Entrevista. Marie NDiaye: “A função mais secreta da literatura é permitir-nos ser muitos sem deixarmos de ser nós mesmos”

por Lís Barros,    23 Outubro, 2025
Entrevista. Marie NDiaye: “A função mais secreta da literatura é permitir-nos ser muitos sem deixarmos de ser nós mesmos”
Marie NDiaye / DR
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Autora de uma das obras mais singulares da literatura francófona contemporânea, Marie NDiaye escreve à margem das classificações fáceis. Desde Rosie Carpe e Três Mulheres Poderosas, a sua ficção habita a zona crepuscular entre o real e o enigma, onde as relações familiares, a identidade e a memória se tornam matéria de inquietação moral.

Em Ladivine — romance de uma beleza severa e hipnótica —, NDiaye leva ao limite o tema da origem e da negação, compondo uma meditação sobre o que herdamos, o que escondemos e o que o amor não consegue redimir.

Publicado em 2013, no período de plena maturidade criativa da autora — depois do reconhecimento com Rosie Carpe (Prémio Femina, 2001) e do decisivo Três Mulheres Poderosas (Goncourt, 2009) —, o livro parece reunir os fios dispersos de uma obra que, desde o início, se constrói sobre o desconforto: a identidade instável, a mulher em deslocamento, a herança inconfessável.

Fotografia de Francesca Mantovani – Editions Gallimard

Filha de mãe francesa e de pai senegalês, NDiaye cresceu nos subúrbios de Paris, num ambiente onde a sua dupla origem era quase invisível. Uma experiência que viria a marcar profundamente o seu imaginário. Desde muito jovem, leu e escreveu como quem procura um lugar no mundo, num espaço entre o visível e o indizível. Essa tensão íntima, entre pertença e apagamento, entre voz e silêncio, percorre toda a sua obra.

Em Ladivine, essa voz atinge a plenitude do seu estilo: uma prosa elíptica, de precisão musical, que combina realismo psicológico e pulsação onírica, e que faz do silêncio o seu verdadeiro tema.

No centro da história está Clarisse Rivière, que em tempos se chamou Malinka, filha de Ladivine Sylla, uma mulher negra, pobre, de dignidade simples e tenaz. Desde cedo, Malinka decide romper com esse mundo. Renega a mãe, muda de nome, muda de pele, por assim dizer, e constrói para si uma vida de mulher “respeitável”: casa-se com Richard Rivière, um homem branco e comum, estabelece-se numa pequena cidade francesa, cria uma filha a quem, ironicamente, chama Ladivine. O nome é mais do que homenagem: é a sombra, a duplicação simbólica da mãe que ela tentou apagar. Tudo em Ladivine se move nesta tensão entre o apagamento e o retorno: o que é negado reaparece, o que é esquecido vigia.

“A literatura é o único lugar onde o silêncio pode ser habitado. Escrevemos para dizer o que não pode ser dito de outra forma.”

Marie NDiaye

Clarisse vive, portanto, entre duas existências paralelas. Uma, luminosa e socialmente legítima; outra, escondida, quase clandestina, marcada por visitas secretas que faz à velha mãe, numa cidade distante. Nessas viagens mensais, Clarisse desce às origens que renega, mas o gesto é ambíguo: parece tanto penitência quanto compulsão. NDiaye narra esses encontros com uma lentidão quase ritual e revela a estranha ternura de uma filha que já não sabe amar senão através da mentira. A cada visita, a mesma farsa repete-se — Clarisse nunca fala da sua vida, nunca menciona o marido nem a filha, como se quisesse poupar a mãe a humilhação da exclusão. Mas é precisamente nesse silêncio, nessa “proteção”, que reside a violência maior.

O romance acompanha o esfacelamento dessa duplicidade. Clarisse acredita dominar o jogo, mas é o jogo que a domina. O passado infiltra-se nas frestas da vida nova, e o peso da vergonha — essa herança invisível — instala-se na filha. A jovem Ladivine, que carrega o nome da avó, cresce sob o signo da ausência: sente o desconforto, o mistério, o interdito, sem saber exatamente de onde provém. Assim, Ladivine transforma-se num estudo do contágio moral, daquilo que se transmite entre gerações não por palavras, mas por gestos omitidos, por silêncios herdados.

