Entrevista. Mafalda Anjos: “Comecei a olhar para o mundo e pensei que precisava destas reflexões de ‘Carta a um jovem decente’ — e acho que não servem apenas para os jovens”

Começou no Direito, mas rapidamente percebeu que a sua carreira passava pelo Jornalismo. Mafalda Anjos tem a observação como superpoder. Quando era miúda, gostava de olhar o céu estrelado. Hoje, olha o mundo todos os dias com espanto e curiosidade.
Mãe de quatro filhos, a ideia para o seu novo livro, “Carta a um jovem decente” (editado pela Contraponto, no final de 2024), surge depois de ter escrito cartas aos seus filhos quando estes atingiram a maioridade. Os ensinamentos que vinham nessas páginas deram um livro e são agora o mote para este episódio do podcast literário “Ponto Final, Parágrafo”.
Em entrevista a Magda Cruz, explica as origens do conceito de decência, como políticos como Donald Trump subvertem as regras da decência e que livros, sobretudo cartas, a inspiraram para a escrita deste novo título. O livro é destinado a jovens, mas pode ser lido por pais e mesmo avós.
Magda Cruz: Ao longo da vida, foste lendo livros que são cartas e foste acumulando referências epistolares. Sentes que sempre tiveste este livro, “Carta a um jovem decente”, dentro de ti e que só precisavas de o passar para o computador?
Mafalda Anjos: Na verdade, não. Este foi um livro que nasceu depois de ser mãe e depois de ver os meus filhos já crescidos, com algumas angústias, dúvidas e perplexidades que fui acumulando, olhando para o mundo à minha volta e olhando para o mundo ao qual eles chegavam como jovens. E só mais tarde, quando comecei a pensar “Será que se eu for na rua hoje e me cair um vaso na cabeça ou for atropelada, eu disse aos meus filhos tudo aquilo que eu gostaria de lhes ter dito? Passei-lhes todas as informações que acho importantes, estruturais, que gostaria de ter passado?” E obviamente que a conclusão é não, não é? Porque as nossas vidas são sempre muito corridas, porque os teenagers, obviamente, têm muito pouca paciência para nos ouvir, porque as conversas não são sempre tão profundas quanto aquilo que nós gostaríamos que fossem, ou pelo menos que eu gostaria que fosse. E porque eu acho, francamente, que escrevo melhor do que falo. E consigo colocar as coisas, enquadrá-las melhor, dar-lhes mais contexto e mais referências por escrito do que falando. E por isso achei, a dada altura, quando a minha primeira filha, que tem hoje 21 anos, ia fazer 18, eu pensei: “O que é lhe vou oferecer de substancial e que possa ficar e guardar? Vou lhe oferecer uma carta com algumas destas ideias e com alguns destes pensamentos e destas questões que eu achava que era importante passar.” Isto era uma carta, naturalmente, mais pequena, não tinha a forma de livro. Uma carta com algumas páginas, mas mais pequena. E foi só depois disso e de ter escrito aquela carta e de a ter oferecido e depois passado uns meses ter pensado bocadinho mais sobre aquilo, que achei que os tempos estão de uma forma que faz sentido, se calhar, transformar aquelas reflexões, aquelas ideias numa coisa mais completa e mais substancial. Senti também essa necessidade depois, quando o meu segundo filho — eu tenho quatro filhos —, quando dele fez 18 anos, também lhe escrevi uma carta. Só que outra carta, uma carta diferente e até, estranhamente, uma carta com conteúdo diferente por ele ser rapaz. A minha carta para a minha filha ainda tinha uma componente feminista forte. Adoraria viver num mundo…. e eu cresci a achar que vivíamos num mundo que isto não fazia sentido nenhum, não é? Se eu escrevo uma carta, é uma carta unissexo. Não interessa se é para rapaz ou rapariga, mas na verdade o mundo não é assim. E eu quando comecei a trabalhar e quando comecei a confrontar-me com as imensas enormes desigualdades que existem entre homens e mulheres, percebo que sim: temos que continuar hoje a fazer este trabalho de educar para a igualdade e de empurrar as raparigas para lutarem pelos seus direitos. Portanto, a minha carta para a minha filha tinha muito esta componente. A carta para o meu filho era a explicar-lhe porque é ele como rapaz também devia fazer a mesma coisa, não é? Porque eu acho que há rapazes que não percebem isso, que o feminismo também é uma tarefa deles.
