Entrevista. Marco Neves: “Quando as pessoas procuram livros sobre a língua portuguesa, é para evitar erros. O meu objetivo é levá-las a ver além disso, a sentir um pouco de prazer com a língua, com a leitura”

por Magda Cruz,    11 Abril, 2025
Entrevista. Marco Neves: “Quando as pessoas procuram livros sobre a língua portuguesa, é para evitar erros. O meu objetivo é levá-las a ver além disso, a sentir um pouco de prazer com a língua, com a leitura”
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Marco Neves está constantemente a pôr a nossa língua no microscópio e a analisar de que materiais é feita. Trabalha como professor, autor, tradutor, revisor, conversador e divulgador da língua portuguesa. No podcast “Ponto Final, Parágrafo”, explica que objetivos tem quando escreve e fala sobre língua, a sua origem e mudanças.

Nas redes sociais, tem chegado a muita gente, através da divulgação científica sobre linguística em vários formatos, como vídeos sobre língua e cultura. Apresenta também vários programas sobre língua, como “Português Suave”, na Rádio Observador, onde desconstrói erros frequentes da língua, e “Assim ou Assado”, que mantém com o músico Sam The Kid.

Marco Neves publica agora o livro “Queria? Já Não Quer? – Livro sobre mitos e histórias da língua portuguesa”, pela Guerra e Paz. Em entrevista a Magda Cruz, apresenta alguns mitos que fazem parte deste livro, como a origem da palavra inglesa “tea” e a confusão com a expressão “mal e porcamente”. Quanto ao Acordo Ortográfico, deveríamos implementar plenamente o Novo, de 1990, voltar ao Antigo, de 1911, ou há outros caminhos? 

Magda Cruz: Para todos os podcasts que apresentas, livros que escreves e revisões que fazes, o que é que consultas mais vezes: as bases XV e XVI do Novo Acordo Ortográfico, que para quem não sabe é sobre como se aplica o hífen, ou o Dicionário Houaiss em papel?

Marco Neves: Boa pergunta. [risos] Começas logo pela questão do Acordo Ortográfico.

MC: Ou és mais um tipo da Academia das Ciências de Lisboa, em linha?

MN: Eu consulto muitas coisas quando é preciso. É muito difícil dizer que vou só a um sítio, principalmente quando estou a dar aulas. Quando estou a dar aulas e os alunos me fazem uma pergunta muito parecida com essa: “Tenho dúvidas nos hífenes, o que é faço?”. Às vezes, perguntam-me outra coisa: “Quais é que são as regras do hífen?” Eu digo: “Não vale a pena vocês decorarem tudo porque não vão deixar de ter dúvidas sobre isso. Portanto, têm mesmo ter bom recurso, ou prontuário, ou ir ao dicionário, e usar esse recurso.” E, por vezes, até digo que o ideal é escolherem um porque os recursos nem sempre concordam uns com os outros. Portanto, eu diria que consulto muito o Dicionário da Academia online, mas também dicionários em papel de vários tipos e prontuários. Tenho dois prontuários que já são muito difíceis de encontrar: um deles antes do Acordo e outro depois do Acordo, porque eu, ao trabalhar como na área de Tradução, tenho usar as duas ortografias, embora pessoalmente prefira a anterior.

MC: Tens as duas regras na cabeça, não é? Não é nada fácil.

MN: Não é fácil. E é daqueles pontos em que eu digo: o Acordo Ortográfico [Novo], posso dizer desde já que não sou muito a favor…

MC: Vamos poder falar sobre isso mais à frente, mas ficamos já a saber isso.

MN: Mas, de qualquer forma, eu diria que o Acordo poderia ter ajudado um pouco se tivesse criado regras do hífen um pouco mais fáceis de aplicar. E não são, nem antes nem depois.

MC: As palavras que estão nessas bases, a XV e XVI, é fácil de perceber a regra. Por exemplo “fim de semana” perde os hífenes, está no Acordo, é assim que eu vou escrever. Mas há palavras que…

MN: Há palavras que não… Mesmo assim, há línguas que têm regras de hifenização que nós podemos aprender. A ortografia, e isto é uma coisa que podemos discutir, é um dos pontos da língua que não perde nada em ser estável e não andarmos a mexer constantemente nessas regras. E também não perde nada em serem regras de fácil aprendizagem e aplicação. E nós temos uma ortografia que não é das mais caóticas, como é do Inglês ou do Francês, mas também não é das que têm regras assim tão claras quanto isso. E a hifenização, então, é um problema.

MC: Não resisto a fazer aqui mais uma pergunta de brincadeira, que é: O que é te custa mais ouvir? A construção “de modo a” ou “tratam-se de”?

MN: Se calhar, “tratam-se de”. [risos]

MC: Sei que, tens uma postura mais aberta quanto à aprendizagem.

MN: Sim, mais aberta. Não há ninguém, por mais… Nós temos várias atitudes perante a língua, mas tal como não há ninguém que ignore completamente o uso repetido, mesmo que seja um… Como é que eu hei de dizer? Mesmo que não gostemos daquele uso, vamos acabar por ter de aceitar se,, passados uns séculos, já toda a gente usar isso, também do lado de quem está mais aberto à mudança, também não há ninguém que não tenha irritações e que não tenha… Eu, por exemplo, irrita-me muito o “contato” sem cê.

MC: Espetador. Agora, espectadores são espetadores.

MN: Exatamente, porque foi uma mudança oral que vem do Acordo Ortográfico. Mas, além disso, contacto não foi uma alteração do Acordo Ortográfico. Porque Acordo Ortográfico não mudou esta palavra em Portugal, porque nós continuamos a dizer contacto. No entanto, porque metemos na cabeça que havia os cês que deveriam cair, acabámos por confundir, e ter não sei quantas outras pessoas a escrever “contato” e “fato”. Quando o fato é facto.

MC: Facto nunca perdeu o cê.

MN: Não, porque nós dizemos o cê. E, no entanto, até no Diário da República aparecem vários “fatos”.

MC: Também é um bom sítio para haver fatos. [risos]

MN: Exato. [risos]

O autor e professor Marco Neves com a jornalista Magda Cruz

MC: Nunca te fartas das línguas e, neste caso, da língua portuguesa? Tens estudado muito a origem das palavras, e trabalhaste também instantemente a língua em vários formatos. Tiveste agora um livro em que aprofundaste mais a História da língua. Nunca te fartas?

MN: Já tive vários livros sobre a língua, e as pessoas perguntam-me: “Isto vai acabar.” [risos] Mas como é que eu posso dizer isto? Há alguns livros que são repetitivos por natureza e eu tento que não sejam. Por exemplo, agora vou publicar uma segunda edição de uma gramática que fiz há alguns anos. Essa segunda edição não vai ser assim muito diferente da primeira. Vai ter diferenças, mas vai ser um pouco mais abrangente nalguns pontos, mas as questões mais de gramática… Nós estamos sempre a falar da mudança na língua, mas a língua muda devagar, apesar de tudo. Não anda por aí a correr. Por isso, se eu escrevo uma gramática em 2018, a gramática em 2025 não vai ser assim muito diferente.

MC: Mas havia procura para essa gramática? É por isso que vão reeditar?

MN: Havia. A editora já acabou a primeira tiragem, que até foi bastante… De todos os livros que eu fiz foi a que teve a maior tiragem, e agora vai reeditar. Agora, isto é a parte, digamos, prática da língua, em que a pessoa quer saber “Como é que eu escrevo isto?” Há outra parte que me interessa muito, e eu até confesso, entre paredes, que me interessa mais, apesar de vender menos [risos]. Quer dizer, as pessoas interessam-se também, mas não sabiam que estavam interessadas nisso. Enquanto na gramática, todas as pessoas sabem que precisam de uma gramática ou de dicionário para tirar lá uma dúvida, há outros aspetos da língua que eu acho mesmo muito interessantes e que muitas vezes estão esquecidos, que vão desde a História, desde a origem da língua. Ainda hoje, estive numa escola para falar desta questão da língua portuguesa, da origem, de onde é que ela vem, e as pessoas todas costumam rematar com isto: “Vem do latim.” Quando há muito mais para dizer. Antes do latim, entre o latim e o português. É um tema que acaba por ficar fechado nessa resposta rápida “Vem do latim”, e esquecemos que há ali muita coisa por trás, não só porque o próprio percurso é grande e complexo e interessante, como dizer que vem do latim esconde que há muitas palavras que não vieram do latim. Há muitas palavras que vieram de outras línguas, vieram de outras paragens, do persa, do árabe, do inglês, também, como sabemos, então cada vez mais. Mas não só, estou só a dar exemplos. Podemos encontrar palavras de todas as línguas. Por aí, já temos não sei quantos temas para explorar. A própria História da escrita, que é outra coisa, eu escrevi um livro há uns anos sobre isso, [Atlas Histórico da Escrita, Guerra e Paz, 2023] que foi o livro que mais me custou escrever, porque era uma área ligeiramente fora do que estava habituado. Tive de investigar mais ainda. Mas, quando eu digo que custou… Eu gostei muito do resultado, no sentido em que aprendi muito e foi um livro que eu gostei muito de fazer, um atlas da escrita. E este livro levou-me a descobrir coisas como a História de cada uma das letras, a história de como é que o nosso sistema de escrita se relaciona. Nós sabemos também, assim muito vagamente, destas relações, mas depois quando vamos ver percebemos que é algo que dava para muitos livros. Depois, este último livro, Queria? Já Não Quer?, é sobre os mitos da língua. Digo a brincar, por vezes, que foi livro em que eu tentei, como é que eu hei de dizer isto, contar várias histórias com o preço de uma. O que quer dizer com isto? Um dos mitos que está lá desmontado, espero eu, é a ideia, por exemplo, que a palavra inglesa “tea” vem do português. Transporte de ervas aromáticas. Que é uma ideia errada.

MC: Alguém pegou nela e…

MN: Sim, inventou. Só para dizer que eu tenho lá alguns casos, e depois posso dizer um dos casos, em que eu estava convencido da ideia errada. Portanto, isto não é uma questão de “Eu estou certo e os outros estão errados”. Não, às vezes estamos todos errados e vamos descobrir pouco mais a fundo o que é que está errado.

MC: Qual é que era o caso?

MN: Já vou dizer. No caso do “tea”, há aqui uma história que na verdade são três: porque temos a história falsa, (que também é interessante, os mitos também são interessantes, as lendas também são interessantes) a história de que a rainha Dona Catarina de Bragança foi para Inglaterra, levou o chá em sacos, (isto é uma das versões da história, há várias) em que estava escrito T-E-A, transporte de ervas aromáticas, os ingleses viram aquilo e chamaram àquilo “tea”. Esta é história falsa. Depois temos a história verdadeira: Dona Catarina de Bragança foi para a Inglaterra. Foi muito importante para espalhar o chá pela sociedade, mas não levou o chá porque ele já existia, já estava na Inglaterra. Aliás, os ingleses começaram por chamar ao chá “chay”, precisamente, com a origem na palavra portuguesa. E só depois é que começaram a chamar “tea” porque vem do holandês. Foi buscar à China numa zona particular da China onde a palavra era “té”. E dessa palavra vem a palavra inglesa, a palavra espanhola, a palavra francesa. Portanto, o que eu quero dizer é: temos a versão errada, que é interessante; a versão mais verdadeira, que também me parece muito interessante; e depois temos a história de onde é que isto apareceu, de onde que o mito, que às vezes não é fácil de perceber. Eu andei ali a escavar um pouco e parece-me que terá sido, a minha suposição, tendo em conta os dados que tenho, algum guia turístico que, no início deste século, teve de inventar aqui uma história algum dia. A primeira vez que esta história aparece é num blog italiano de um turista que veio a Lisboa e ouviu um guia turístico falar desta história.

MC: Ora, o poder dos blogs.

MN: Exato. [risos] Depois desta primeira aparição num blog no início deste século, século XXI, chegou até à BBC. A própria BBC já falou deste mito, chamando-o mito, a VISÃO também já falou deste mito, já apareceu em vários livros e, de repente, começou a se espalhar de tal maneira que há quem me diga que até em museus já encontrou a ideia, portanto, um guia turista criou aqui uma história que teve pernas para andar, quanto a mim, mal. [risos] Porque a história verdadeira é mais complicada de contar, mas é muito interessante. Só para dizer: temos a história falsa, verdadeira, e como é que chegamos à história falsa. Isto tudo leva-nos também a falar um pouco sobre a língua portuguesa, sobre a cultura que está por trás e sobre os enganos em que nós por vezes caímos, e também o interesse que as pessoas têm pela língua, pelas palavras e pela história das palavras. E isso acho que é algo que é inesgotável. Portanto, apesar de tudo, não acho que seja um tema que se vá esgotar.

MC: E é um dos casos que figuram no teu livro “Queria? Já Não Quer?”. Qual é que era aquilo em que estavas convencido da história errada?

MN: Isto aparece em quase todos os livros e eu também já devo ter escrito em algum lado a história falsa: a ideia de que “mal e porcamente” era uma deturpação de “mal e parcamente”, mas quando vamos ver no registro escrito, “mal e parcamente” aparece muito depois de “mal e porcamente”, e por isso, “mal e porcamente” parece ser a versão mais antiga.

MC: Olha, também não sabia. Eu achava que o “porcamente” estava incorreto.

MN: Pois. Neste caso, eu também tenho de dizer que pode agora aparecer um novo registro escrito que nos mude a História. Mas a primeira vez que esta expressão “mal e porcamente” aparece foi 1815 numa revista, e só 70 anos depois é que aparece a versão “mal e parcamente”. Agora, as duas existem, não é que uma esteja certa ou que a outra é errada.

MC: Mas a que faz mais sentido talvez seja “mal e parcamente”.

MN: A questão é que são usadas de forma um pouco diferente. Porque “mal e porcamente” é uma coisa que é feita assim um pouco às três pancadas e “mal e parcamente” é uma coisa que é feita menos do que deveria. No fundo, temos duas expressões. E mais: o Machado de Assis também usou…

MC: E estão ambas dicionarizadas?

MN: Estão. Mas “mal e porcamente” é muito mais comum do que mal “mal e parcamente”. Mas aparece também “mal e tortamente” na Literatura. Machado de Assis usou “mal e tortamente”. Portanto, no fundo, é uma construção que permitiu criar várias expressões, entre elas “mal e porcamente”, “mal e parcamente” e “mal e tortamente”, e poderíamos continuar. Depois, ali em meados do século XX, começa a aparecer nos livros sobre português, esta ideia de que “mal e parcamente” era a versão mais antiga e espalhou-se de tal maneira que todos nós acreditamos nisso. [risos]

MC: Como dizíamos, tens uma dezena de livros sobre a língua e também sobre a língua portuguesa. O mais recente chama-se Queria? Já Não Quer? – Mitos e disparates da língua portuguesa, editado pela Guerra e Paz. Qual é o teu principal objetivo enquanto autor de livros sobre a língua? O que que procuras transmitir aos leitores?

MN: São dois objetivos, na verdade. A melhor comparação é com aquilo que nós chamamos divulgação científica, mas, neste caso, linguística. Não só com a linguística em si, mas com tudo o que está relacionado com língua portuguesa. Portanto, é no fundo, divulgar conhecimento que já existe. Eu também trabalho como investigador e aí é uma questão de criar novo conhecimento, mas com procedimentos um pouco diferentes. Mas aquilo que eu gosto, de facto, é de divulgar aquilo que existe, por vezes, dentro de um grupo restrito, (isto em qualquer área, não é só na linguística, os cientistas, por isso é que eu também tenho aquele podcast com a Cristina Soares. Gosto muito de, neste caso, picar os cientistas a tentarem ir para lá do seu grupo mais restrito que está habituado a falar de um tema. E não é fácil porque muitas vezes nós usamos termos que são uma barreira ao conhecimento. (Estou falar de nós, quem trabalha nas universidades ou quem trabalha na investigação vai usar termos porque é mais fácil nós usarmos aqueles termos porque são ferramentas para sermos precisos e para falarmos de conceitos sem termos de estar sempre a explicar os conceitos, mas, por vezes, esquecermos de que isso cria uma barreira.) E depois não é só isso. Há coisas que para nós são óbvias. Isto qualquer área nem sequer precisa ser das universidades. Qualquer profissão tem conhecimentos que para as pessoas dessas profissões são óbvias e que levam a que muitas vezes não consigamos compreender como fora da profissão não é nada óbvio aquilo que estamos a fazer, ou estamos a criar, a construir, ou seja o que for. E, no meu caso, o meu objetivo útil é mesmo transmitir esse conhecimento para lá. Quando as pessoas procuram livros sobre a língua portuguesa, em geral, procuram para evitar erros. E é legítimo e eu tenho livros precisamente sobre isso. Para evitar erros, escrever melhor. Mas eu penso que há tanta coisa para lá disso que, por vezes, esquecemos. Portanto, o meu objetivo é levar as pessoas a ver o que está para lá desse objetivo mais útil e mais imediato. O primeiro objetivo é a divulgação científica na área da linguística. O segundo é também levar as pessoas a sentir um pouco de prazer com a língua, ou seja, com a leitura.

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