Entrevista. Luísa Sobral: “Gosto de quando a Literatura não me mostra só um lado da história. Não quero que me digam: ‘É suposto sentires-te assim’. No meu romance, tentei dar os dois lados”

A reconhecida cantautora portuguesa estreia-se agora com um romance. Depois de dois livros de literatura infantil, Luísa Sobral publica Nem Todas as Árvores Morrem de Pé, editado pela Dom Quixote.
Revela que, ao longo da vida, devido à sua profissão de cantora e compositora, desenvolveu uma grande capacidade de se intrometer na vida dos outros, roubando-lhes histórias com a perícia dos carteiristas do elétrico 28. É quase o caso deste romance: o livro que surge de uma notícia partilhada por uma amiga, que contava a história de um casal alemão a viver em Vila Real.
Luísa tinha o final da história, bastava-lhe inventar o início. Para isso, rebobina a vida das personagens até à Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, e monta um enredo junto do Muro de Berlim, que dividiu famílias – incluindo a da protagonista.
Neste episódio do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, gravado ao vivo na Livraria Buchholz, em Lisboa, Luísa conta-nos como foi o processo de escrita do livro, que desafios teve na construção do seu primeiro romance, que inspirações encontrou – e até canta para o público presente a canção que lhe surgiu antes de escrever a obra.
Magda Cruz: O teu romance está há um mês nas livrarias, está nos tops de vendas e vai na quinta edição. Como é que te sentes com uma estreia assim?
Luísa Sobral: Tem sido tudo muito doido para mim, porque obviamente que nós queremos, sempre quando fazemos alguma coisa, queremos que corra bem, não é? Mas primeiro, só este mundo já é muito diferente do mundo da música, que eu já sinto que, de certa forma, domino, pelo menos os passos e como é que as coisas acontecem. Este mundo eu não domino de todo e então perceber que estas edições todas num mês é uma coisa que não acontece normalmente deixa-me assim sem palavras. No outro dia estava a pensar que, às vezes, nós dizemos que a realidade supera a ficção, mas às vezes eu penso que a realidade também supera o sonho. E isto era assim um sonho.
MC: É mais do que estavas a imaginar.
LS: Muito mais. Nunca pensei nisto. Também não sei o que pensei. Queria que fosse bem recebido, mas não estava a pensar que fosse assim com estas partilhas todas, as pessoas a postarem que estão a ler o livro e a contarem o que sentiram. Isso é muito giro porque é muito diferente da música. Acontece na música, as pessoas dizerem, “Olha, esta canção”, ainda hoje me aconteceu. Uma senhora que me veio dizer que a canção que eu escrevi para o meu filho foi a canção da gravidez dela. E isso é muito bonito, mas não acontece assim desta forma tão ativa e todos os dias como acontece com livro. E essa partida tem sido muito especial para mim.

MC: Há quem possa ter ficado surpreendido, no bom sentido, que tenhas escrito romance, mas quem está atento saberá que escreveste dois livros infantis, por isso até já tens o hábito de escrever, de contar histórias. Não podemos dizer que escrever um romance fosse uma surpresa, ou dirias?
LS: Os livros infantis, para mim, estão muito perto das canções. O primeiro, então, este aqui, “Quando a porta fica aberta”, para mim é quase uma canção, só que não tem melodia. Porque é escrito também forma de poema, rima, e então eu escrevi quase como se fosse uma canção. Depois “O peso das palavras” também tem a sua poesia, mas já é uma poesia muito mais livre e já, pronto, não tem uma estrutura. Mas eu associo sempre mais isso à canção só porque são histórias curtas. O romance para mim foi toda uma nova viagem que teve momentos prazerosos, outros não tanto. Acho que no início não foi muito prazeroso porque, para mim, era muito difícil fazer uma coisa sem ver o fim. Pior, às vezes via o fim, mas ele ia se afastando em vez de aproximando. Os meus personagens queriam coisas e iam lá à vida deles e eu nunca os conseguia agarrar. Era como se eu não os conseguisse agarrar. E pensava: “Não, agora quero ir não sei para onde”, e o fim ficava mais longe. E isso angustiou-me muito, porque eu escrevo canções rápido e concretizo rápido.
MC: Rápido, num par de horas, não é?
LS: Exato. Ou um dia ou o que é que seja. Mas o romance não é assim. Então, eu tinha de ficar a viver com estas pessoas durante um ano. Foi um ano. E pronto, isso foi para mim, ao início, um bocadinho angustiante. Eu até sentia o coração bater muito rápido, todos os dias, de angústia, de pensar “Como é que vou acabar isto, como é que eu vou acabar isto?”, que é uma estupidez. Eu agora, por exemplo, comecei trabalhar num segundo projeto e já não sinto nada. Sinto uma paz. Ou seja, o livro ensinou-me muito.
MC: Pode ser uma evolução da escrita do primeiro para o segundo romance.
LS: Sim, e ensinou-me a estar paz com o processo e em paz com o fim não estar à vista. Está tudo ok. Este [romance] parei há alguns meses também para dar espaço a promover este livro e estar a pensar neste livro. E estou ok com isso. Então, eu acho que aprendi coisas para a minha vida, porque só aprender a estar calma é bom para mim e para todas as me rodeiam. [risos]

MC: Portanto, temos à nossa frente uma compositora, cantora, artista e agora autora. É este o péssimo exemplo que queres dar aos teus filhos? Que podemos ser várias coisas.
LS: Pois é, por isso é que, às vezes, os meus filhos também dizem que vão ser várias coisas. A minha filha junta astronauta com cantora, com pintora, e eu nunca lhe vou dizer que essas coisas não dão para juntar. Quem sou eu? Lá está. [risos] Eu digo sempre aos meus filhos… O meu marido é treinador de cães. Ou seja, nós os dois fazemos coisas assim um bocado diferentes dos outros pais, se calhar, mas os dois trabalhamos naquilo que amamos mesmo. Eu lembro-me de dizer isso ao meu marido, por exemplo, quando ele quis deixar o trabalho dele e dedicar-se só aos cães, eu lembro-me de dizer, “Olha, não sei se isto vai correr bem financeiramente. Os dois estamos em profissões assim um bocado, pronto, somos os nossos próprios patrões, mas mais que tudo, há meses que podem correr bem e outros não, mas uma coisa eu sei, nós vamos dar aos nossos filhos o exemplo de seguirmos aquilo que nós amamos mesmo”. E isso para mim já é muito bom.
MC: Vamos entrar então no livro. E queria começar por um pormenor interessante no prefácio de Nem Todas as Árvores Morrem de Pé, que é que ouves histórias por amizade, enquanto amiga, mas que guardas por profissão. É importante para ti estar aberta às histórias, às novidades, ouvir o mundo para depois refletir e, se calhar, sai uma canção, nesse caso saiu um livro. [risos]
LS: Sim, claro que sim. Eu gosto muito de ouvir as histórias dos meus amigos. Eu presto muita atenção. As minhas amigas normalmente até gozam um bocado porque eu decoro os pormenores mais estranhos. Elas dizem: “No outro dia, fui com a não sei quantas…”. E eu: “Aquela tua amiga que gosta muito de gelado com sabor a morango?” Eu decoro coisas super estranhas. Mas eu acho que, lá está, uma parte vem de eu ser boa ouvinte, eu acho que gosto mesmo de ouvir, mas a outra vem de eu estar sempre à procura de alguma coisa interessante que eu possa usar. Por exemplo, no outro dia… Porque há histórias tão bonitas que vêm ter conosco, nós só temos que estar atentos. Eu canto nos cuidados paliativos e, no outro dia, um dos doentes contou-me, e isto se calhar eu vou usar no meu próximo livro, porque eu achei a história tão bonita. E ele disse-me que tem um amigo que é maquinista do comboio ali da Linha de Cascais. Eu faço voluntariado nos cuidados paliativos da CUF Tejo. Ele está num quarto… Porque dão os quartos melhores às pessoas que ainda estão bem o suficiente para também usufruir da vista. E então ele está desses quartos e tem vista para a linha do comboio. E então o amigo, sempre que passa, liga-lhe antes para ele ir para a janela, e depois ele apita duas vezes o comboio quando passa. Eu achei tão bonito aquilo.
MC: Que incrível. Aquelas duas pessoas têm um pacto. Ele apita e só ele é que sabe que dois apitos são aqueles.
