Entrevista. Maria Francisca Gama: “O que me levou a escrever sobre o Rio de Janeiro tem que ver com as leituras que faço. Leio muitos autores brasileiros e gosto muito da língua, de como soa”
Com 26 anos, Maria Francisca Gama leva quatro livros publicados em nome próprio, incluindo “A Cicatriz”, editado este ano pela Suma de Letras. Em entrevista a Magda Cruz, revela detalhes da escrita deste mais recente romance e de como um outro manuscrito ficou na gaveta com o aparecimento desta história que se passa no Rio de Janeiro, no Brasil.
No “Ponto Final, Parágrafo”, Maria Francisca Gama fala da evolução da escrita, de próximos livros, da interação com os leitores e ainda sobre os objetivos do Clube das Mulheres Escritoras.
Magda Cruz: Tens 26 anos e quatro livros publicados. Já te sentes escritora?
Maria Francisca Gama: Depende dos dias. Acho que, para os outros, sou escritora. Até porque é isso que eu faço e é isso que me ocupa a maioria do meu dia. Portanto, eu acho que nós somos aquilo que nós fazemos, a partir de certa altura, independentemente do título que lhe demos. Agora, para mim, principalmente enquanto leitora, é-me muito difícil dizer que sou escritora (risos) porque eu leio livros muito bons – na maioria das vezes livros muito melhores do que aqueles que eu escrevo.
MC: Também é bom sinal. É sinal de que há boas coisas aí fora.
MFG: Sim, e é sinal de que há caminho para percorrer. Depois de ler obras que adoro e que realmente sinto que contribuem muito para a Literatura do século XXI, fico sempre com alguma vergonha e com algum pudor de dizer “Ah, sou colega aqui deste escritor”.
MC: Em 2022 publicaste “A Profeta”. Sentes que evoluíste desde aí para “A cicatriz”, o teu mais recente livro?
MFG: Sim, “A Cicatriz” saiu em fevereiro de 2024. Sinto que evoluí – acima de tudo porque, tendo saído a publicação de “A Profeta” em 2022, o livro não foi escrito nesse ano. Foi escrito antes disso. Foi escrito maioritariamente em Buenos Aires, no quarto ano do meu curso de Direito, em que tive a oportunidade de estar lá a viver e a estudar durante seis meses.
MC: Lias a Constituição e escrevias Literatura.
MFG: Sim, lia pouco a Constituição, que o Erasmus foi assim especialmente facilitado. Foi uma altura em que escrevi muito e claro que escrever um livro aos 20 anos, 21 quando terminei… Aos 21 anos já trabalhava no escritório de advogados e escrever um livro no ano passado, com outras vivências, já a trabalhar em casa há um ano e tal, são experiências completamente diferentes, que depois também… Essa experiência imprime-se no livro e nota-se uma melhoria. Deus queira.
MC: É o que dizem: que há evolução entre os dois. E – lá está – há caminho para percorrer. Ou seja, entre esses dois livros há dois anos de diferença. Já pensaste no caminho literário que queres fazer? Se queres ter livros de dois em dois anos? Por exemplo, o João Tordo (vamos falar dele neste episódio) tem um livro a cada ano. Já pensaste nisso?
MFG: Já.. Claro que, à medida que o tempo vai passando, e determinadas metas vão sendo atingidas aqui mais por parte… No sentido… A editora é que se preocupa com isso. Não sou eu. Eu preocupo-me em escrever e não entregar livros que eu acho que não são melhores do que aqueles que já entreguei. Mas, naturalmente, há um desafio de “escreve, vamos tentar publicar, queremos ler mais coisas, vamos a isto”. Porque as coisas vão correndo bem e claro que há essa expetativa. Agora, aquilo que o João Tordo faz é admirável e também é sinónimo, creio eu, de uma vida – pelo menos agora – de abdicação de um conjunto de coisas para se dedicar em exclusivo à escrita. E, enquanto pessoa que também escreve, a verdade é que aquilo que ele faz é muito admirável, mas também muito assustador porque é muito tempo fechado para chegar a um produto final. E quando esse produto final é atingido, tem de se começar a fazer outro. E eu, talvez pela diferença de idades, estou numa fase da minha vida que sim, quero escrever; sim, escrevo todos os dias; mas não posso assumir nem para comigo nem para com os leitores o compromisso de publicar um livro por ano. Em primeiro lugar, porque o meu trabalho não está tão bem oleado, como é óbvio, quanto o do João [Tordo]. Se calhar, ele senta-se, e começa a escrever uma história e tem as ferramentas necessárias para, mesmo que não esteja a correr bem, dar a volta e acabar com um grande livro. Eu ainda não estou aí, portanto, muitas das vezes aquilo que escrevo é uma porcaria, não serve para nada, vai para o lixo. E esse processo de recomeçar, o tempo vai passando. Além disso, acho que estou numa fase em que tenho de viver. Por isso, não sei quando é que sai o próximo livro. Talvez até saia no próximo ano. Aqui a questão é que não quero impor prazos nem quero dizer que vou publicar daqui a x tempo. Até porque acho que a carreira não se faz de uma publicação constante. Acho que a carreira faz-se de cada vez que se publica, publicar coisas melhores. O João [Tordo] consegue fazer as duas coisas, mas há muitos escritores que nessa pressa, ou porque vêm de um sucesso literário publicam qualquer coisa a seguir, e é um grande falhanço, e os leitores não perdoam. Perdoam só à primeira vez, que compram ao engano e depois não perdoam mais. Não quero que os leitores fiquem aborrecidos.
MC: Desculpa-me a pergunta, se calhar estou a avançar de mais, mas deste-me a ideia que estás a trabalhar num manuscrito, é isso?
MFG: Sim, sim. Estou. (risos)
MC: Um escritor está sempre a trabalhar.
MFG: Sim, eu tenho escrito outras coisas além de livros.
MC: Incluindo um guião para cinema.
MFG: Sim, para cinema, que está agora em análise no ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual). E a verdade é que estou a escrever um livro que pode perfeitamente nunca ver a luz do dia. Isso aconteceu-me o ano passado. No início do ano, eu tinha mais de metade de um livro escrito, que felizmente tive a sobriedade de perceber que não era um bom livro e guardei-o na gaveta para o reescrever daqui a uns anos, talvez. E o período histórico coincidia com o “Revolução”, do Hugo Gonçalves, portanto fiquei muito aliviada e contente de ter tido essa sobriedade de não querer publicá-lo. Eu já li o “Revolução”. É um livro muito bem escrito, uma construção narrativa que não há nada a dizer…Impecável. E ter-me-ia embaraçado muito termos publicado, ao mesmo tempo, um livro que se passava mais ou menos no mesmo período histórico. E é nesses dias que fico orgulhosa de não ter pressa.
MC: De ter feito uma boa análise. E é aí, quando pões esse manuscrito de lado, na gaveta, que surge “A Cicatriz”, que começas a escrever, ou esses manuscritos coexistiram?
MFG: Não, foi mais ou menos assim. Eu escrevi cento e tal páginas do outro livro, que tinha título. Chamava-se “Graças a Deus”. Um título que todas as pessoas com quem partilhei disseram que não era um bom título…
MC: A premissa tinha que ver com divindades?
MFG: Não… Era baseada na história de amor dos meus avós, que tem um bocadinho de verdade, mas também tem muita mentira porque é um traço do discurso da minha avó, que inventa muito e assim não sei o que é verdade e o que não é. Mas, supostamente, os meus avós conheceram-se em Lamego, há muitos muitos anos, e o meu avô estava no seminário e a minha avó estava no convento. E eles fugiram, passados alguns anos, e casaram-se já nas Caldas da Rainha. E o meu avô e a minha avó, durante anos e anos, não tiveram contacto nenhum com as famílias deles porque o meu avô foi expulso, digamos assim, da sua família, porque era o filho que seria padre. E como não quis, para casar com a minha avó, que ainda por cima era muito pobre, a família quebrou os laços que tinha com eles. Anos mais tarde, cerca de dez ou quinze anos, a minha mãe, através do Facebook, conseguiu chegar ao contacto de primos e tudo mais. Portanto, estava a escrever um livro sobre isto e achei que “Graças a Deus” era…
MC: Porque era uma união graças a Deus.
MFG: Sim, uma prova do meu sentido de humor. Mas entretanto, o livro não tinha aquilo que eu acho que era necessário.
MC: Não tinha força.
MFG: Sim, sim. Talvez com outra maturidade, daqui a uns anos…
MC: Reescrevas e pegues no tema…
MFG: Sim, porque eu gostava de oferecer isso aos meus avós. Eles são muito queridos e são apoiantes fervorosos, muito atentos do meu trabalho. E eu sei que eles gostam muito da história deles e contam-na muitas vezes, como a maioria dos avós faz. E eu gostava de deixar isso para eles verem em vida.
MC: Então surge “A Cicatriz”.
MFG: Sim, exatamente. Depois de fazer esse exercício e de perceber que o livro não era bom e que a continuação da história era um arrastar da minha dificuldade em dizer “Tenho de começar de novo”, fui para o Rio de Janeiro, fazer uma viagem, e mal aterrei percebi que queria escrever qualquer coisa que lá se passasse. Depois, comecei a escrever “A Cicatriz” quando regressei. Depois é assim uma névoa que já não me recordo muito bem e de repente o livro estava escrito.
MC: As paisagens impeliram-te a escrever.
MFG: Sim, eu já tinha estado no Rio de Janeiro e acho que é uma cidade muito muito bonita e tem… Eu odeio esta expressão da “luz própria”, quando as pessoas dizem que “tem luz própria”, mas…
MC: Tem matéria…
MFG: Sim, é uma cidade que tem muita personalidade. E tem tanta personalidade e é tão única e tão autêntica, que existe por si só. A cidade podia não ter ninguém e continuava a ser uma cidade com vida. Eu acho isso muito interessante e não acontece em muitas cidades. Sim, inspirou-me muito.
MC: Vais voltar?
MFG: Vou, vou. Em dezembro deste ano.
MC: É a lua de mel?
MFG: Não, não. Eu bem tentei, mas fui convidada a conhecer outras partes do mundo, que eu também acho que é muito importante e também tenho muito gosto em ir a outros sítios. Mas realmente, o Brasil tem o meu coração. E gostava muito de viver uma temporada lá.
MC: Tens até no teu livro uma expressão que representa aquela ideia de que é melhor não voltar aos sítios onde fomos felizes. Que relação é que tens com o Rio que te levou a escrever este romance?
MFG: O que me levou a ter a ideia de escrever sobre o Rio de Janeiro tem que ver com as leituras que faço. Eu leio muitos autores brasileiros. Gosto muito da Língua, do Português do Brasil, como dizemos cá. Eles dizem o Brasileiro. Nós dizemos Português do Brasil. Eu gosto muito da Língua, de como soa, de como é escrita, da forma como pontuam e senti sempre, ao ler autores brasileiros, que de alguma maneira eles estavam noutro lugar que nós, autores portugueses, não sei se já estamos, de escreverem para os leitores e não para a crítica. E é uma escrita mais despida, mais descontraída, que não tem receio de ofender, de magoar, de não estar perfeita, de não estar polida. E eu gosto disso porque acho que é assim que as pessoas falam e é assim que as pessoas existem. E esse género de escrita aproxima os escritores do livro. Porque eu acho que a Literatura que é escrita para um nicho é muitíssimo válida, mas não é aquela que eu leio, na maioria das vezes, apesar de provavelmente até a poder entender porque leio muitos livros e isso capacita-me, supostamente, para ser leitora desse género de livros. Mas também não é a Literatura que eu, em primeiro lugar, acho que consiga escrever, e segundo, que queira escrever. Eu quero escrever livros para todos. E que as pessoas leiam e gostem e percebam. E acho que os brasileiros estão muito mais nesse lugar do que nós.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: