numas mesinhas que eles lá tinham na altura. Entretanto chega um tipo vestido assim com uma espécie de roupão (risos), e diz-me “pá, paga-me aí um galão” e a cara não me era estranha. Estivemos ali uma data de tempo a falar e, entretanto, chega o Zé e pergunta-me “estás aí a tomar conta dele?”. Passado um bocado, assim a meio da conversa, é que percebo que era o Luiz Pacheco, autor que adoro.
“Era impressionante a maneira como o Zé Pinho contagiava as pessoas, a energia dele era contagiante para quem trabalhava com ele. Era um vírus contagioso, mas um vírus bom.”
Estamos a realizar esta entrevista no espaço da nova livraria da Casa Comum do Bairro Alto – Centro Cultural, o último grande sonho do José Pinho. Podes falar da vossa afinidade e alguns momentos marcantes que queiras recordar?
O Zé Pinho é outro daqueles amigos, que por acaso tenho andado a perder bastantes amigos com quem me dava particularmente bem, o Zé foi outro, um cúmplice. Foi meu sócio na livraria que montámos em Serpa em 2002, mas o Zé começa connosco logo em 2000. Na altura já era sócio da Ler Devagar e, quando lhe mostrei o espaço meio em ruínas onde ia ser a livraria, que todas as pessoas que lá tinham ido ficaram chocadas com a ideia de a fazer ali e acharem que não tinha pernas para andar, lembro-me perfeitamente do Zé olhar em volta encantado com aquele espaço. Se o mostrei a cem pessoas, noventa e nove disseram que era má ideia, e uma, o Zé Pinho, que achou que aquilo era fantástico. E ele era assim, um indivíduo de começar vários projectos, como o LX Factory e o próprio Fólio. Quando ele me contou como ia fazer aquilo não conseguia imaginar como ia ser com aquelas livrarias e assim, que agora já me habituei a ver todos os anos. E os projectos continuam depois dele. Era impressionante a maneira como o Zé Pinho contagiava as pessoas, a energia dele era contagiante para quem trabalhava com ele. Era um vírus contagioso, mas um vírus bom.
Tiveste uma livraria em Serpa, a Vemos, Ouvimos e Lemos, como foi gerir a tua própria livraria?
Não geria, e como não tinha capacidade de gerir um espaço porque não tinha tempo para aquilo, depois tive de ceder o espaço a amigos e depois ficaram outros amigos, até chegar a uma situação em que já ninguém conseguia manter aquilo. E neste momento está fechada.
Na tua opinião, e aproveitando a tua forte ligação ao Alentejo, qual seria o caminho para a descentralização cultural e socioeconómica do país?
Era descentralizar mesmo os serviços, era fazer algo que acho que seria fácil num país assim pequeno e era contribuir para a coesão territorial do país, tal como colocar serviços e instituições importantes noutras regiões. Por exemplo, vamos supor, nada impedia a Assembleia da República em Castelo Branco ou o Palácio Presidencial em Viseu, e espalhar ministérios por vários sítios. Isso contribuiria muito para mudar o país, e há tanta coisa que já se faz à distância e podiam reforçar a rede ferroviária, por exemplo. Isso sim seria apostar no desenvolvimento e coesão territorial do país!
Sobre novidades que podemos esperar para breve, quais os projectos em que estás envolvido de momento e quando os veremos?
Como disse há bocado, o meu projecto mais importante é o que tenho a fazer mais logo. Mas no âmbito das novidades tenho uma exposição chamada “Ora, faço gravuras…” no Museu Bordalo Pinheiro. Publiquei recentemente “O Chef”, na Relógio D’Água, um conto que escrevi para a revista Granta a convite do Carlos Vaz Marques, que a dirigia na altura. Enquanto estava em convalescença, a Ana Margarida de Carvalho convidou-me a participar na colecção “Contos Singulares” porque me via a escrever um “conto singular”, acabei por aceitar e dei ali uma “volta” ao texto, porque precisava de um arranque diferente. Aproveitámos também a ilustração de capa, do André Carrilho, que acho magnífica. No entanto, não tenho assim nenhum livro de literatura para breve, não tenho nada entre mãos, para o ano vou ter um livro de cartoons realizado a propósito dos Jogos Olímpicos de 2024 que será só com desenhos, feito em colaboração com o Comité Olímpico, é o que tenho de momento. Vamos ver se consigo acabar até lá!