Entrevista. Margarida Cardoso: “Se me perguntarem se ‘Banzo é sobre o poder branco?’ É. Sou privilegiada por ser branca? Talvez. Agora, que o filme não devia existir, não, aí não há discussão”

Margarida Cardoso não se sente na legitimidade de fazer um filme do ponto de vista de um escravo. Nasceu nos anos 60 em Tomar mas aos 3 anos parte para Moçambique. O seu cinema é sinónimo de África e Portugal. Foi por isso que levou uma equipa até São Tomé para explorar essa região que ainda guarda uma certa espiritualidade, um certo mal que nunca foi resolvido.
Em “Banzo”, vamos até ao século XX, onde, nas plantações de cacau de São Tomé e Príncipe, os escravos vivem “infetados” pela nostalgia. Uma vontade inexplicável de voltar para casa, onde a tristeza invade qualquer espírito. Seguimos o médico Afonso (Carloto Cotta), numa história colonial que não quer fazer ajustes de contas, mas entregar uma perspectiva ficcional, fantasmagórica, assombrada, sobre um período que teimamos em não resolver. Não há maus nem bons da fita. Há um limbo por explicar, dúvidas, passos em falso e violência enraizada na pele.
Dez anos depois da sua última longa-metragem, “Yvone Kane”, e de tanto trabalho sobre a memória colonial e a relação dos países africanos com Portugal, eis que chega um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos. De uma realizadora “branca e privilegiada” que ambiciona ser possível discutir o passado colonial.
Nesta conversa com a Comunidade Cultura e Arte, falou-se do presente e do futuro do cinema português, dos imprevistos de uma “tranquila mas dura rodagem”, dos projectos que hão de vir e do espectador cinéfilo de hoje. E de zonas cinzentas, tão difíceis de encontrar num mundo cada vez mais polarizado mas que são a alma e coração deste “Banzo”. “Vejo tudo para o lado dos cinzentos. Há uma grande zona assim, pouco polarizada, que é onde está quase tudo aí. A minha intenção seria que, de certa forma, todos nos pudéssemos identificar com alguém no “Banzo”. Fala do passado mas há muito de presente. No racismo, na maneira de aceitar os outros. Na exploração, na forma de contratar as pessoas de quem anda a trabalhar para nós no ocidente. Queria que a ambiguidade das personagens fizesse isso: de poderes ser uma dessas personagens”, conta-nos.
Vi o filme no IndieLisboa mas não o vi programado em grandes festivais de cinema internacional. Porquê? E isso era importante para si?
Se dissesse que era irrelevante estava a mentir porque os distribuidores vão muito atrás disso. Cá não tem um impacto gigantesco porque o número de espectadores se esgota naqueles 15 mil que vão ao cinema. Agora, a nível internacional, tem um impacto extraordinário. Não posso explicar porque é que não foi tão escolhido, tenho intuições. No IndieLisboa não ganhei nenhum prémio especial. Os festivais são os primeiros a fazer uma peneira. Claro que pode haver questões ligadas à temática, de eu ser uma pessoa branca a tratar deste tema. Há vários pormenores que não jogam a favor do filme.
Mas não é uma estrangeira neste terreno colonial.
Não, não. Só que quando se pensa nos curadores dos festivais chega-se à conclusão de que é um trabalho terrível. És julgado pela vida que os filmes têm. Se apostas em algo mais perigoso, estás a colocar-te numa situação muito difícil. Não acredito que esse seja o circuito onde estejam pessoas corajosas, há poucas com sentido de independência. O filme vai para Karlovy Vary na República Checa, que tem uma curadoria muito especial. Não é muito conhecido mas é muito bom. Sabíamos que era difícil essa programação.
Foi uma desilusão?
Existe sempre. A Berlinale é mais aberta, mas é aberta a outras coisas. Este não é o filme ideal para o momento que atravessamos, ainda que tenha mudado. Existe muita tensão sobre o que se devia pensar e representar. O filme remete para todas essas questões. Eu própria também as tenho e que me foram surgindo durante o processo.
“Não acho que o “Banzo” seja um mea culpa mas sim uma redenção. Uma coisa é a iliteracia racial, e de como o debate muda todos os dias, outra é ceder a pressões que vão perto do cancelamento. Sinto a legitimidade de falar nisto de uma determinada maneira mas não sou parva.”
Pegando em Berlim: o “Dahomey”, da Mati Diop, venceu o Urso de Ouro. E é sobre a restituição de obras de arte de França para a República de Benim.