LS: Exatamente. E eu pensei: “São estas histórias…” Assim como a história de que estamos a falar há pouco, de uma canção minha também, que também me vieram contar. É sobre duas pessoas que vivem na mesma aldeia em novas, e depois afastaram-se durante muito tempo. Ela casou-se. Ele nada. Ela teve uma filha e ele ficou assim, sempre apaixonado por ela. E, entretanto, eles são do Alentejo, mas encontraram-se ali por aos lados da Expo [Parque das Nações, em Lisboa]. Os dois viviam no mesmo bairro, e encontraram-se, ela já viúva, e voltaram-se a apaixonar. E, entretanto, começaram a namorar, e esta minha amiga contava que eles iam juntos para o Alentejo e ficavam lá na casinha dela e tal. Ela dizia assim, “Ai mãe, mas…” Porque a mãe já era mais velha e ela perguntava: “Mas dormem juntos?” E ela dizia: “Ai filha, dormimos tão juntinhos, tão juntinhos, que eu às vezes não sei quais são os meus pés ou os pés dele…” E eu pensei: “Não…” [risos] Escrevi logo uma canção. Chama-se “Dois namorados”. E então, virou logo canção nessa tarde. Ou seja, pronto, eu vou guardando estas coisas. Esta história em específico, deste livro, foi uma notícia que me enviaram sobre um casal alemão que veio viver para Portugal e mudaram os seus nomes, que não sabemos que nomes eram, eles nunca disseram, para Maria Feliz e José Feliz. Ou seja, eles eram conhecidos como os Felizes, em Vila Real.
MC: Exatamente.
LS: Eles eram muito conhecidos lá em Vila Real porque faziam xaropes, mezinhas através das plantas. Ela conhecia muito bem as plantas. E eram conhecidos por isso, por ajudar muito as pessoas com essas coisas. E o que me chamou à atenção foi o facto de, às tantas, foi-lhe diagnosticado um cancro da mama. Ela percebeu que aquilo já estava numa fase mesmo terminal. E então eles decidiram suicidar-se juntos. E quando eu li a notícia, pensei “Que ironia o casal, os Felizes, terem este desfecho.” No outro dia, também aconteceu isso quando vi uma notícia de homem que matou não sei quantas mulheres e o nome dele era Justo. Ou seja, estas coisas mexem imenso comigo.
MC: É material artístico.
LS: Muito. E eu também guardei, mas ainda não fiz uma canção. E então, pronto, nós temos só que estar atentos, não é? Eu acho que é… Essa notícia, ela virou canção, a canção chama-se “Maria Feliz”, mas depois quando eu comecei a ver as fotografias da Maria Feliz, houve qualquer coisa naquela senhora, ela tinha uma força no olhar, aliás, dá para verem porque ela está na internet, e ela era assim,… Tinha um carisma, era muito bonita, mas uma força. Eu pensei: “Não, esta senhora quer ser mais do que uma canção.” Então, comecei a escrever aquilo que eu achava que ia ser uma peça de teatro. Porque eu fiz teatro, mas ninguém me chama para fazer teatro. E eu gostava muito de fazer. Então comecei a escrever uma peça para ser eu a fazer, já que ninguém me chama. [risos] Mas pronto. Mas a questão é que… Ali os personagens começaram-me logo a ensinar que ela não queria ser canção e ela não queria ser peça. Ela queria ser romance e eu tive que ir atrás dela.

MC: Foi aí que percebeste que a história tinha mais potencial para ser romance e não só uma música.
LS: Sim, porque eu queria saber o que é que… Eu sabia ao fim. Exatamente, porque é que também escrevi o livro assim, de começar no fim. Eu sabia o fim, mas eu queria saber o que veio antes. E eu tinha algumas coisas, também não queria ter mais. Eu só tinha o facto de ela vir da Alemanha de Leste. Sabia que ela tinha esta paixão pelas plantas. E sabia que ela tinha tido um amor em Itália. Mas eu também não queria saber mais, porque às tantas ia-me condicionar. Já me sentia um bocado condicionada com o contexto histórico.
MC: O romance está mais no campo ficcional do que do real.
LS: Sim, sim, muito mais. Eu não faço ideia se estas coisas são… Ou seja, calhar até acertei em coisas, não sei. Não sei. [risos] Mas também era, para mim, interessante poder ser eu a preencher ali os passos em branco.
MC: Tenho aqui a letra da canção “Maria Feliz”. A minha ideia era ler o poema todo, mas vou vos poupar a minha leitura. Até te convidava a ler. Queres?
LS: Eu posso cantar a música. Faz mais sentido.
MC: Eu não ia pedir tanto. [risos]
LS:É só porque, às vezes, os poemas lidos em canção não são mesmo assim bons poemas, ou seja, eles têm que vir com a melodia.
“Maria Feliz”, de Luísa Sobral
Quis o tempo me levar
Antes do tempo de deixar
Antes de estar madura para cair
E tudo o que eu fiz
Foi nascer Maria Feliz
Foi um pacto delicado
Partirmos lado a lado
Mas se outro mundo houver
Quero entrar de braço dado
Pois tudo o que eu quis
Foi ser Maria Feliz
Tenho em mim
Toda a natureza
Sou raiz que não está presa
Árvore que parte antes do fim
E assim já não tenho medo
Parto em paz mesmo que cedo
Se te tenho a ti
Vou sem olhar para trás
Serei o que sempre quis
Eternamente Maria Feliz
Até sempre Maria Feliz
MC: Convido-vos, de facto, a irem a ler ou ouvir de novo a música, depois de lerem o romance. Faz todo o sentido, se forem ver. “Sou raiz que não está presa”; “Árvore que parte antes do fim”; “Foi um pacto delicado”; “Partirmos lado a lado”… Faz todo o sentido.
LS: Por acaso, até pedi para porem no fim do livro, mas acharam que ficava melhor no início. Acho ques era mais interessante ler… Mas, ao mesmo tempo, nós também lemos logo o fim [da história].
MC: Eu acho que seria interessante ter a letra da música no final, até com pequeno QR code ou algo assim.
LS: Mas tem QR code. A tua versão é a primeira edição?
MC: É, sim.
LS: Logo na segunda edição, nós pusemos um QR code porque eu li o “Revolução”, do Hugo Gonçalves, e no fim tem um QR code para a playlist e eu disse: “Também quero.”
MC: Roubaste a ideia. [risos]
LS: Sim! Gosto, também quero.
MC: Mas acho muito interessante que nos dês o desfecho do livro logo nas primeiras páginas. Portanto, o fim não era o mais importante, era o caminho até lá, não é? Como é que a nossa protagonista chega lá? E a nossa protagonista, que tem vários nomes. Ao início, não sabemos por que nome a chamar, depois passa a M. e, no final, percebemos que é de facto Maria Feliz.
LS: Sim, sim, sim. Eu também não lhe quis dar nome porque achei interessante o facto de a própria Maria Feliz não querer revelar o seu nome, como se o nome dela ficasse só no passado e eu achei-se interessante de também não dizer o nome dela, não inventar nome para ela.
MC: A certa altura, perguntam-lhe: “Que nome é que queres ter? Que nome é queres daqui adiante, largar o teu nome alemão.”
LS: Sim, sim, Mas eu não quis inventar um nome alemão. Até porque depois seria difícil dizer no audiolivro. [risos] Por acaso, houve um nome no audiolivro que eu li mal e tive de andar para trás e ler. Como que era? A Mavi, mas eu dizia Maivy, em inglês.

MC: Como é foi essa experiência de gravar o audiolivro de “Nem Todas as Árvores Morrem de Pé”?
LS: Eu adorei, adorei porque lá está… Eu gostava de fazer teatro e ninguém me convida. Então, gravar o livro foi uma maneira de eu fazer exatamente aquilo que oiço na minha cabeça. Ou seja, as pessoas que vão ouvir o livro ouvem exatamente como eu queria que ouvissem. Então, às vezes, eu dou assim… Faço algumas pausas em sítios onde eu imaginei uma pausa e onde a vírgula não é suficiente para criar essa pausa. Foi muito divertido. É duro. Uma pessoa está a ler durante muitas horas.
MC: O livro tem cartas. As cartas são mais desafiantes de ler.
LS: Sim. Depois eu tentava fazer vozes um bocadinho diferentes. Mais que tudo do Misha, não é? Porque era um homem. Tentava fazer vozes um bocadinho diferentes e fazia vozes diferentes também naqueles pensamentos no meio e depois na parte que se está a contar a história. Mas foi muito divertido, fiquei com vontade que me convidassem para fazer outros livros que não o meu.
MC: Com o sucesso que vai ter, se calhar ainda recebes uns convites. Estou interessada também na maneira como te preparaste para o romance. O romance tem uma índole também histórica, tem um pano muito fundo definido: a Alemanha p´s Segunda Guerra Mundial. Como é que foi a preparação? Tiveste leituras obrigatórias pelas quais querias passar? Foi mais ficção ou leste mesmo… Sei que recorreste a documentários, por exemplo.
LS: Na altura, eu disse num podcast que estava a um escrever livro. Logo quando eu escrevi as primeiras dez páginas. Porque eu escrevi dez páginas e depois abandonei. Exatamente por essa parte, de me sentir muito presa com o contexto histórico, porque eu queria que fosse realista, eu queria que aquilo pudesse ter acontecido. E então senti-me muito presa e larguei. Disse num podcast que estava a escrever um livro e contactaram-me de uma editora. E lembro-me de ela me dizer uma coisa que foi. (Não é a editora com quem eu lancei). Mas lembro-me de ela me dizer “Não se preocupe muito com isso, porque depois se dizem coisas que não são verdadeiras, no fim escrevemos que é tudo ficção”. Mas eu não gostei disso.
MC: Não gostaste dessa ideia?
LS: Não, não gosto. Primeiro, para mim, mais valia no fim, dizerem que a Luísa é preguiçosa. Era igual. Para mim, era igual. Ou seja, das duas uma: ou eu estou a criar um mundo realmente de fantasia, ou eu estou a dizer que ali tem de poder ter sido ali, não é? E então, eu lembro de, nessa altura, dizer “Eu não quero fazer isso assim”. Mas disse: “Vou ler o que escrevi, a ver se ainda gosto”. Porque tinha passado quase um ano desde que eu tinha escrito as dez páginas. E peguei naquilo e pensei “Olha, eu gosto disto”. Então em vez de ir…
MC: E era o início ou o fim? Essas 10 páginas?
LS: Era o início, eu não tinha escrito o fim ainda. E então fui ler, gostei, e depois pensei: “Vou fazer isto de outra forma. Eu vou pesquisar e depois vou escrever com a inspiração daquilo que eu pesquisei”. Eu acho que muito mais interessante, porque vez de… eu digo isto algumas vezes, mas vez de o período histórico ser algo que me condiciona, passou a ser algo que me inspirava, que é completamente diferente. Eu li muitos livros. Li um livro que foi talvez o mais importante, se chamava “The Other Side of the Wall” e é um livro escrito por uma mulher que viveu realmente do outro lado do Muro, e ela sentiu a necessidade de escrever esse livro porque há tanta coisa que é dita sobre o outro lado por pessoas que não viveram aquilo. E ela diz: “Há tanta coisa que era boa também, e de que ninguém fala, e não é justo isso.” Então, ela escreveu este livro. E este livro foi muito importante para mim, até para tentar dar um bocadinho dos dois lados porque, de vez em quando, eu escrevia coisas que eram boas, que aconteciam do outro lado também, como todo o investimento na parte…
MC: Mesmo a nossa protagonista está convencidíssima de que aquele lado tem coisas boas e quer viver lá.
LS: Mas porque tinha. Por exemplo, o papel da mulher na Alemanha Oriental era muito mais relevante do que na Alemanha Ocidental. Uma mulher na Alemanha Oriental tinha os mesmos trabalhos dos homens. Estava longe disso acontecer na Alemanha Ocidental ainda. O divórcio, por exemplo. O divórcio na Alemanha Oriental era uma coisa normalíssima. Na Alemanha Ocidental, uma mulher não se podia divorciar ainda, se quisesse. Ou seja, havia realmente coisas que estavam muito à frente. Mesmo a maneira como uma mulher via o seu corpo, e sentia essa liberdade de mostrar o corpo. Topless era uma coisa normal na Alemanha Oriental. Na Alemanha Ocidental, não. Então, havia coisas que realmente estavam à frente: o valor que davam às artes… Havia muitos artistas, havia muito investimento nas artes, na música clássica, havia muito investimento no desporto. Eu gosto quando a Literatura faz isso comigo, que é, não me mostra só um lado. Eu não quero que me digam: “É suposto sentires-te assim”; “É suposto achares tudo horrível; ou “É suposto esta pessoa ser má”. Eu acho isso muito pouco interessante. E então eu tentei dar os dois lados que aquele livro me deu, porque a verdade é que havia coisas interessantes também do outro lado e com as quais podíamos ter aprendido. Agora, fechar as pessoas num sítio e não poderem sair, automaticamente é uma coisa horrível, é? Parece que tudo o que é válido deixa de ser por causa dessa atitude.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: