Entrevista. Madalena Sá Fernandes: “O cronista revela o que o leitor ainda não sabe sobre a sua própria vida”

por Magda Cruz,    17 Junho, 2024
Entrevista. Madalena Sá Fernandes: “O cronista revela o que o leitor ainda não sabe sobre a sua própria vida”
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Largou o leme do romance por uns momentos para nos apresentar um livro de crónicas. Madalena Sá Fernandes foi escrevendo estes textos ao longo dos anos e o resultado é “Deriva”, agora publicado pela Companhia das Letras.

Em entrevista a Magda Cruz, fala do seu método de escrita, conta como conheceu o autor do prefácio do livro, o humorista brasileiro Gregório Duvivier, e enumera vários livros que a marcaram, como “Dom Quixote”.

Neste episódio do “Ponto Final, Parágrafo”, a conversa anda à roda da crónica, mas há tempo para refletir sobre o papel da Inteligência Artificial na Literatura e da presença dos gurus do bem-estar nas redes sociais e no mundo dos livros.

Magda Cruz: Dizes que fazes entrevistas a ti própria. Qual é a primeira pergunta que costumas fazer nessas entrevistas?

Madalena Sá Fernandes: Eu fazia mais porque agora tenho quem me faça as entrevistas, inclusive tu, agora. (risos) Mas antigamente era um pouco exagerada: era receber um prémio qualquer e qual era a sensação de o receber… Esse género de coisas. 

MC: Mas é um bom cenário para se pôr. 

MSF: Sim, eram os cenários mais hiperbólicos possíveis. Ia fazendo, às vezes, em viagens de carro… Ia imaginando os cenários dos sonhos a responder às perguntas. Porque eu ouço muitas entrevistas. Gosto muito de entrevistas. E leio também. Então punha-me sempre: “E se fosse eu?”

MC: A entrevista mesmo enquanto género literário.

MSF: Sim, sim. A entrevista, para mim, é um género. Há entrevistas que são géneros literários que me interessam bastante. 

Magda Cruz e a autora de “Leme” e “Deriva”, Madalena Sá Fernandes, no espaço da editora Penguin Random House

MC: E fazem-se até livros com entrevistas. E as tuas entrevistas a ti própria são em voz alta, são na cabeça. Estou te a imaginar no carro…

MSF: Não, não. Eram na cabeça. Eram imaginárias, mesmo. Mas não ponhas isso no presente, Magda. Isso era passado. (risos)

MC: É passado, é passado. Vamos tirar o presente da conjugação. O teu primeiro romance chama-se “Leme”. O teu livro de crónicas tem o título “Deriva”. Tentaste ter aqui uma continuidade. É quase o mesmo léxico. 

MSF: Não há uma continuidade porque são coisas totalmente distintas. O leme é um livro com um tom totalmente diferente. Foi o meu primeiro livro. Nós estamos a vê-los, lado a lado. Na capa do “Leme” temos uma menina a dar a mão e a avançar em direção ao mar. É uma pintura do Sorolla. E acho que isso diz um bocado sobre o tom do livro, também. Ela está meio cabisbaixa porque o livro tem, evidentemente, uma certa tristeza, mas também está a avançar em direção ao mar. Portanto, há uma direção. O próprio título, “Leme”, implica uma direção. Já a “Deriva”, seria o oposto, no sentido em que não há uma direção definida. São assuntos mais diversos que se possa imaginar. E a rapariga da capa da “Deriva” em vez de ir em direção ao mar, está debruçada como se fosse apanhar um búzio, a apanhar uma coisa pequenina. Portanto, em vez de ter tomado uma direção e seguido, está concentrada em coisas que viu pelo caminho, dispersa e sem qualquer objetivo concreto. E aí o nome também evidencia isso: uma ausência de direção e de sentido e um dar importância a coisas que, aparentemente, não teriam importância. Uma dispersão total de assuntos. 

MC: Gosto desse pensamento. 

Madalena Sá Fernandes com o seu mais recente livro, “Deriva”, um livro de crónicas editada pela Companhia das Letras

MSF: Agora, de facto, há, claro, a questão náutica, a questão marítima. (risos) Tenho particular gosto pelo mar e pelos temas do mar. Portanto, acho que há aqui uma questão de gosto pessoal. E de haver uma coerência estética ou temática, nesse aspeto. Embora, como expliquei, sejam coisas bastante distintas. Apesar de o “Leme” ter sido o meu primeiro livro, a “Deriva” corresponde a crónicas que eu escrevi antes do “Leme”, muitas delas. Outras depois. 

MC: Boa. Não tinha pensado nisso. 

MSF: Sim, são a primeira incursão no meio literário. Uma espécie de bater à porta e perguntar: “Posso?” E muitas delas escrevi com 20 anos. E, por isso, tenho carinho por elas e corresponde a um percurso, a uma primeira incursão neste mundo. Mas uma coisa mais despretensiosa, num tom mais divertido. E também com espaço para o humor. 

MC: Era mesmo aí que eu ia pegar. As crónicas estão cheias de humor. Transparece esse humor na tua escrita. Era uma faceta que querias mostrar com este livro, já que no “Leme” não há tanto espaço para a deriva humorística. 

MSF: Sim, eu privilegio bastante o humor. No “Leme” não há tanto espaço, embora haja pequenos resquícios, mas claro que o tema não tão propício ao humor. As crónicas são um género que sempre me agradou precisamente pelo humor. Não só porque dá para escrever todo o tipo de crónicas, inclusive crónicas mais sentimentalistas, mais íntimas, que também me agradam. E há uma relação da crónica com esse lado íntimo, com esse lado até de histórias de família… 

MC: Escreves sobre a tua avó, sobre as tuas filhas…

MSF: Sim, sim. Porque sempre li bastantes crónicas — especialmente desde que fui para o Brasil. E as crónicas têm várias vertentes: têm essa vertente íntima, familiar, muito característica que me agrada. As crónicas começam no jornal, originalmente, e é um espaço super objetivo e de notícias e de assuntos relevantes para uma sociedade. E, de repente, o cronista está a escrever sobre o seu irmão, a sua avó, a sua tia… E eu sempre adorei isso. Isso é propositado. Isso não é gratuito. Quando um cronista escreve sobre a sua avó, sobre uma coisa demasiado específica da sua vida, está com essa liberdade literária, mas está a escrever sobre a experiência de ter uma avó, a experiência de ter uma filha… E, portanto, acaba por reverberar nos outros por ter esse lado universal que a experiência demasiado específica da família de cada um tem. Eu sempre achei isso muito engraçado. E acho engraçado esse contraste entre o objetivo, o relevante e o super subjetivo, super íntimo… E há, também, uma relação entre a crónica e o segredo. E aí também liga com o jornal porque o Jornalismo também vive muito de divulgar o que as pessoas ainda não sabem, o explicar, dar esse conhecimento. E depois o cronista brinca um bocadinho com isso e vai revelar o que o leitor ainda não sabe sobre a sua própria vida. Acho isso muito engraçado. E sempre gostei de fazer isso. E esse lado de brincar com o segredo, de brincar com a revelação — mesmo no sentido literal, do que está velado, tirar esse véu. 

Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”:

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