A história, longe de linear, dobra-se sobre si mesma. A certa altura, a perspectiva muda, e a voz narrativa desloca-se — ora para a mãe Ladivine, ora para a filha, ora para zonas intermédias onde o real se contamina de fantasmagoria. O tom torna-se mais enigmático com cães que observam, sonhos que invadem a vigília, sombras que persistem como presenças. Esse elemento de fábula, tão característico da obra de NDiaye, não visa o sobrenatural, mas o hiperreal, um mundo emocional elevado à sua temperatura mais alta.

Capa do livro / DR

Em Ladivine, a vergonha é quase uma personagem. Não é apenas sentimento mas estrutura e força motriz. Clarisse acredita poder tornar-se “outra” pela força da vontade, mas a literatura de NDiaye mostra o contrário: ninguém escapa à inscrição social do corpo, à marca da história, ao eco da origem. A negação não liberta; apenas adia o retorno. E é nesse adiamento que a autora constrói uma parábola moderna sobre a identidade e a raça na França contemporânea. Clarisse, mulher que se vê e é vista como branca, vive a contradição de uma sociedade que proclama igualdade, mas exige o esquecimento da diferença como preço de aceitação.

O leitor é então confrontado com a mecânica íntima da violência social. Não a agressão explícita, mas o desgaste invisível, o constrangimento cotidiano, a necessidade de apagar o que se é para sobreviver. Marie NDiaye transforma isso em literatura com uma sobriedade que espanta com uma prosa que nunca acusa nem moraliza, antes observa, como se cada gesto humano fosse uma evidência arqueológica do medo.

“Podemos desfazer-nos do peso das heranças más. A arte ajuda, mas não é a única via. Há pessoas que, sem serem artistas, conseguem escolher o que querem ou não querem transportar da sua história. Escrever, para mim, é uma forma de cura, porque permite transformar aquilo que nos persegue em linguagem.”

Marie NDiaye

A segunda metade do livro intensifica a herança do trauma. Quando Clarisse desaparece (NDiaye prefere deixar o verbo em suspenso), é a filha Ladivine quem herda o destino. Ao viajar para um país estrangeiro com o marido, ela mergulha num ambiente onde o tempo se dissolve e o enredo adquire contornos quase míticos. Lá, a jovem confronta-se com versões distorcidas de si, com figuras que parecem saídas da memória ancestral. O romance atinge, nesse ponto, uma dimensão quase alegórica e a narrativa torna-se um espelho onde se reflete o peso das gerações, o custo de negar a origem.

A arte de NDiaye, nesse movimento, é a de conjugar o íntimo e o histórico. Ladivine não é apenas o drama de uma família, mas a miniatura moral de um país. Uma França que, entre o universalismo proclamado e as feridas coloniais, ainda ensaia o seu próprio espelho. Ao mesmo tempo, o romance fala de todas as sociedades onde ascender implica amputar, e onde o sucesso de uma geração depende da invisibilização da anterior.

No plano formal, NDiaye alcança aqui o ponto culminante de uma pesquisa que atravessa toda a sua obra: a escrita como território de estranhamento. A autora recusa a transparência narrativa, preferindo uma linguagem que desliza entre tempos e consciências. A sintaxe parece refletir uma mente que hesita entre o que quer lembrar e o que deseja esquecer. O resultado é uma prosa densa, mas nunca hermética. Lembra uma música subterrânea, feita de ritmos e silêncios.

Marie NDiaye / DR

Ler Ladivine é participar de uma experiência de inquietação moral. A cada página, o leitor é obrigado a deslocar o olhar, a repensar o que entende por culpa, filiação, identidade. O livro não propõe soluções, antes perguntas persistentes. Como nomeamos as nossas origens quando o nome se torna uma vergonha? O que resta de nós quando a mentira se torna condição de existência? E até que ponto é possível construir uma vida nova sobre o esquecimento de quem nos deu a primeira?

Em última análise, Ladivine é um romance sobre o preço da negação — e, portanto, sobre o poder corrosivo do silêncio. Clarisse Rivière constrói uma vida socialmente irrepreensível, mas essa vida está erguida sobre uma ausência. O mundo que Marie NDiaye descreve é o de uma elegância tensa, uma sociedade que se perfuma para ocultar o cheiro do medo. No fim, o silêncio que parecia proteger é o mesmo que devora.

“Quanto mais lemos, mais descobrimos histórias sobre a humanidade, sobre a condição humana. E isso afasta-nos da guerra. Porque matar o outro é, no fundo, matar a outra ideia de nós mesmos — e quem lê, compreende isso.”

Marie NDiaye

Marie NDiaye escreve, assim, a tragédia de uma mulher moderna que acredita poder reinventar-se à custa da origem, e de uma filha que paga por esse equívoco. Ladivine é a história dessa dupla condenação — uma narrativa que começa na negação e termina na repetição, porque o que é recalcado retorna, sempre, com a força das coisas que não puderam ser ditas.

Admiradora confessa de Clarice Lispector e Lobo Antunes, Marie NDiaye fala nesta entrevista com a mesma discrição intensa que atravessa os seus livros.

O seu romance Ladivine explora a vergonha, o segredo e a filiação. Em que momento sentiu que esses temas, tão íntimos, se tinham tornado inevitáveis na sua escrita?

É difícil datar o instante em que um tema se impõe. Antes de começar a escrever, passo meses — às vezes um ano inteiro — apenas a pensar, a sonhar, a ler. São longos períodos de gestação mental durante os quais tudo parece em suspensão. A certa altura, as ideias, os rostos, as vozes começam a formar-se sem que eu me aperceba. Ladivine nasceu assim, de uma reflexão silenciosa que se transformou em necessidade. Quando o livro finalmente se impõe, já existe há muito dentro de mim; apenas espera a linguagem certa.

“O teatro é o diálogo exterior; o romance é o murmúrio interior.”

Marie NDiaye

Quanto tempo levou a escrevê-lo?

Pouco menos de dois anos. É o tempo habitual que demoro entre o primeiro esboço e o ponto final. Mas este é, creio, o meu livro mais volumoso, não apenas em número de páginas, mas em densidade emocional.

Capa do livro / DR

A escrita teatral influenciou de algum modo o romance?

Não diretamente. São universos distintos na minha mente. As peças nasceram sempre de pedidos — de encenadores, de atrizes, de teatros —, enquanto os romances são um impulso íntimo, uma decisão pessoal. Talvez os temas se toquem, mas nunca por intenção consciente. O teatro é o diálogo exterior; o romance é o murmúrio interior.

“As mentalidades mudaram, a mestiçagem é aceite, embora persistam resistências em certos meios.”

Marie NDiaye

Clarisse/Malinka constrói a sua vida sobre uma mentira protetora. O que é que isso revela, na sua opinião, sobre a forma como as nossas sociedades moldam as identidades — sobretudo as femininas e as raciais?

Clarice é uma mulher dos anos 1970. Naquele tempo, em França, ter uma mãe negra, africana, era algo quase inaceitável socialmente. A vergonha não vinha de dentro, mas do olhar dos outros. Ela protege-se escondendo uma parte de si — algo que hoje talvez não precisasse de fazer. As mentalidades mudaram, a mestiçagem é aceite, embora persistam resistências em certos meios. A eleição de Obama, por exemplo, foi simbólica desse movimento. Não é um ponto de chegada, mas um sinal de que as perceções evoluem.

Essa evolução foi nítida para si?

Não houve um momento decisivo, mas uma lenta transformação. Cresci numa França onde um nome não europeu ainda causava estranheza. Hoje, a diversidade faz parte do quotidiano. Isso é essencial, porque liberta a imaginação. Uma sociedade onde se pode ver rostos, cores e nomes diferentes é também uma sociedade com mais histórias possíveis.

Em Ladivine, mãe e filha parecem ligadas por um fio invisível que nem a distância nem o silêncio conseguem romper. Acredita que a literatura pode tornar visível esse laço secreto entre gerações?

Acredito que sim. O que me interessa é escrever livros que nos façam compreender o que nos une, mesmo quando essas ligações são obscuras ou dolorosas. A literatura é o espaço onde conseguimos nomear tanto o amor como a dominação, o afeto como a servidão. Escrever é organizar o caos — não para o simplificar, mas para reconhecer o que nele existe de humano. A boa literatura desperta em nós uma consciência nova daquilo que partilhamos com os outros, sejam mães, pais, filhos, amantes, amigos ou estranhos.

Marie NDiaye / DR

O seu estilo é imediatamente reconhecível — longo, musical, cheio de suspense e de tensão. Procura conscientemente uma espécie de transe na frase, ou é o ritmo que dita a história?

Nunca procuro conscientemente nada. A forma nasce da história. O ritmo da frase é ditado pelo que quero revelar ou esconder de cada personagem. A escrita segue o movimento interno da mente — e a minha tende a circular, a regressar, a insistir. Penso em espiral, o que talvez dê essa sensação de repetição e de eco. Mas não é um cálculo estético: é a maneira como o pensamento acontece.

“Uma sociedade onde se pode ver rostos, cores e nomes diferentes é também uma sociedade com mais histórias possíveis.”

Marie NDiaye

Há quem diga que há uma dimensão psicanalítica nos seus romances.

É possível. Mas nunca fiz psicanálise, nem tenho amigos psicanalistas. O que me interessa é o mistério do outro, aquilo que nunca compreendemos totalmente. Por isso gosto de livros abertos, que deixam perguntas no ar. A compreensão total seria uma ilusão. Os romances que me encantam são os que nos fazem sonhar mesmo depois de fechados. É por isso que raramente gosto de romances policiais — porque no fim tudo se explica e o mistério desaparece.

Que autores a marcaram mais profundamente? Traz na sua escrita algum autor africano?

Foram muitos, e em momentos diferentes da vida. Quando era jovem, lia os clássicos franceses — Proust, Flaubert, Maupassant — e os russos do século XIX, que me ensinaram a observar a alma humana. Mais tarde, a literatura americana do século XX abriu-me outras possibilidades de voz e ritmo. E há cerca de quinze anos descobri António Lobo Antunes — foi um choque. A liberdade do seu estilo, o modo como repete, retoma e transforma as frases, é algo que admiro profundamente. Ele é, para mim, um escritor essencial. 

Ao mesmo tempo, na minha infância, a mãe lia-nos contos e lendas da África negra. E eram histórias em que os protagonistas eram animais como a lebre, a hiena. Mas eram animais que, nas ilustrações, se erguiam como os humanos, de pé, sobre as suas patas traseiras e que usavam roupas ocidentais.

Acredito sinceramente que me inspiraram ainda mais do que os contos de Grimm, que eu adorava —  os de Andersen, os mitos gregos, todos eles. Li-os e amei-os a todos. Mas creio que foram os contos e as lendas da África negra que me marcaram mais profundamente. Em cada história, pelo que recordo, havia uma ligação com o mundo do maravilhoso: as árvores tinham voz, as plantas possuíam também a sua própria linguagem. E eram elas, as plantas e as árvores, que ofereciam conselhos aos animais humanos. Era verdadeiramente fascinante. Esses contos e lendas serviam de livros de leitura para ensinar as crianças do Senegal a ler, nas décadas de 50, 60 e 70 — agora, já não sei.

“O que me interessa é escrever livros que nos façam compreender o que nos une, mesmo quando essas ligações são obscuras ou dolorosas. A literatura é o espaço onde conseguimos nomear tanto o amor como a dominação, o afeto como a servidão. Escrever é organizar o caos — não para o simplificar, mas para reconhecer o que nele existe de humano. A boa literatura desperta em nós uma consciência nova daquilo que partilhamos com os outros.”

Marie NDiaye

Cresceu num ambiente em que a sua dupla origem era quase invisível. Como é que esse sentimento de estranheza familiar alimenta o seu imaginário de escritora?

O facto de o meu pai ser africano era visível — no meu rosto, no meu nome. Não havia forma de o esconder. Quando era criança, sentia uma responsabilidade: a de mostrar que uma criança mestiça podia ser perfeita, estudiosa, amável. O meu irmão e eu éramos os melhores da turma. Queríamos provar que merecíamos o nosso lugar. Essa exigência marcou-me, mas também me deu uma força discreta: a de não depender do olhar dos outros para existir.

“O que me interessa é o mistério do outro, aquilo que nunca compreendemos totalmente. Por isso gosto de livros abertos, que deixam perguntas no ar. A compreensão total seria uma ilusão. Os romances que me encantam são os que nos fazem sonhar mesmo depois de fechados.”

Marie NDiaye

Em vários dos seus romances, a vergonha e a culpa parecem quase hereditárias. Acredita que é realmente possível libertar-nos do que herdamos — ou apenas transformá-lo em arte?

Sim, acredito. Podemos desfazer-nos do peso das heranças más. A arte ajuda, mas não é a única via. Há pessoas que, sem serem artistas, conseguem escolher o que querem ou não querem transportar da sua história. Escrever, para mim, é uma forma de cura, porque permite transformar aquilo que nos persegue em linguagem.

Disse que gosta de escrever sobre personagens “nos limites do real”. É uma forma de mostrar que o real, também ele, tem algo de irreal, de inquietante?

Completamente. Às vezes o real é mais estranho do que o sonho. O que se passa na Faixa de Gaza, e o regresso dos reféns por exemplo — o horror diário, o modo como vidas humanas são contadas como se fossem números — ultrapassa qualquer ficção. Há momentos em que o mundo se torna tão absurdo que parece inventado. Mas é precisamente aí que a literatura é necessária: para lembrar que o real, por mais cruel, continua a ser humano.

Depois do sucesso de Três mulheres poderosas, escreveu Ladivine num sentimento de continuidade, de rutura, ou como uma resposta silenciosa a esse livro anterior?

Não. Cada livro é um ser à parte, com o seu próprio ritmo e a sua própria respiração. Quando começo um novo romance, esqueço os anteriores. Nunca escrevo para responder a nada — nem a prémios, nem a expectativas. O Prémio Goncourt foi importante, claro, mas não mudou o essencial: o ato solitário de escrever.

“O meu irmão e eu éramos os melhores da turma. Queríamos provar que merecíamos o nosso lugar. Essa exigência marcou-me, mas também me deu uma força discreta: a de não depender do olhar dos outros para existir.”

Marie NDiaye

Ladivine é um romance de transmissão, mas também de esquecimento. Acredita que certas coisas devem permanecer em silêncio — ou que a escrita existe precisamente para dizer o que não pode ser dito de outra forma?

Sim, e é talvez por isso que escrevo. A literatura é o único lugar onde o silêncio pode ser habitado. Escrevemos para dizer o que não pode ser dito de outra forma. Quando um leitor reconhece algo de si numa personagem que não existe, torna-se mais tolerante, mais atento às fragilidades dos outros. É por isso que continuo a acreditar na literatura — porque ela ainda é capaz de nos humanizar. É também isso que amo nos livros que leio porque fazem-me compreender coisas que de outra forma eu própria não conseguiria. A narração, em todas as diferentes formas da arte, e o modo como põe em cena personagens que não existem, — mas que nos parecem tão reais como qualquer pessoa na rua — torna-nos mais tolerantes, mais benevolentes para com os outros, com as suas falhas, as suas fragilidades, os seus defeitos. Quanto mais lemos, mais descobrimos histórias sobre a humanidade, sobre a condição humana. E isso afasta-nos da guerra. Porque matar o outro é, no fundo, matar a outra ideia de nós mesmos —  e quem lê, compreende isso.

“Há momentos em que o mundo se torna tão absurdo que parece inventado. Mas é precisamente aí que a literatura é necessária: para lembrar que o real, por mais cruel, continua a ser humano.”

Marie NDiaye

Disse uma vez que começou a escrever porque uma só vida não lhe bastava. Ainda sente isso?

Quando era mais jovem, sim. Tinha a sensação de que uma vida era demasiado curta. Queria viver muitas, através das minhas personagens. Hoje sinto-o de outra maneira: a leitura e a escrita oferecem-me essas vidas suplementares sem o cansaço de as viver realmente. São existências por procuração, mas profundamente verdadeiras. Talvez seja essa a função mais secreta da literatura — permitir-nos ser muitos sem deixarmos de ser nós mesmos.

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