Entrevista. Luís Severo: “Este disco tem mais silêncio. Era a única saída possível”
Numa tarde de Primavera, encontrámo-nos em Alvalade com o Luís Severo, no estúdio que partilha com os Capitão Fausto, e fomos dar uma volta por este bairro que o tem acolhido nos últimos tempos. Entre mesas e cadeiras com formato de gelado, frangos de churrasco, e uma cadela extremamente bem comportada (que o Luís fez questão que entrasse na fotografia), conversámos sobre o seu novo álbum, O Sol Voltou, e sobre como foi tê-lo feito, pela primeira vez, sozinho.
Este álbum tem um som um pouco diferente do anterior e é só produzido e tocado por ti. Achas que é um som mais autêntico do que nos álbuns anteriores?
Faço música há 11 anos e nunca tinha feito nada assim sozinho. Mais do que uma teimosia, acho que é uma consequência de todos estes anos em que inevitavelmente aprendi com pessoas. Depois, quanto ao som em específico ser bastante diferente, foi uma vontade porque, se eu for a ver, havia muita semelhança estética e de som entre o Cara d’Anjo e o Luís Severo e não me fazia sentido nenhum repetir. Acho que aí começaria a ficar preguiçoso. E acho que este não é de todo um disco preguiçoso. Nesse sentido, fez-me bastante sentido alterar. Percebo que seja diferente e que tenha algumas coisas diferentes, mas eu acho que som que ficou é bastante meu.
A certa altura estava a fazer-me lembrar mais os Flamingos.
Isso é bastante engraçado, porque quando comecei a fazer estas músicas, comecei mais a dedilhar na guitarra e até toquei as músicas ao Coelho [Radioactivo, aka João Sarnadas, parceiro nos Flamingos] porque eu achava que se começasse a fazer músicas assim dedilhadas iam ficar exactamente iguais às dele. Disse-lhe isso e ele “Não, não digas isso” E eu toquei-lhe tipo a “Primavera” ou a “Joãozinho” e ele “não pá, tá-se bem”. Mas sim, como é muito o que o João dá a Flamingos e como é também aquilo que eu aprendi para este disco, reconheço essa semelhança.
E, já agora, há mais coisas preparadas com Flamingos, daqui para a frente?
Estamos a compor mas não queremos voltar a tocar ao vivo sem ter novas coisas editadas, acho que não tinha muita lógica.
Em singles, na mesma?
Eu gosto muito de singles, arrependo-me muito de não termos continuado com essa cena de ir pondo singles a sair. Mas tínhamos muitas pessoas à nossa volta que nos chateavam “Quando é que vem o disco?”. E acho que se calhar acusámos um bocado esse toque e ficámos mesmo a achar que devíamos ter um disco. Mas depois como é muito difícil fazeres um disco com uma pessoa que vive longe de ti e não tens muito tempo, acabou por ser muito difícil. Mas, apesar da banda não estar viva, a nossa ligação está muito viva, tanto que ele fez a capa deste disco. E ele tá a fazer tudo o que são os artworks deste disco, e também tocou comigo ao vivo nesta última turné, numa data em que o [Manuel] Palha não pode ir e ele substituiu. A banda voltar a estar viva é uma questão de tempo, porque o que é mais importante, que é nós estarmos bem um com o outro, isso está lá.
E voltando ao que estavas a dizer de fazeres as coisas sozinho, porque é que não decidiste fazer isso antes? Foi falta de confiança?
Sinceramente, eu neste disco não decidi logo fazer tudo sozinho. Eu comecei a tentar e, se não estivesse a resultar, fazia como fiz sempre. Ou seja, no fundo, a minha cena era: se fosse precisar eu ir ao Palha, ou ir ao Diogo [Rodrigues], que vá com as coisas já mais avançadas do que fui antes. Pá, e no decorrer das coisas, achei que ia pedindo opinião às vezes e o Palha dizia-me “Pá, não quero mexer nisto, acho que estás a chegar aí a uma coisa em que não faz sentido eu mexer” e isso foi algo que também me contentou, ter pessoas à minha volta que ficavam “pá, faz tu”. Claro que há uma confiança nova que acho que é fruto de estar há 11 anos a aprender com pessoas mesmo distintas. A Cuca Monga ensinou-me outras coisas, que é este segundo disco homónimo, depois o outro disco [Cara d’Anjo], que foi na Interpress, com o Sambado, o Ricardo Amaral, Luís Barros, depois Flamingos ensinou-me outras, depois quando estive a produzir discos à Fetra também me ensinaram outras coisas. E acho que a soma dessas coisas fez com que chegasse a um ponto em que dissesse “okay, eu sou um músico que assina em nome individual, mas na prática nunca apresentei nenhum resultado que fosse somente meu”, e isso estava a fazer-me sentido porque grande parte da minha vida é em estúdio. Eu componho em estúdio e é um momento em que as canções são solidificadas.