MC: E depois, essas duas cartas passam a ser a base que, mais tarde, dá origem a este livro, “Carta a um jovem decente”.
MA: Precisamente. Eu depois achei que… “Bom, tenho aqui algumas ideias e algum material que faz sentido. Comecei olhar para o mundo e achei que o mundo precisava de alguma forma destas reflexões. Acho que as reflexões não servem apenas para os jovens porque este livro reflete um pouco o ar dos tempos e obriga-nos a pensar não só sobre estes dias que vivemos, mas também sobre o nosso processo e o caminho que percorremos para chegar até aqui. É livro um pouco reflexivo nessa matéria. Acho que ele traz poucas conclusões. Ele traz, sobretudo, reflexões e algumas perplexidades, se calhar algumas dúvidas e angústias também. Mas eu acho que é importante, também, não concluir de mais e deixar que as pessoas cheguem às suas próprias conclusões e que, sobretudo, os jovens que leiam este livro fiquem com ferramentas para depois tirarem as suas próprias conclusões.
MC: Acho que é sobretudo isso: aprendem-se muitas ferramentas e conceitos ao ler o livro. Por isso é que sinto, por exemplo, que estaria muito bem enquadrado no Plano Nacional de Leitura. Depois, não basta só estar no Plano Nacional de Leitura… É preciso que o livro chegue, de facto, aos jovens. Mas achei que tinha muitos conceitos, até de política, muito interessantes para dotar os jovens dessas ferramentas.
MA: A minha ideia, por exemplo, na parte da política, na parte das redes sociais e do digital foi explicar como é que as coisas funcionam. É, obviamente, um livro que não faz uma apologia de ideologia nenhuma. É um livro que apresenta os conceitos, que os explica, explica como é que funcionam, por exemplo, a divisão entre esquerda e direita, de onde é que ela vem, como é que chegamos até aqui, o que é que caracteriza ser de esquerda ou ser de direita — que é conceito que se é que hoje em dia faz sentido.
MC: E de onde é que surge.
MA: De onde é que surgiu. Na Revolução Francesa, quando os deputados foram sentar-se nos Estados Gerais, como é que se sentaram: os a favor do Rei mais para o lado direito, os mais progressistas e liberais para o lado esquerdo — e como é que depois isto se acabou por repercutir pelo mundo. Explicar os outros critérios que hoje existem para distinguir ideologias políticas, orientações políticas, as formas de trabalhar. Mas depois, por exemplo, na parte das redes sociais, uma coisa que eu acho fundamental e que nós temos mesmo que tratar mais da literacia digital de todos — não apenas dos jovens —, mas de todos, que é explicar como é que as redes funcionam, o que é isto dos algoritmos, como é que funcionam estes filtros, os erros e os perigos da exposição pública e social. E os erros enormes que se cometem pelo caminho, que podem trazer problemas para a vida.
MC: Mas tu eras capaz de escrever livro só sobre isso…
MA: Sim, é área de que eu gosto imenso. Estudei muito e escrevi muito sobre isso. Eu, mal tinha acabado o curso de Direito, lancei-me logo com duas colegas de Direito a escrever aquele livro sobre o direito à internet e da informática [«101 Perguntas e Respostas do Direito da Internet e da Informática»] porque achava que era algo que ia revolucionar — e de facto revolucionou tudo. Na altura ainda era uma coisa super embrionária. Estava a começar, vagamente, esta coisa da Internet para todos e o comércio eletrónico. Portanto, já suscitava muitas questões jurídicas, mas desde então eu acompanhei sempre muito esta área das redes sociais e da internet. Tive a sorte, por exemplo, de ir à sede do Facebook, em Silicon Valley, em Menlo Park. Na altura, tinham acabado de comprar o Instagram, depois compraram o WhatsApp, mas consegui perceber como é que funcionava toda a empresa por dentro, Foi fascinante para mim e, se quiseres, até uma coisa que me compeliu depois a continuar a estudar isto, a estar na equipa que desenhava os algoritmos, entrevistar aquelas pessoas, falar com eles, perceber o que é que estava na cabeça deles e como é que é que funcionava. Isto foi em 2014, foi há mais de dez anos, ainda antes do escândalo do Cambridge Analytica, Mas aquilo, para mim, suscitou uma série de, por um lado, sinais de alarme e, por outro lado, acendeu muitas luzes. E fez-me perceber que é mesmo importante entendermos como é que aquilo funciona para conseguirmos ler para lá das bolhas em que somos enfiados, conseguimos não nos deixar condicionar com o mundo que nos aparece através dos algoritmos e destes filtros, não acharmos que aquilo que encontramos ali é toda a gente ou todo o mundo, como às vezes os meus filhos dizerem.
MC: Toda a gente está na net.
MA: Sim, toda a gente está na net ou toda a gente aqui à minha volta diz que não sei o quê. Eu digo sempre “Não, calma…”

MC: A Internet só nos mostra aquilo que queremos, não é?
MA: Exatamente, e não é toda a gente. É toda a gente na tua bolha e isso faz toda a diferença. E, portanto, explicar como é que funcionam estas bolhas, estes filtros e estes algoritmos é importante para os jovens perceberem que há mundo além daquela sua bolha e destes algoritmos e que eles têm que descobrir. E que, muitas vezes, esse mundo é muito diferente daquilo que eles encontram.
MC: E os teus filhos já leram o livro?
MA: Já leram o livro. A minha mais pequenina só tem 10 anos, essa ainda não leu. Se bem que ela quer muito ler e já começou. E eu digo: “Maria, salta à frente as partes…porque acho que os livros são para ler e para folhear.
MC: Não vai entender tudo para já.
MA: “O que não entenderes salta à frente, lê as coisas de que gostares.” E ela faz um esforço muito grande. Porque é curioso. Na verdade, dos meus quatro filhos, é aquela que se preocupa mais com os temas sociais e até políticos. Gosta muito, interessa-se muito e, portanto, há coisas para que ela já está desperta. Desde pequena. É uma coisa que não se explica. As pessoas dizem: “Isso tem a ver com a educação.” Bom, eu acho que eduquei todos da mesma maneira, não é? [risos]. Mas também vimos de alguma forma pré-formatados e ela vem pré-formatada com olho muito clínico para os temas sociais. Eu costumo dizer que é muito feminista desde que nasceu. [risos] E, portanto, há coisas aqui que eu sei que lhe interessam. Os outros vão lendo. Eu não sei se tens essa experiência, mas as raparigas, pelo menos à minha volta, leem muito mais do que os rapazes. E em minha casa também. A minha filha mais velha também sempre leu muito mais do que os meus filhos rapazes, mas aqui, enfim, um livro escrito a pensar neles… Claro que o livro depois é para ser lido por mais pessoas. Eles fizeram um esforço para chegar lá.
MC: É para ser lido até pelos pais e pelos avós.
MA: Sim.
MC: No livro, escreves que a carta aproxima as pessoas, mas é uma bizarria. E cito: «Porém, eu gosto de bizarrias de outros tempos, porque elas contêm muito da essência que faz de nós humanos.» Referes também uma coisa muito curiosa, que é que muitos bons livros são cartas. Quais é que recomendas? Quais é que leste para a construção deste livro, “Carta a um jovem decente”?
MA: Eu andei a reler todas as minhas referências epistolares para escrever este livro e, a dada altura, tive que parar e disse: “Não, calma lá. Para de ler coisas históricas. Porque fui a Cícero, fui reler “O Príncipe”, de Maquiavel, que também era uma carta a ensinar as regras da boa condução política, Fui reler um livro ao qual eu muitas vezes volto e, se calhar, até nos podemos centrar mais nesse, porque me acompanhou sempre, ao longo da vida, e de cada vez que o releio encontro sempre coisas novas com profundidade diferente, que é “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar, que é uma carta escrita pelo imperador Adriano, no final da sua vida, ao seu sucessor, que seria o futuro imperador Marco Aurélio. E este é livro tão incrível. Pensar que Marguerite andou a escrevê-lo durante quase trinta anos, Começou a escrevê-lo com vinte e poucos anos, porque um dia estava a passear em Roma, e ia a passar e viu uma escultura do Adriano, ficou fascinada e começou a tentar saber tudo sobre ele. E começou a escrever livro tão jovem, com vinte e poucos anos, mas com uma profundidade tão grande, colocando-se na pele de um velho, que estava a morrer, e que tinha tido uma vida grandiosa, heroica. E, a partir daí, andou uma vida toda a escrevê-lo, como, aliás, outro dos livros da minha vida, que eu acho que não falo no livro [«Carta a um jovem decente], que é o «Fausto», de Goethe. Também foi livro que Goethe andou a escrever durante a vida toda. E sempre em construção, até chegar à conclusão de que a obra estava pronta.
MC: E o que é que esses livros te trouxeram?
MA: No caso de «Memórias de Adriano», é um livro com imensas lições sobre tudo, porque é um livro que pretende ser um bocadinho como este — mal comparando, porque o outro, enfim, é uma obra de ficção absolutamente brilhante, um dos melhores livros de sempre, quanto a mim, Tem que estar sempre nas listas dos 100 melhores livros alguma vez publicados. Mas é um livro que tem ensinamento sobre tudo. Até, por exemplo, sobre porque é devemos dormir. tem ensinamentos sobre política, como é que se deve ser bom político, como é que se deve relacionar com os cidadãos, numa determinada comunidade, como é que se deve interagir com os outros, as lições que tu aprendes quando, depois já teres muitos anos acumulados e estás à porta da morte, olhas para trás e pensas “Que erros é que eu cometi, o que é eu não devia ter feito, porque é que eu perdi tempo com isto e não fiz mais aquilo?”. Portanto, este livro tem muito destas coisas. E, depois fala também, por exemplo, de igualdade, porque Adriano era homossexual e foi apaixonado por um homem que era o Antínoo, um rapaz aliás, um jovem, um escravo. E que ele fala também desse amor e dessa pulsão. E tudo isto tem tantas facetas e dimensões que permanecem atuais, que eu acho absolutamente extraordinário. De facto, é grande livro.
MC: As cartas são um conteúdo que enriquece muito o teu livro.
MA: E não só. E de outros livros de que vou falando. Falo muito livros no livro. Eu dei por mim, confesso-te, depois a ter que editar e tirar algumas coisas… Às tantas, achei que aquilo estava manancial enorme de referências e que podia se tornar…
MC: Para livro inicial já tinha bastantes, não é?
MA: Sim, exatamente isso. Que podia se tornar cansativo para os jovens, mas achei muito engraçado que uma sobrinha, filha de uns grandes amigos meus de infância, que leu agora o livro, gostou muito do livro e depois fez uma listinha com todos os livros que eu referia e mandou para a mãe a dizer: “Mãe está aqui, eu agora quero ler alguns destes.” Fez uma lista com quase todos, não todos, alguns ela já tinha lido. E eu acho que isso é engraçado. A Inês Meneses, quando fez a apresentação do livro, também dizia isso, que o livro lhe suscitou vontade de ir ler outros que eu aqui referia, porque de facto também é interessante, não é?
MC: Há mesmo alguns que, para os jornalistas, são essenciais.