O “Dahomey” veio na altura certa. Não há nada que te possam repreender ideologicamente sobre esse filme, independente da sua qualidade. Dás o prémio sem nenhum prémio. Nenhum, nenhum. É híbrido, feito por uma mulher negra, com um assunto relevante. Nada contra, atenção.
Um dos filmes de 2024, para mim, foi o “No Other Land”, de um colectivo palestiniano. Os ocidentais estão a usar o cinema para fazer correções históricas? Ou devíamos dar esse lugar de fala aos protagonistas das ex-colónias? Teve esse debate interior quando partiu para São Tomé?
Reflectir sobre um passado é legítimo. Não vejo um mea culpa aí de quem faz cinema sobre esses temas. Nessa forma de representação. Nem acho que o “Banzo” seja um mea culpa mas sim uma redenção. Uma coisa é a iliteracia racial, e de como o debate muda todos os dias, outra é ceder a pressões que vão perto do cancelamento. Sinto a legitimidade de falar nisto de uma determinada maneira mas não sou parva. Coloco questões sobre essa representação. No caso do “Banzo” está num limite difícil de gerir e fui tentando gerir sem impor relativismos culturais porque se não não podes nada. Todos os meus outros filmes foram assim. O “Kuxa Kanema”, toda a gente me disse que não podia mexer no arquivo de Moçambique. Fui sempre andando nessa linha, não quer dizer que não tenha escorregado ou até caído. Se me perguntarem se ‘Banzo’ é sobre o poder branco? É. Sou privilegiada por ser branca? Talvez. Agora, que o filme não devia existir, não, aí não há discussão. E a discussão costuma ir por aí. Perguntarem-me porque o fiz sendo “branca e privilegiada”. O que quero é abrir o diálogo. Espero que aconteça nas conversas que teremos. A discussão costuma ser muito no primeiro grau. Temos de inventar questões às quais temos de responder, entre todas as gerações. De como pode funcionar. Há outro discurso muito básico de cavalgar a onda. Penso que até está a ser mais aplainado pelas forças mais avançadas que estão a perceber que tem de haver diálogo. Estou disposta a ouvir todas as críticas e sugestões desde que haja abertura.

Essa pressão tem sido assim na sua carreira?
Sim. No “Kuxa Kanema”, houve uma primeira apresentação em Moçambique, um dos grandes ideólogos da Frelimo disse-me, quando peguei no microfone: “Camarada, largue o microfone que aqui fala quando a gente quiser”. Isto foi antes de verem o filme. Era um problema mas depois deixou de ser. A “Costa dos Murmúrios” era porque os homens eram maus, perguntavam porque é que a cor do mar era assim, diziam que não se matavam flamingos. Todo um género de questões.
“Há filmes portugueses que não são para estrear no cinema mas que recebem subsídio para que isso aconteça. Na minha opinião, e contra mim falo, porque já tive filmes que não deviam estar numa sala de cinema, mais de metade dos filmes portugueses não precisavam de estar em sala. E digo isto sem estar contra os meus colegas. Só estreiam porque têm um subsídio. Nenhum distribuidor iria colocá-lo em sala sem esse apoio público.”
Essa resistência dos países africanos também se sente. Sentiu-a em São Tomé?
São Tomé é especial. Pode-se dizer que os forros são de São Tomé, escravos libertos enviados para lá. Mas o padrão socio-cultural é de pessoas que vieram de todo o lado. De Angola, cabo-verdeanos, moçambicanos. Não se pode dizer que são só animistas. Uns são católicos, outros evangélicos. Foram para ali “importadas” centenas de pessoas. Vêm de todo o lado. Quase tudo rodado lá.
Como correu?
Aconteceu de tudo. Essa é a minha forma de trabalhar. Digo-o afirmativamente porque já existe um padrão. Gosto de filmes de aventura em sítios diferentes. Ir para os locais é algo muito importante que faz parte do processo. Colocas toda a equipa numa situação específica. Costuma ser difícil ou cheia de desafios, o que cria uma tensão, não necessariamente conflituosa. Chovia, caíam estradas, os barcos afundaram-se à nossa frente. As pessoas apanhavam dengue. Tudo o que possa imaginar. Gravámos um podcast com a Sara Carinhas, uma das atrizes do filme, onde disse: “nunca saí do filme”. Ela continuou lá depois de parar de gravar. Gosto de trabalhar assim. Que pessoas conheçam o que me inspirou. Foi duro, claro.
Já voltamos à rodagem. Há um lado assombrado, fantasmagórico, mas nunca nos esquecemos que estamos a ver um filme de ficção. Foi importante nunca perder esse foco?
Muitas vezes, como professora, ou como pessoa que faz mentorias, tento explicar que a única diferença entre ficção e documentário, é que no primeiro, o profílmico, o que se passa atrás das câmaras, não existe tanto. É suposto não saberes. Não está implícito. É suposto não teres essa noção, de como foi feito. No documentário, essa realidade está sempre presente. O que acontece no “Banzo”, é que, quando não queres fugir à ficção, quando assumes que é uma história com actores, não perdendo o sentido das pessoas acreditarem, muitas vezes sentes que há algo de ficcional que está lá no filme. Não tento esconder. É um filme de época, tem muita construção de som e de imagem, muito cuidado. Os actores ou dizem o que está escrito ou não dizem.
Manter-se aberta.
Não sou muito, não [ri-se]. Podem-me trazer tudo. Não dou backgrounds das personagens. O que está escrito é o que está escrito. Depois em conversas, não em ensaios, eles vão sugerindo backgrounds, mas que não tenho acesso. Nem quero. O que está escrito é mesmo um guião. Há grande abertura para mudar durante ensaios, mas, a partir do momento, em que está terminado, gosto de manter o que foi escrito. É um momento de clareza, o da escrita. Depois é o que vai acontecendo. Há muita coisa que acontece e que dá vida ao filme. Ponho-me numa posição com milhões de imprevistos. Depois mantenho-me muito certinha ao guião. Houve alguém que me disse que o guião “era mesmo um guião”. Quando estávamos perdidos voltávamos lá.
O guião não é a ferramenta mais importante no cinema português?
É uma forma de trabalhar, não tem a ver com Portugal. Gosto desses imprevistos. Sou muito calma nesse aspecto, sem problema.
Há um lado psicológico, de trauma, que interessa explorar nesta conversa. Nós não precisamos de grande exposição de diálogo para percebermos o que está por detrás do filme. O efeito do banzo (processo psicológico depressivo experimentado por muitos dos escravos africanos forçados ao desterro) é algo que contamina o filme. Como descobriu esta doença mental?
Faço praticamente muito trabalho sozinha. Passo muito tempo num sítio. Visito muito os lugares, fico nos sítios, vejo, oiço, perco-me. Em São Tomé sempre achei que era uma espécie de portal para um estado de espírito. Não é para um passado. Para algo que ficou parado no tempo cujo a vida ainda lá está. A essência do mal que lá está é essa. Uma não agência. Uma incapacidade de poder modificar o estado das coisas. Sente-se em todo o lado. Na paisagem física, nas histórias, no que as pessoas contam. Todo o lado de subjugação, as hierarquias, a violência. Tudo ainda lá está. Há uma suspensão na ilha que quis aproveitar. Foi muito inspirador. Comecei a escrever sobre as plantações e depois apareceu a doença. Há muito texto sobre o banzo, a expressão surgiu no Brasil mas não se sabe a origem. Terá vindo do quimbundo, “banza”, significa o conceito de casa. Significa saudades de casa. Chamou-me a atenção os hospitais, depois os médicos, achei que devia vir alguém de fora mas não do ocidente. Não se sabia bem do que andava a fugir ou o que representava. Depois comecei a ler os relatórios e muita gente estava reportado como tendo uma doença que é, no fundo, a depressão. A nostalgia. A seguir, estudei a noção de nostalgia no século XVIII: existe a helvética, que curiosamente nasce na Suíça. A nostalgia das pessoas escravizadas vindas de África que morriam por tristeza, ou se suicidaram com bagas. A escrava que é representada em todo o lado, tem elementos na boca, as pessoas vêem aquilo, mas a maior parte nem sabem para que é que aquele bocal servia. Não era para morder. As pessoas escravizadas não mordiam. Era para impedir que comessem terra ou frutos envenenados.
“‘Banzo’ fala do passado mas há muito de presente. No racismo, na maneira de aceitar os outros. Na exploração, na forma de contratar as pessoas, de quem anda a trabalhar para nós no ocidente.”
A pessoa escravizada é tratada sem caracterização. Há aqui um lado poético mas trágico. Foi isso que a fascinou?
As pessoas poderem decidir ficar ou não num sítio, ou revoltarem-se contra uma determinada situação, dá essa dimensão. As pessoas podem pensar: a dimensão dos escravos no filme não tem a mesma dimensão do meu ponto de vista. Existe essa distância. Não sinto legitimidade. Haverá um filme feito do outro lado mas não será feito por mim. É um balanço difícil quando tens estes temas. Existem sempre os outros, de um lado para o outro, nos meus filmes. No “Banzo” temos um microcosmos que é a plantação, mas em todas as sociedades, se tens algo construído por cima de violência e de exploração, de ganância, de hierarquia, ninguém se pode entender. Não estou disponível para te entender. Só se vê diferenças. A personagem da Luísa (Sara Carinhas), que parece ter boas intenções mas que vai revelando incapacidade de perceber os outros, sendo a única white savier do filme, não estou do lado dela. Mas tem todos esses traços, de quem quer fazer o bem. Só que não consegue. Ela é essa pessoa que desiste. Está de partida. Gosto desse tipo de situação, em que todos somos culpados, ou estamos todos no lugar errado ao mesmo tempo.

Neste debate racial e colonial existem trincheiras. Em “Banzo” não há vilões e heróis. Qual é a sua posição?
Tenho dificuldade em ver tudo isto entre culpados e inocentes. Não quer dizer que não existam. O nosso cérebro funciona assim: estamos sempre à procura de enfiar tudo em caixas. Vejo tudo para o lado dos cinzentos. Há uma grande zona assim, pouco polarizada, que é onde está quase tudo aí. A minha intenção seria que, de certa forma, todos nos pudéssemos identificar com alguém no “Banzo”. O filme fala do passado mas há muito de presente. No racismo, na maneira de aceitar os outros. Na exploração, na forma de contratar as pessoas. de quem anda a trabalhar para nós no ocidente. Queria que a ambiguidade das personagens fizesse isso: de poderes ser uma dessas personagens. Falo dos exploradores. Dos que estão do meu ponto de vista. São boas e más.
Não são unidimensionais.
Certo. É possível reconhecer certos traços. O filme é mais complexo a esse nível porque tem muitas personagens. Assim acho que podemos chegar a uma reflexão mais profunda.
Tem pensada outro tipo de estratégia para comunicar este filme?
Não digo para me elogiar, mas, quase todos os meses, qualquer um dos meus filmes passa num sítio do mundo ou do país. Sei disto porque fui eu que fiquei com os ficheiros, porque as produtoras foram deixando de existir. Os filmes podem sempre encaixar-se num momento de reflexão. Dá-me muito prazer.
Há sempre um lugar?
Há. Não é só por causa do tema. São mostrados até por outras razões. O “Banzo” ainda não sei o que vai ser. Em França teve muito boa recepção crítica. Não terá muitos espectadores. Nos festivais, também. Em Portugal, vamos ver como corre. Espero que seja possível ter algumas conversas marcadas. Podem ser proveitosas. Mesmo que haja impacto, já estou habituada.
“A reparação histórica de Portugal para com as ex-colónias passa pelo gesto simbólico. Implica algo físico como as devoluções. Falo é mais sobre a ideia de ritual. Ou devolver um arquivo, uma série de peças. Vai ser um processo muito longo.”
O que acontece é que as conversas já estão de um lado da barricada. Da sua experiência, tem tido os dos dois polos da discussão?
Sim. Neste caso, há quem venha comentar, de que cor, sejam ou de onde vêm. Escritores, cineastas, artistas, anónimos, não sei. Na plateia, como em todos os meus filmes, há discussão. Isso é bom. Nem todos estão de acordo. Só não gosto, lá está, da ideia do cancelamento. Não me apanham aí só porque sou branca e privilegiada. O filme vai passar em São Tomé no final de maio. Estou a ajudar nesse sentido. Três sessões na cidade e outra numa comunidade, de onde vem quase tudo que colaborou no filme.
Dava uma bela reportagem.
Sim. As reações das pessoas a verem-se é mais de: “olha eu”. Criam-se outros debates. É uma excitação muito grande. No IndieLisboa metade das pessoas estavam a filmar as suas partes. Nunca fico na sala, mas nunca tinha visto tantos telemóveis em sala. Espero que o diálogo continue tal como aconteceu noutros filmes meus.
Marcelo Rebelo de Sousa falou que estava na altura da reparação histórica de Portugal para com as ex-colónias. Tem uma resposta sobre o que devemos fazer? Objetiva, contrária ao “Banzo”.
Há vários níveis. O caso de São Tomé é dificílimo. A identidade do país é complicada. Foi um nível de exploração total. São Tomé representa todas as ex-colónias. Os caboverdeanos foram explorados até à última, basta ver as fomes dos anos 40 e 60. Há muito por onde reparar na nossa história. Agora a questão é: de que forma? Não há uma conta em dinheiro. Há uma cantora que diz que “a conta vai chegar”. E vai. Já está a chegar. Claro que não será em dinheiro. Temos de começar a perceber como é que vamos pagar a conta. E só podemos fazê-lo se houver uma aceitação sobre os actos. Acho que passa pelo gesto simbólico. Implica algo físico como as devoluções. Falo é mais sobre a ideia de ritual. Ou devolver um arquivo, uma série de peças. Vai ser um processo muito longo.
E está a ser pensado?
É uma reação. Muita gente nem consegue imaginar como deve ser feito. Já há uma série de instituições a prepararem-se para essa reparação. O rei nos Países Baixos quis pagar em dinheiro. O processo francês é mais parecido com o nosso. Na academia, comenta-se que o nosso sistema de recolha de peças e etnografia não teve nada a ver com outros países. Nós não fomos terríveis, perguntávamos se queriam vender determinadas peças. E não foi isso que aconteceu. Nas missões retiravam-se objetos de culto, queimava-se, enterrava-se e roubava-se. Devemos criar momentos bonitos onde há uma restituição física, por exemplo. E não digo “momentos queridinhos”, são simbólicos. Têm de ser feitas em ambas as partes. Sou uma leiga, tenho é a intuição que será assim. E tem de ser assim. O António Pinto Ribeiro [professor universitário e Doutorado em Estudos de Cultura] contou-me que em França estavam a restituir um arquivo, digitalizou-se tudo e ofereceram simbolicamente um CD. A senhora, que devia ser uma ministra, disse: “os CD’s são para vocês, para nós volta todo o arquivo”. O que possa ser devolvido, deve ser, sem nenhuma questão.

Isso trará sempre resistência. Digo a nível social e não político. Há quem se questione sobre porque é que deve “pagar” pelos erros dos antepassados?
Quando há futebol, grita-se e diz-se: “Portugal”. Então não digas “Portugal”. Cala-te. Futebol, sim, erros do passado não? Se queres reivindicar a identidade, tem de ser feito. Pode-se dizer que nasceste noutra época e essa culpa pode não ser hereditária. Não é. Mas, de certa forma, é. Se queres manter uma certa identidade, se é algo que te interessa, tens de pensar que não vieste do nada. Tenho muitos amigos académicos que defendem que a culpa não é individual. Há quem acredite que não devem ser julgadas pelo momento e que nada tem a ver com identidade. Eu acho que têm.
Não se encontra uma forma dos portugueses verem filmes portugueses. É uma velha cantiga. Continuamos a ser salvos pelos super-heróis e pela animação. Houve 68 filmes nacionais estreados em 2024. Faz sentido? Se não há massa crítica…
Os espectadores vão sempre diminuir. Sou professora há muitos anos, estou próxima das gerações jovens. Vou dez vezes menos ao cinema do que ia antigamente. Tudo me distrai. Vejo cinema em plataformas ou em tablets. O cinema deixou de ser um momento de dopamina, que agora chega de todo o lado. Há outros estímulos. Ainda temos a expectativa, bem com os sistemas de apoio, do número de espectadores. Os melhores filmes de 2024, houve um que teve 500 espectadores. O “Estamos no Ar” do Diogo Costa Amarante. Porquê? Como? Acho que fiz mais com o “Sita – A vida e o tempo de Sita Valles” (2022), filme de televisão. Há filmes que não são para estrear no cinema mas que recebem subsídio para que isso aconteça. Na minha opinião, e contra mim falo, porque já tive filmes que não deviam estar numa sala de cinema, mais de metade dos filmes portugueses não precisavam de estar em sala. E digo isto sem estar contra os meus colegas. Só estreiam porque têm um subsídio. Nenhum distribuidor iria colocá-lo em sala sem esse apoio público. Isso não existe. Se fosse contar todos os meus espectadores, não é comparável com o que já foi reportado no box office do ICA. É extremamente frustrante estrear sabendo que não tens espectadores para os teus filmes em sala. Depois, o tempo que um filme vive é rentável. Não digo que é altamente rentável. Mas tudo se vai pagando com o tempo. Também vou sofrer disto com o “Banzo”. Tens expectativa e andas a sacar espectadores com saca-rolhas.
“Vou dez vezes menos ao cinema do que ia antigamente. Tudo me distrai. Vejo cinema em plataformas ou em tablets. O cinema deixou de ser um momento de dopamina, que agora chega de todo o lado. Há outros estímulos.”
O espectador tem culpa?
Não o devemos culpar. Os meus alunos de cinema não vêem filmes. Não são todos, todos. Nem sei bem o que vêem. Vivem noutra dimensão. Gosto imenso de trabalhar com jovens, mas o hábito já não é de ir ao cinema. Quando comecei a dar aulas, trazia referências e eles faziam remakes de cineastas clássicos, claro. Hoje em dia, quando mandas trabalhar uma cena, trazem um filme sabe-se lá de onde. Há pouca orientação, o que pode ser bom. É um lago onde as pessoas se perdem. A capacidade de concentração também é uma perda para o cinema. Uma pessoa que tenha 14 anos, vai para a universidade com 19 anos, tem zero de noção de narrativa. Existe uma dificuldade de vocabulário, por exemplo. As unidades, o que cria uma narrativa, é esquecido. É uma dificuldade horrível. É tudo muito imediato. A erosão narrativa é negativa, porque é algo estruturante no ser humano. O storytelling, que é algo onde somos mesmo incríveis como seres humanos, toda a nossa estrutura é feita através de histórias, e estamos a quebrar essa matriz.

Temos de aceitar essa sina?
Temos de aceitar que se pode transformar em art house. A quantas leituras de poesia vai? Se calhar nenhuma. Vou a duas ou três porque os amigos meus que me “obrigam”. A poetisa Wislawa Szymborska é que escreveu: “Os que aqui estão, ou são família ou alguns vieram porque está a chover lá fora”. E ela é Prémio Nobel. Temos de aceitar que um livro de poesia tem mil exemplares de triagem e não é por isso que deve deixar de existir. O cinema como outro tipo de reflexão tem de aceitar esse lugar. É pena mas a verdade é essa. As expectativas são tão ao lado, que é tudo frustrante. Acho bem tentar-se mas calma.
É preciso aprender a gerir expectativas.
É preciso pensar o que realmente se está a passar e como se aproveitar o que foi criado no cinema. Tenho este ar certo mas não tenho certezas. Tenho mais dúvidas.
“Os meus alunos de cinema não vêem filmes. Não são todos, todos. Nem sei bem o que vêem. Vivem noutra dimensão. Gosto imenso de trabalhar com jovens, mas o hábito já não é de ir ao cinema.”
Não é como Cavaco Silva. “Nunca tenho dúvidas e raramente me engano”. Fale-me de próximos projectos. Em que fase estão?
“A Devolução” tem o tema de que estávamos a falar. Parte do princípio da restauração. Tenho de entregar o projecto no início deste ano. Tenho dúvidas sobre o momento do filme. Há outro projecto em andamento. O “Caderno de Memórias Coloniais”: adoro o livro, e trabalhei com a Beatriz Batarda, concordando que devíamos fazer uma adaptação através da animação. Concorremos para apoios públicos mas ficámos sempre em segundo lugar. A ideia era ser uma longa-metragem de animação. Podia ficar fantástico assim. Ainda não desisti. Adoro o livro. Vamos ver o que consigo fazer com o produtor. Talvez precise de um nome mais sonante na animação. Não vejo utilidade em usar imagem real.
Falemos do dia histórico para Moçambique, em que um novo presidente toma posse, o Daniel Chapo. Foram dias e meses complicados.
Olho com preocupação, mesmo não tendo a mesma relação com o país. Muitos dos meus amigos foram saindo do país. Restam poucos laços reais. Um país que já teve a história que teve, a guerra pela Frelimo, e não se podia dizer que era guerra civil. Era proibido. Tentaram tirar isso do filme “Kuxa Kanema”. A Frelimo nunca quis reconhecer a existência de outras forças dentro do país, se não as infiltradas da África do Sul e, na altura, da Rodésia, agora Zimbabué. Como não aceitam, há agora outras forças. Havia uma guerra civil porque havia outra etnia no norte desiludida com aquela independência. Tenho pena. Nunca foi resolvido. E agora podem cair num conflito com mais aspectos. Também temos conflitos islâmicos no norte. É um barril de pólvora.