Além disso gravaste parte deste álbum em São Miguel, no Arquipélago, o Centro de Artes Contemporâneas da Ribeira Grande.
Não foi gravação. Eu acabo o outro disco em 2017 e estive um ano – até ao início de 2018, que foi quando fui aos Açores – sem compor. Estive basicamente um ano a apontar frases soltas, a ter ideias para uns acordes, para uns pianos, a compor já excertos de muita coisa que usei, muitas frases soltas, porque estava à procura de algo diferente. Não me estava a fazer sentido começar logo a compor músicas. Estava a querer fazer coisas sem aquela pressão e depois logo se via. E depois só quando fui para os Açores é que comecei a querer fechar, a concluir. E lá cheguei a compor duas músicas e comecei outras. E depois, quando volto em 2018, comecei em casa a fazer toda a produção, e depois fui para estúdio que foi onde já tive algumas ajudas e tive pessoas que, enquanto eu tocava, iam ouvindo e dizendo “este take não está bom”, “este take não está mau”, “faz mais assim”, “faz mais assado”. Mas até Outubro de 2018, que é quando venho para aqui e faço o disco cá, já tinha todos os arranjos daquela base dos pianos e guitarras, e foi só aqui que comecei a ser confrontado com o que as pessoas iam achando. Apesar de ter sido feito sozinho, não foi tipo “acabou” e só depois as pessoas ouviram. Porque acho que isso não conseguia, também.
Apesar de tocares tudo sozinho, há mais instrumentos, neste disco.
Antes de mais, tentei que houvesse uma semelhança um bocadinho maior entre as músicas. E há uma base comum que são as guitarras clássicas, as acústicas, as eléctricas e os pianos. Quase todas músicas têm estes elementos, e, numa fase inicial, quando já tinhas as músicas compostas, fiz os arranjos para estes quatro instrumentos. Em cima, foi tudo sintetizado. A camada superior além desta base acústica é completamente sintetizada e foi tudo ao computador, no fundo. O que eu queria era criar este contraste de ser simultaneamente o meu disco mais acústico e o meu disco mais electrónico. Ter isso tudo num só.
Até começas com aquele som baixo.
Sim, é uma cena MIDI.
E depois entra uma guitarra dedilhada…
Sim, completamente limpinha. E outra coisa que acho que fez o som deste disco bastante diferente, mas que era algo que eu queria fazer, é a voz ser mais na tua cara. Ou seja, acho que é um disco mais tenso, mas foi algo intencional. Há uma tensão que vem da voz não estar com bué dobras ou estar com bué máscara. Não, a voz está bué crua, despida, salvo em raros momentos. E está alta, está à frente. Tem-se um choque frontal. Ou seja, de certa forma, no que toca à voz, mais próximo ao que é eu cantar uma música ao vivo, sem quase nunca haver dobras, nunca serem mais que uma voz ao mesmo tempo, que todos os outros discos têm. Eu tentei fazer montes de takes e depois pelo feeling ia escolhendo, tanto que aconteceu uma coisa gira de eu nem estar muito preocupado e depois o Diogo me dizer “Olha, há aqui uma música em que dizes a mesma frase de quatro formas possíveis, qual é que tu queres?” Porque eu mudava as letras de cada vez que cantava [risos]. Acho que esse lado interessou-me e, nesse sentido, acho que foi o disco em que eu me diverti mais. Mas também o que sofri mais.
Sentiste alguma influência do facto do teu álbum anterior te ter tornado mais famoso, ou com um público mais diverso?
Há sempre gente que vai gostar mais de umas coisas, mais doutras, que vai achar mais piada ao que eu tinha feito antes, que vai achar mais piada ao que eu faço agora. Isso há-de sempre acontecer. O que eu acho que isso me deu de bom foi neste momento já não precisar de falar tão alto para que me oiçam. Já tenho mais atenção e obviamente que isso me deixa feliz. O facto deste disco ter mais silêncio, ser um disco onde não há tanta pressa de cantar as coisas e de dizer as coisas, é um bocado fruto disso. Depois de tudo o que me aconteceu, a única saída possível que eu vi depois do ano que tive, tão intenso e com uma realidade que não conhecia de mais algum mediatismo, foi fazer um disco com mais silêncio, com mais calma, com mais pausa. Foi a saída que eu vi. Acabou por ser um bocado a minha terapia para tudo o que estava a acontecer.