MA: Sim, como «Cartas a um Jovem Jornalista», do Juan Luis Cebrián. Eu não tive formação em Comunicação Social. Eu estudei Direito e foi uma das primeiríssimas coisas que eu fui ler…. Eu fui para Direito já com a perspectiva de algum dia poder fazer Jornalismo. Sempre tive a dúvida, mas disse “Não, vou para Direito e depois logo se vê”. Ainda durante o quarto ano do curso, comecei a trabalhar num escritório de advogados, porque achei que “Já agora, deixa cá ver como é que isto funciona”. Tive essa oportunidade e ofereci-me para, claro, a custo zero, trabalhar no escritório ao mesmo tempo que estudava. E abaixo de estagiário. Imagina: se o trabalho de um estagiário é mau, trabalho de alguém que ainda nem sequer acabou o curso e nem sequer é estagiário, é pior que mau, mas para mim foi espetacular porque percebi imenso de como é que as coisas funcionavam dentro dos escritórios, a vida no Direito. E percebi: “Eu quero mesmo é, se calhar, experimentar o Jornalismo, porque é capaz de ser mais desafiante no sentido em que estás a aprender todos os dias. No Direito também, na verdade, que as leis estão sempre a mudar, mas achei: “Okay, vou fazer o estágio para Ordem dos Advogados até ao fim — e fiz, acabei o curso, fiz o estágio mais dois anos, tenho a cédula profissional de advogada, porque fiz o estágio até ao fim. Depois entreguei-a logo. “Mas quero ir ver também como é que funciona o Jornalismo”: E depois, quando acabei o curso, fui candidatar-me para fazer estágio de Jornalismo.
MC: Jornalista de Economia.
MA: De Economia. Eu não queria. Não queria Economia, mas o primeiro estágio que me apareceu à frente e que me ofereceram foi na área de Economia. Eu disse, “Bem, okay, bora lá, vamos lá.” E foi ótimo, na verdade. Foi ótimo porque aprendi imenso, estudei imenso. Comecei por ler o «Carta a um jovem jornalista», de Juan Luis Cebrián que tem as bases do que é a profissão, do que é esta coisa fundamental de ser jornalista e uma coisa que eu nunca mais esqueci que li do Cebrián, que foi diretor histórico do El País durante anos e um grande jornalista, um homem cultíssimo, inteligentíssimo, humanista. Uma das coisas que ele dizia era: “Só há uma característica fundamental para ser jornalista e essa característica é a curiosidade.”
MC: E isso tu tinhas.
MA: Isso é o princípio de tudo. Quando me deparei, muitas vezes na minha vida, com jovens que a dada altura achavam que queriam ser jornalistas e candidatavam-se para estágios… Eu acho que, muitas vezes, eles não queriam verdadeiramente ser jornalistas porque lhes faltava essa coisa…
MC: A ânsia de fazer perguntas.
MA: A ansiedade de querer saber mais, a ansiedade de se apaixonarem por uma microhistória. Às vezes são historinhas, coisinhas pequenas, que podem ser fascinantes e que nós queremos saber mais e mais. E quando tinham uma coisa entre mãos e não se apaixonavam por aquela história que podia só ter 3 000 caracteres, mas que durante umas horas ou durante umas semanas tinha que os inquietar e tinha que lhes fazer despertar brilho no olho. Eu acho que, se calhar, então não queriam mesmo ser jornalistas e alguns de facto perceberam isso, não era isso que queriam fazer. Eu não lhes desmanchava o sonho porque não queria fazer isso, mas eu sentia isso, não é? E eu acho que os próprios depois acabaram por perceber isso.
MC: Mesmo depois, se calhar, percebem e ganham essa ânsia.
MA: Talvez, mas eu acho que isso está lá, esse bichinho, essa curiosidade, esse ímpeto. Quer dizer, está lá ou não está. A escrita tu podes aprender. E isso era uma coisa que eu dizia sempre: “Tu podes querer ser jornalista vindo de todos os lados, eu aliás vim de Direito, vindo de todos os lados, vindo de lugar nenhum ou até não ter curso nenhum. Hoje em dia, isto é difícil, mas isto aconteceu. Muitos dos meus grandes colegas, brilhantes colegas, não tinham curso nenhum, mas queriam saber mais e queriam estudar mais e tinham esta coisa da curiosidade. Portanto, isso é condição essencial. Saber escrever aprendes, treinas, treinas a ler, treinas a fazer, saber falar, também se aprende muito, também tens o à-vontade que se ganha, a forma como tu depois aprendes a estar à frente de uma câmera, à frente de um microfone…. Esse à-vontade, esse treino também se consegue, A curiosidade ou tens ou não tens.

MC: E este título «Carta a um jovem decente». O título foi das primeiras coisas que fechaste. Agora duas perguntas numa: Porquê o título e porque é que devemos alcançar a decência? Porque é que um jovem deve ser decente?
MA: Este começou por ser o meu título de guerra . E eu tinha como uma coisa provocadora o conceito de decência. Na verdade, agora tem sido muito falado infelizmente pelos maus motivos porque olhas à volta e vês um conjunto de coisas que, em tempos, eram consideradas indecentes, um conjunto de ideias impronunciáveis, indizíveis, a serem passadas, e ditas, e pronunciadas, e repassadas, e revisitadas de uma forma que eu acho inquietante, que eu acho preocupante, que eu acho grave. Mas porque o conceito de decência eu achava provocador porque associado à decência está esta coisa quase bocadinho moralista e chata e não é nada disso que eu tenho mente, não é nada disso. A decência vai muito além disso. A decência ao longo da História. Depois fiz ensaio grande para o Expresso a explicar a evolução da história da decência, o é o conceito da decência, de onde é que ele vem, como é que ele nasce, desde Aristóteles, se quiseres. É muito interessante. É um ensaio que saiu no caderno principal do Expresso, no novo caderno “Ideias”, quando lancei o livro. O título é “Adeus decência, até depois”, mas tem muito a ver com esta história e evolução da decência nas suas várias facetas. E isto tem a ver com o facto de nós humanos nos organizarmos em sociedade e precisarmos de referências éticas e de uma espécie de normas de organização social e de conduta desde sempre. E um livro também muito interessante, que eu não sei se falo no livro, mas que está na minha cabeça, que se chama “A Mente Justa”. É um livro do Jonathan Haidt, que é também autor de um livro absolutamente fundamental, esse sim eu tenho a certeza de que falo neste livro, que é “A Geração Ansiosa”, que é livro de leitura obrigatória para toda a gente que se preocupa com o impacto dos telemóveis e do digital nos jovens. E esse livro, “A Mente Justa”, explica uma coisa que eu achei muito gira, que é o facto de nós — isto é uma concepção dele—, sermos 90% chimpanzés e 10% abelhas. E o que é ele quer dizer com isto? Ele quer dizer que muito do que nós somos hoje tem a ver com a nossa ancestralidade, com a nossa biologia que vem dos primatas e com o facto de sermos profundamente egoístas, de termos instintos que são egoístas e que têm a ver com a nossa sobrevivência, a nossa ancestralidade e depois termos aqui 10% de abelhas que são animais que vivem em comunidade, que entregam a sua vida a favor do bem comum, não é? Elas morrem para defender uma colmeia, para defender a rainha-mãe, entregam-se a isso. E que tem a ver com a evolução que o ser humano fez, porque foram os homens que se organizavam melhor em comunidades, em pequenos grupos, que depois também foram sobrevivendo, porque se defendiam melhor. E que tem a ver com esta capacidade de viver sociedade, de respeitar o outro, de aceitar o outro e de criar regras de convivência social.
MC: E isso é tudo de decência.
MA: E isso é tudo decência. Se quiseres, dentro do conceito de decência está isso. Eu poderia trocar a palavra “decente” por “empático”: «Carta a um jovem empático» também resultava, mas eu achei que decente é mais provocador e carrega também um conceito político importante, que a ideia de que hoje em dia há muitas dicotomias na política: esquerda ou direita, desde logo, globalistas ou soberanistas, progressistas ou liberais, que sempre foi uma divisão que foi feita na história da política, Mas há esta divisão entre decência e indecência, entre decentes e indecentes. E, por exemplo, desde 2015, quando surgiu Donald Trump na corrida eleitoral à Casa Branca, que se discute muito esta coisa do que é decência e indecência na política. Na verdade, isto vem mais de trás, eu explico isso, vem desde 1954, dos tempos do Macarthismo. McCarthy andou a fazer uma perseguição muito grande aos comunistas e depois houve um julgamento dentro do exército norte-americano em que isto foi tratado, e o advogado da acusação faz uma pergunta que ecoou pelos Estados Unidos. A televisão e a rádio eram mais com muita força e ecoou pelos Estados Unidos a ideia de quando ele pergunta: “Senador McCarthy, você não tem um pingo de decência?” E esta ideia ficou sempre como qualquer coisa que os políticos deviam prosseguir ter: decência na forma como conduziam a sua vida pública e como conduziam até as suas políticas públicas. Mas, na verdade desde que Donald Trump surgiu, desde que o novo populismo, o populismo sempre existiu como é evidente, mas este novo populismo de extrema direita surgiu com esta força toda nos últimos anos e quando começou a dizer coisas profundamente indecentes como “Eu posso dar tiro a um homem na quinta avenida, no meio da rua, e não vou perder votos por isto”… Isto chocou tanto e era tão indecente e tão indizível e tão pronunciável, mas na verdade teve tanta repercussão e, se calhar, na verdade, tanto apoio por ele dizer estas coisas tão profundamente chocantes ao invés de perder votos, como seria expectável, se calhar, há uns anos, há umas décadas, ele ganha votos, exatamente por dizer isso.
MC: Parece que é imune à indecência.
MA: Sim, porque há conjunto de ideias e de normas que se foram perdendo, que se foram deslaçando, e quanto maior o choque, quanto maior o assombro que traz uma ideia, mais repercussão mediática ela tem. Isto tem a ver, voltamos ao tema dos algoritmos e das redes, com como as redes sociais hoje que estão construídas. Uma ideia que for transgressora, que for fora da norma, que for arrojada, e uma ideia arrojada pode ser uma ótima ideia, mas uma ideia que for transgressora e ofensiva, tem muito mais repercussão, tem muito mais tração. Uma fake news, por exemplo, tem sete vezes mais tração nas redes sociais.
MC: A verdade dá mais trabalho.
MA: A verdade dá muito mais trabalho e tem muito menos tração, porque a verdade é, às vezes, muito mais complexa, é muito mais cinzentona, é muito mais difícil de ser digerida, tem muito mais nuances e as nuances dão, de facto, trabalho a serem percepcionadas e entendidas. E portanto, uma mentira, uma teoria da conspiração, uma coisa profundamente ofensiva e chocante, por causa dos tais algoritmos que criam bolhas, faz com que apareçam outras meia dúzia de pessoas que, escondidas atrás de um ecrã, com uma conta falsa ou com uma conta em que não estão identificadas, vai dizer “Sim, boa, corajoso, força, grande ideia”. Palmadinhas nas costas digitais, que são os likes. Isso cria a ideia de que existe uma comunidade muito grande que acredita naquilo. E, depois, isso faz com que — e fez nos últimos anos…
MC: Valida a ideia.
MA: Valida a ideia e, mais do que isso, perde-se a vergonha de a pronunciar alto. E há estudos muito interessantes sobre isso, há um livro também muito interessante sobre isso que se chama “O Fim da Vergonha”, de um jovem cientista político que se chama Vicente Valentim, português, mas ele fez a sua tese em Oxford, creio. Que fala disso, que é o fim da vergonha, o facto de terem começado a surgir políticos que pronunciam alto coisas que estavam de alguma forma latentes, camufladas na cabeça das pessoas, e começou-se a perder a vergonha de as dizer porque há alguém que é eficaz a dizê-las alto e depois há estas redes sociais para as impulsionarem e ampliarem de uma forma global e super rápida.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: