Entrevista. Manuel Cargaleiro: “Ainda me pedem obras de grandes dimensões mas já não faço. Mas pinto todos os dias”
O pintor e ceramista Manuel Cargaleiro continua a querer “transmitir algo de belo e de bom” na sua obra, que despontou há mais de oito décadas, quando tinha apenas oito anos e começou a fazer bonecos de argila.
Também cedo, sonhou um museu que fosse seu. Ele existe agora, em Castelo Branco, depois de constituída a fundação com o seu nome que cuida de um acervo de cerca de 10 mil obras.
Aos “96 anos e meio”, como sublinhou em entrevista à agência Lusa, continua a trabalhar todos os dias.
Na secretária da sala da sua residência, em Lisboa, está tudo preparado para os guaches e pastéis e, ao lado, junto ao cavalete, estão os óleos para os quadros.
“Passo bem os dias. Todos os dias pinto, se tiver oportunidade”, comentou o artista, acrescentando que as cores que escolhe é que são “um problema”.
“Naturalmente, e sem esforço nenhum, as cores são todas lindas. O problema é qual se vai pôr ao lado. E eu, já quase com os olhos fechados, acerto”, comentou, a sorrir, o mestre pintor e ceramista que continua a marcar presença nas várias exposições suas, a inaugurar anualmente pelo país.
Este ano, estará patente até 09 de outubro a exposição de pintura, cerâmica e guaches “Eu Sou… Cargaleiro”, no Mosteiro de Ancede – Centro Cultural de Baião, no distrito do Porto.
Antes, entre abril e junho, também na Região Norte, realizou-se uma mostra de pintura na Casa Museu Teixeira Lopes – Galerias Diogo de Macedo, em Vila Nova de Gaia, intitulada “Cargaleiro, Pintar a Luz Viver a Cor”. Houve ainda uma exposição de gravura no Fórum Cultural de Ermesinde, em Valongo, de nome “A essência da cor”, de janeiro a abril.
O mestre pintor e ceramista não pára. Está em preparação uma nova exposição, para abril de 2024, no Seixal, distrito de Setúbal, na Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, onde serão apresentadas obras nunca expostas do artista plástico nascido a 16 de março de 1927, em Chão das Servas, Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco.
“Vai ser interessante e especial, porque será apresentada com obras minhas, que nunca foram expostas”, revelou o artista à agência Lusa, acrescentando que será também editado, paralelamente, um livro de desenhos do autor.
Manuel Cargaleiro prefere que as datas de aniversários e efemérides passem discretamente, e receia que em abril, na altura da inauguração da exposição, lhe queiram prestar homenagens: “Eu não vou deixar!”, disse a rir, sentado à secretária onde se sente mais confortável, junto aos pincéis e tintas de guaches.
Ao lado dessa mesa, está sempre também disponível um cavalete onde continua a pintar a óleo, e, em frente, uma estante com muitos livros sobre arte que comprou ao longo da vida.
“Ainda me pedem, mas já não faço obras de grandes dimensões. Continuo a pintar todos os dias”, garantiu o artista, que ganhou reconhecimento internacional sobretudo em França, onde mantém residência desde a década de 1950, e em Itália, onde também existe uma fundação em seu nome.
Em 2019, tinha 92 anos, o Metro de Paris colocou mais 20 metros de azulejos da sua autoria na Estação dos Campos Elísios, entre o Eliseu e o Grand Palais, a mesma que já estava decorada com a sua obra desde 1995.
Depois de ter passado por Itália com uma bolsa de estudo, foi para França, onde fixou residência em 1957, ali passando mais de metade da vida.
“A partir daí fiquei sempre muito ligado a França, mas também estive sempre muito ligado a Portugal. Eu vivia a vida artística do meu país. Mas a minha vida profissional tomou outro caminho e outros ritmos devido a França. Tive a possibilidade de trabalhar sempre com uma galeria, que me defendia”, recordou à Lusa, lembrando os irmãos galeristas Edouard e Pierre Loeb, que o apoiaram, garantindo-lhe a subsistência.
Cargaleiro começou a expor ao lado de artistas como Max Ernst, Jean Arp e Camille Bryen, na galeria dos irmãos Loeb, com quem teve uma relação forte, e que acreditaram no valor das suas pinturas.
Até chegar lá, o artista diz que trabalhou sempre muito para se sustentar, mesmo quando veio estudar para Lisboa, acabando por trocar o curso de Ciências pelas Belas Artes, indo contra a vontade do pai, que era agricultor e sonhava ter um filho veterinário e outro agrónomo.
“A minha mãe apoiou-me sempre muito. O meu pai tinha medo do meu futuro. O sonho dele era ter um filho veterinário e outro agrónomo. Veterinário teve”, disse o artista, acrescentando, sobre os pais: “Viveram o suficiente para ver que eu não me enganei e que realizei algo em que eles tiveram muito orgulho. Isso foi a melhor recompensa que eu tive em relação ao meu trabalho e à minha família”.
O gosto por “fazer bonecos” de argila já tinha desde criança. Ficava fascinado quando ía da quinta dos pais buscar o correio e, ao lado da estação, havia uma olaria, onde o artesão “transformava magicamente uma bola de barro numa peça perfeita”.
Aquele trabalho maravilhou-o e quis aprender. “Eu não tinha muita habilidade mas tinha vontade de realizar. Eu tive habilidade na cabeça. Eu imaginei as peças, e fazia um esforço para as realizar”, recorda o mestre.
A Fundação Manuel Cargaleiro, em Castelo Branco, constituída em 1990 para criar o museu em seu nome, viria a abrir num primeiro edifício em 2005 para promover o estudo e a divulgação do seu acervo artístico, numa parceria com a câmara municipal local.
Depois de ter doado uma parte considerável da sua coleção pessoal, o acervo da Fundação Manuel Cargaleiro é atualmente composto por mais de 10 mil obras, que ali são estudadas, conservadas e exibidas regularmente nos dois edifícios do museu.
“Eu nunca quis ser muito conhecido. O que eu gostei sempre foi de trabalhar muito e de saber que havia pessoas que gostavam das peças”, disse o artista à Lusa, sublinhando que a sua preocupação foi outra: “É difícil um artista encontrar a sua verdade. Nós não sabemos. Eu não sei. Eu nunca fiz isto com uma intenção. Eu quis transmitir algo de belo e de bom, de positivo.“
Para o autor, “há duas correntes no mundo: uma positiva e outra negativa. Há os artistas que pensam que não há nada a fazer, e descrevem o destrutivo, por exemplo o [pintor anglo-irlandês] Bacon. Tem uma pintura triste, violenta, agressiva, e o [pintor e ceramista francês] Chagall tem uma pintura de esperança, de beleza, de mensagem. Eu coloco-me deste lado. Eu gosto de criar algo que dê força, que anime e dê esperança.“
Cargaleiro mantém a curiosidade de ver e admirar a arte contemporânea, mas admite que o estilo em que se insere — herdeiro da escola de Paris, da época dos artistas impressionistas, e também inspirado na azulejaria do século XVI — “não tem muito a ver com o que se está a fazer agora“.
Paralelamente ao seu trabalho artístico, Cargaleiro foi comprando livros sobre outros artistas sempre que passeava pelas ruas de Paris.
Doou 3.500 livros só sobre arte à Biblioteca de Castelo Branco.
“Passei a vida a estudar a pintura dos outros, porque os outros me interessam, eu gostei sempre muito da obra dos outros.”
“Eu pego nos pincéis e começo a pintar e não sei o que vai acontecer. Há tanta coisa que eu gostaria de fazer“, conclui.