E que outros artistas, ou coisas que andaste a ouvir, influenciaram o som deste álbum?
A nível de guitarras, não consegui, mas também não quis fazer igual, o som do Sufjan Stevens, do Carrie & Lowell. Têm um som que eu acho muito bonito. O meu, apesar de tudo, é um bocadinho diferente, mas reconheço que numa ou noutra coisa é um som que eu gosto. Acho que em algumas electrónicas, não sei se sente ou não, mas ouvi muito o Robert Wyatt, que é um músico de que gosto. Mas não sei, eu oiço muita coisa e deixo essa parte mais para quem queira pensar nisso.
E também ouviste mais música tradicional portuguesa?
Porquê, sentiste isso? [risos]
Senti um pouco, principalmente na “Cheguei Bem”.
E na “Acácia”, também, que é um bocadinho fado. Sim, para essa canção ouvi algum vira minhoto, andei mesmo a ouvir rancho durante bué tempo. Que percebo que as pessoas se calhar depois associem ao Fausto, porque ele também fez esse caminho, mas ouvi bastante rancho e música minhota. Sendo que essa música depois tem aquela parte C que depois muda completamente, que é assim mais maluca. Na verdade, isso é outra canção e eu depois juntei-as. Este disco teve duas músicas que não consegui pôr e não foi por não gostar delas. Porque se fosse por não ter gostado delas nunca mais as editávamos. Foi porque não lhes arranjei espaço na setlist, não estava a conseguir pô-las, então acho que ainda vou lançar duas. E depois havia essa que era uma canção inteira e que acabei por usar uma parte para funcionar como uma conclusão. Ou seja, acho que no fim de contas, também foi isso que me fez querer que o álbum saísse inteiro de uma só vez e não tivesse single antes.
Mas ainda vai ter single?
Sim, claro, mas eu quis que ele saísse inteiro porque gostava que quem tomasse a decisão de ouvi-lo todo tivesse essa possibilidade, porque acho que é o meu disco mais para se ouvir todo e menos para ouvir individualmente. Não foi para ser diferente, foi porque gostava que saísse todo.
Lisboa estava omnipresente no teu outro álbum, e senti que neste te focas menos na cidade e mais na natureza, nas estações do ano.
Sim, é algo que me influencia muito. O meu mundo é muito influenciado pelo dia que está, pelo sol que está ou não está, pelo tempo. Acho que não é algo meu, as pessoas são um bocado assim. Mas decidi falar mais disso, porque estava a sentir essa vontade. Não sei muito bem porquê, mas estava a sentir vontade de falar mais das sensações associadas a cada temperatura, a cada luz, a cada falta de luz, a cada escuridão, a cada tempo, a cada etapa, a cada momento, a cada mês, a cada dia da semana.
Mas O Sol Voltou é um sinal de esperança?
É. Também se calhar por ter alguma morte, tem algum renascimento, eu acho que sim. Acho que acaba por ser um disco um bocado dividido, porque tem simultaneamente as minhas músicas mais felizes e mais tristes dos últimos anos. Acaba por ser bastante extremado.
Acaba por haver um oscilar entre sensações, andar atrás de uma coisa e depois não querer essas coisa.
Sim. Sem querer fazer análises sobre muitas pessoas e sobre coisas colectivas, mas sinto bastante isso na vida nos últimos anos. Sinto bastante a vida nos últimos anos como uma oscilação entre euforias muito positivas e euforias negativas. Mas sempre tudo muito intenso e com algum extremo. E acho que o disco também fala um bocadinho disso. Fala sobre esse fácil oscilar entre estados de espírito, no fundo.
E de onde vem aquele final da “Joãozinho”, aquela conversa?
É uma recolha de um Natal, de uma cassete que eu encontrei em casa [risos].
Dá assim um tom muito caseiro.
Eu achei que fazia sentido ali naquela música. Como eu estava a ver muito o disco como uma viagem, como etapas, fazia-me sentido que a música seguinte, que eu já sabia qual era, não entrasse logo. Não me estava a colar entrar logo. Queria ter qualquer coisa ali. E como a “Joãozinho” é uma música mais familiar, fez-me sentido pôr ali uma pimenta familiar. E achei que a conversa tinha piada e pus. Apesar de tudo, de uma forma mais abstracta e romantizada, há vários momentos no disco em que falo de algumas pessoas na minha família e lhes faço homenagem. E foi um bocado instintivo ter isso lá.