Entrevista. Mafalda Santos: “Quis fazer um exercício de manipulação do leitor. Apresento-vos um protagonista execrável, mas consigo dar-vos a volta e pôr-vos a torcer por ele”
Guionista de teatro e televisão, atriz, encenadora, professora de Interpretação, a atividade profissional de Mafalda Santos estende-se até à escrita.
O terceiro romance de Mafalda chama-se “Aquilo que o Sono Esconde”, e foi editado pela Suma de Letras, no início deste ano. Este é um thriller-surrealista, um termo que a própria inventou porque sentia que não havia outro que descrevesse os seus livros.
No podcast “Ponto Final, Parágrafo”, fala do bloqueio de escrita que teve, de como os temas do sono e dos sonhos entraram no universo deste livro, e de como uma história verídica de luta contra uma seguradora inspirou esta obra.
Depois de vários meses de promoção do livro, com inúmeros encontros com leitores, apresentações e feiras do livro, a autora conta que se apercebeu de que, inconscientemente, quis manipular o leitor na leitura deste livro ao lhe apresentar um personagem principal horrível, sem competências sociais básicas, e, mesmo assim, colocar o leitor do lado de Jaime, torcendo, mesmo por ele.
Magda Cruz: Para um escritor, acabar um livro deve ser um alívio, porque há um sentimento de dever cumprido. Ora, o livro “Aquilo que o Sono Esconde” acompanha um homem que deixa de dormir. (Não vamos revelar a razão pela qual isso acontece.) A pergunta é: dormiste bem na noite em que acabaste este livro?
Mafalda Santos: Eu nunca durmo bem quando acabo de escrever um livro, porque apesar de haver uma sensação de alívio, de dever cumprido, fica uma sensação tremenda de vazio, quase como se tivesse morrido uma pessoa de família. Porque durante um ano, um ano e meio — que é o tempo que normalmente eu levo a escrever um livro —, eu vivi com aquelas pessoas, e adormeci todas as noites com elas no pensamento. Portanto, no dia em que sinto que o livro está terminado e envio para a editora, há uma sensação de vazio. “E agora?” E por isso talvez é que eu comece logo a escrever outro. Um processo de negação, de empurrar para a frente aquilo que se está a sentir para conseguir lidar com essa sensação de luto, que o que fica depois num livro acabado.
MC: Com este livro, o processo de escrita não foi tão linear assim. Há um momento em que tens um bloqueio, que é sempre interessante de explorar com os escritores, porque pode se pensar no escritor como esta máquina culta que despeja livros para o computador ou para a máquina de escrever. Com este livro não foi tão linear assim, porque enquanto escrevias este, acabaste por voltar atrás e escreveste outro, que foi o anterior a este. Entretanto é que te dedicas ao “Aquilo que o sono esconde”. Como é que foi lidar com esse writer’s block?
MS: Exatamente. Eles existem sempre. Quem diga que eles não acontecem não está a ser verdadeiro. E eu acho que faz parte, e quando eles surgem, superá-los é que é o verdadeiro desafio criativo. Especialmente para alguém que escreve como eu, que sou uma escritora-jardineira.
MC: O que é uma escritora-jardineira?
MS: Há os dois conceitos, não é? Escritores-arquitetos, que estruturam todo o esqueleto da narrativa. Sabem, antes de começarem a escrever, exatamente onde é que a história começa, o que é que acontece em cada capítulo, quem vai surgir e como é que acaba.
MC: Não é o que acontece contigo.
MS: Eu sou jardineira. Vou atirando umas coisas para a terra e vendo o que é que de lá surge. E esse processo é que me dá o prazer da escrita.
MC: E o que é que tinhas no início de “Aquilo que o sono esconde”?
MS: Eu sabia que queria escrever uma história sobre esta profissão estranhíssima das pessoas que trabalham em agências de seguro — isto com todo o respeito pelas pessoas que trabalham em agências de seguro. Mas foi-me contada uma história tão tenebrosa de um analista de seguro que, tendo como ser processo de uma mulher que teve um acidente de viação terrível, ficou tetraplégica aos 40 e poucos anos. E o papel dele foi tentar encontrar, apesar de a sentença do juiz dizer que ela tinha direito a uma indemnização, o papel dele na vida dela foi fazer de tudo, inclusive uma campanha de terror, mesmo de terror, contra ela, para que ela desistisse do dinheiro a que tinha direito. E vale tudo: vale aparecer a qualquer hora casa das pessoas, vale fazer telefonemas em catadupa, vale enviar documentos que têm de ser lidos num prazo impossível, vale pressionar a pessoa que já está vulnerável a um ponto desumano. E eu, que gosto muito de explorar estes lados, estas facetas menos simpáticas do espírito humano…
MC: Personagens defeituosas.
MS: Agradam-me muito mais do que as outras, as heroicas. Comecei a pensar que tipo de pessoa é que faz isto durante o seu dia de trabalho, chega a casa…
MC: Como se o dinheiro saísse do bolso dele.
MS: Como se o dinheiro saísse do seu bolso. E depois chega a casa, faz tábua-rasa, está com a sua família, dorme pacificamente, não tendo má consciência alguma do mal que está a fazer àquela pessoa que está absolutamente vulnerável.
MC: Então tiraste-lhe o prazer de ter uma noite descansada.
MS: Tirei-lhe prazer, até porque eu também estava numa fase assim. Eu andava a ter muitos pesadelos. Não sei porquê. A dormir pouco, com muito trabalho e quando se está sob stress, descobri, estudei que os pesadelos são mais intensos e que nos lembramos deles. Porque quando nos lembramos dos sonhos é porque o sono não é profundo.
MC: Eu lembro-me dos meus sonhos todos os dias. [risos]
MS: É porque o teu sonho não é tão bom como poderia ser. E eu estava nessa fase, tinha pesadelos que me incomodavam muito e dei por mim a pensar nesta coisa que depois invadiu o livro, que é esta ideia de que nós que somos seres humanos, tão frágeis, tão sensíveis psicologicamente, por tudo nos magoamos, por tudo nos traumatizamos, por tudo ficamos com uma memória de uma coisa que fica para sempre ali a magoar-nos, a massacrar-nos, como é que nada dos nossos pesadelos, que são muitas vezes experiências de quase morte, experiências violentas, como é que nada fica? Como é que nada nos traumatiza? Acordamos e esses episódios que passámos a dormir acabaram. E intrigou-me. Porquê que ficam ali?
MC: Então deste um passo em frente.
MS: Então procurei responder na ficção ao porquê é que não ficamos traumatizados com os terrores dos pesadelos.
MC: Eu, quando estava quase a acabar o livro, talvez 30 páginas antes de acabar, tive medo de ir dormir. Era quase meia-noite e tive medo de ir dormir. “O que é que me vai acontecer? Quem é que eu vou encontrar?” (Se é que me entendes.) Acabou recentemente a Feira do Livro de Lisboa.ç Recebe histórias de leitores? Foram ter contigo, com estes receios, ou pelo contrário: em vez de receio, entusiasmo de ter lido o livro.
MS: Sempre com entusiasmo. Do receio, as pessoas veem filmes de terror, não porque se entusiasmam com essa sensação de medo. Acho que o livro não é livro de terror, de todo. É um thriller psicológico, surrealista, que vai ali para domínios do realismo mágico, mas não é terror. E as pessoas vêm ter comigo muito entusiasmadas e até a dizerem-me que os problemas de sono que tinham, que agora os compreendem melhor. E que, quiçá, se esta teoria que eu avanço no livro fosse possível, porque basta darmos passinho para lá daquilo que sabemos e isto seria possível, não é? Não está assim tão distante, não é um sobrenatural tremendo que avança, que é relatado no livro. É algo que a Ciência não explica e o livro dá uma explicação. Mas a mim não é assim tão difícil, no domínio da ficção, de acreditar nesta história e os leitores têm sentido a mesma coisa.

MC: Eu adorei este género. Não me tinha ainda cruzado com um livro assim. Adorei esta designação que criaste de thriller surrealista. Estava até a perguntar-te se o teu anterior livro era nestas linhas, porque fiquei muito interessada neste tipo de livro. E era como estavas a dizer, o sono é importantíssimo. E é um universo sobre o qual sabemos muito pouco concretamente. Ou seja, muitos cientistas estudam o sono e importância que ele tem. Não podemos viver sem dormir. E de repente ler um livro destes… Por lado, tenho medo de adormecer, por outro, só quero ir dormir a ver se o livro… [risos]
MS: [Risos] Se algo surge, o que é que aparece.
MC: Ou seja, continuar o livro, não é? Continuar a ler o livro nos sonhos. Acabaste até por me responder esta curiosidade que é como é que o tema sono e sonho entram no livro. Portanto já tinhas essa curiosidade e quiseres dar esse passo em frente. E depois como é que foste construindo esta personagem principal, o Jaime? Para contar esta história, vais buscar um homem cheio de defeitos: não é atencioso, não é social, não é empático. Já tinhas explorado este tipo de personagem. Como é que encontras o Jaime e como é que o constróis?
MS: Já, eu já tinha explorado. Eu gosto muito das personagens com defeito, com ferida. Agradam mais do que os heróis. Bom, tive esta história verídica que me ajudou. Uma amiga contou-me que existia este analista terrível que andava a fazer terrorismo à senhora. Depois entrevistei outras pessoas que tinham tido casos muito semelhantes com analistas de seguros, com todo o tipo de acidentes, uns mais graves, outros menos, mas sempre com as seguradoras a tentarem se escusar, fugir com o rabo à seringa para ver se não pagam.
MC: Há sempre estratégias…
MS: Mas a estratégia bate sempre na mesma coisa que é tentar vencer a pessoa pelo cansaço. E a pessoa quando só mexe do pescoço para cima, o cansaço está logo ali. Pode ser muito fácil fazê-la desistir, e é de uma perversidade enorme. E eu quis desenvolver uma personagem que, por lado, o leitor acreditasse nela, que houvesse verdade, honestidade, que disséssemos “Esta pessoa podia existir”. Mas, por outro lado, com as limitações humanas que eu sabia que precisava para o desfecho, para justificar o desfecho.
MC: Sim, percebo isso perfeitamente.
MS: E então foi esse equilíbrio com que andei aqui.
MC: Mas como há tantos Jaimes na nossa vida, eu percebo que seja fácil de acreditar nesta personagem.
MS: E quis fazer outra coisa da qual não tenho falado muito, mas que dei por mim recentemente a pensar, que ao início foi uma coisa meio inconsciente e que hoje dia já não é. Quis fazer um exercício de manipulação do leitor. Eu gosto muito de sentir que o escritor me conseguiu manipular enquanto estou a ler. No sentido de agora vou-vos aqui apresentar uma personagem execrável, um homem desprezível, desprovido de todas as capacidades básicas para se relacionar com outras pessoas, e depois vou-vos conseguir dar a volta, e vou pôr-vos quase a torcerem por ele. Como é que se apresenta alguém assim? Foi um desafio também para mim. E até eu sentir que estava a começar a sentir pena do meu protagonista, que é esta pessoa tão pouco simpática e agradável, houve um momento em que eu comecei a sentir, primeiro, pena dele, e depois a querer que ele não tivesse o desfecho que eu já sabia que lhe ia dar, com pena.
MC: Porque ele sofre.
MS: Ele sofre e ele transforma-se.
MC: Neste tempo, diria que isto se passa em pouco mais de uma semana, talvez dez dias, ele está constantemente a sofrer, nem que seja pela fome que sente, que o homem não consegue inchar o estômago.
MS: Ele está a sofrer e o amor transforma-o. Porque ele pela primeira vez consegue olhar para alguém sem ser com aquela superioridade que ele sentia por todos os seres à sua volta. Ele apaixona-se por esta mulher que é uma, digamos, uma coprotagonista com ele, que eu não quero dizer quem é… para não dar spoiler.
MC: Não, não. [risos] Mas, na verdade, há um contraste muito grande porque sabemos desde o início que ele tem uma namorada há vários anos e não lhe liga cavaco.
MS: Ele é péssimo com ela. É o protótipo do namorado que ninguém quer ter. Ele é muito mau com ela. E depois conhece alguém que o vai fazer sentir uma coisa que ele nunca sentiu. E eu queria inverter os papéis: queria transformar o vilão, de repente, na personagem por quem quase torcemos e de quem temos pena, e a vítima na personagem que manipula.
MC: E quando é que tu percebeste disto? Ou seja, já depois do livro publicado? Entretanto com o retorno dos leitores?
MS: Com o retorno dos leitores, mas comecei a aperceber-me disso já nas últimas páginas do livro. Porque eu, como não estruturo os meus romances, como vou escrevendo e gosto dessa coisa de me surpreender com aquilo que escrevo e com as escolhas que parece que, às tantas, foram as personagens que fizeram e não eu… É muito refrescante. Vou me surpreendendo à medida que escrevo e apercebi-me a certa altura que isso estava a acontecer.
MC: E enquanto escritora-jardineira, que belo jardim que nos deste aqui.
MS: [risos] Obrigada.

