Entrevista. Mark Lanegan está “muito feliz por poder chegar a velho”
Mark Lanegan passou uma vida à beira do precipício — e não foram poucas as vezes em que o chão ameaçou desabar. Precisou de superar vícios duros e estadas complicadas em casas de recuperação. Teve de lidar com a perda de amigos chegados desde cedo e confrontou-se com uma experiência de quase-morte que quase sugava por completo a paixão pela música. Sofreu muito até conseguir rascunhar uma ideia de estabilidade e chegou a não ter uma casa onde dormir. Com as trevas aparentemente sempre à espreita, o artista sentia um bichinho inquietante a toda a hora — como se tivesse constantemente de se livrar da iminência do desastre. “Eu estava bem ciente da minha própria mortalidade”, assume, ao telefone, em Barcelona, antes de chegar a Portugal para dois concertos no Lisboa ao Vivo (30 de Outubro) e no Hard Club (31 de Outubro).
O artista deu os primeiros passos enquanto vocalista dos Screaming Trees — uma das bandas pioneiras da cena grunge que ajudou a colocar Seattle no mapa musical —, mas sentia-se frequentemente descontente. Talvez porque, sobretudo nos tempos formativos do grupo, “estava simplesmente a cantar palavras que eram escritas por outra pessoa e com as quais eu não me identificava muito”. É no início da década de 1990 que Lanegan começa a escrever Whiskey for the Holy Ghost, o segundo álbum assinado em nome próprio. O primeiro tinha surgido de forma quase espontânea, “dois meses depois de aprender a tocar uma progressão de acordes na guitarra”. O músico sentia que algo de especial estava a nascer no novo disco — que, de resto, demoraria alguns anos a ver a luz do dia por causa de uma conduta “assumidamente destrutiva”. Era extraordinariamente pesada a obsessão que o movia nesses anos: Lanegan queria “sentir que tinha sido capaz de escrever pelo menos um grande álbum antes de morrer”.
“Agora já não tenho a mesma urgência”, admite, naquela voz inconfundivelmente arranhada e inexplicavelmente acolhedora. Whiskey for the Holy Ghost é um de vários álbuns incontornáveis que podem ser encontrados na colecção de Mark Lanegan — Field Songs ou Blues Funeral também vêm quase de imediato à cabeça. O artista não pensa muito nos Screaming Trees nos dias de hoje, mas Sweet Oblivion e Dust continuam a ser citados por entusiastas entre os principais registos do grunge. E os fãs não esquecem as colaborações de qualidade com meio mundo, desde os Queens of the Stone Age a Isobel Campbell, desde os Soulsavers aos Dead Combo. Somebody’s Knocking foi lançado há duas semanas e é já o décimo primeiro disco a solo. Uma vida preenchida para quem passou grande parte do tempo a tentar fugir da sombra da morte.
E porque uma vida preenchida tem direito a autobiografia, para 2020 está confirmado o lançamento de Sing Backwards and Weep, onde Mark Lanegan promete contar tudo o que se passou na sua vida nos anos 90. Mas a experiência de escrever o livro não foi fácil: o artista, que “não estava preparado” para revisitar alguns dos fantasmas que reencontrou, confessa que “tens de te proteger quando vasculhas memórias antigas”. Lanegan recordou muitos pormenores duros de que já se tinha esquecido — ou que tinha “deliberadamente deitado fora” do cérebro —, e Sing Backwards and Weep foi escrito “o mais rapidamente possível” porque correspondeu a um processo “pesado”. “O livro não é bonito. Ele tem momentos de humor, mas não é engraçado ou leve de ler, porque não foi uma altura feliz”, assinala.
Espera-se, por exemplo, que o músico revele mais sobre as gravações longas e conturbadas de Whiskey for the Holy Ghost. Espera-se que fale de como o sucessor Scraps at Midnight, de 1998, começou a ser escrito num quarto de hotel degradado em Pasadena, na Califórnia, com a importante ajuda do amigo Mike Johnson — que chegou a fazer parte da criação de Whiskey, mas “parou uns anos antes de ficar pronto porque estava a tornar-se difícil lidar comigo”. Espera-se que partilhe com o público uma ou duas recordações relativas à participação no disco dos Mad Season, que trouxe a arrepiante “Long Gone Day”, e que toque na grande amizade com o vocalista Layne Staley — um artista “com um coração enorme que me ajudou a ser mais humano e ensinou muitas coisas que vou levar comigo para sempre”. Espera-se uma leitura densa, crua, difícil de digerir, reveladora e, quem sabe, libertadora. Como a sua música.
O artista escreveu um disco que vai acompanhar a autobiografia: estas músicas “tinham uma profundidade ou uma beleza inspiradas pelo livro, mas também estão completamente em desacordo e contraste com ele”. As gravações serviram como a terapia, a catarse, uma espécie de expurgação dos demónios — “foi-me dito que passar as minhas memórias para o papel teria o mesmo efeito, mas enganaram-me”, brinca e solta uma pequena gargalhada. O riso de Mark Lanegan não é muito diferente das suas composições: estão lá as cicatrizes, estão lá as marcas de uma vida que muitas vezes não soube sorrir. Mas também está ali a tranquilidade de quem conseguiu nadar até à superfície e respirar fundo.
Essa tranquilidade parece revelar-se na maneira como fala. Mark Lanegan não olha com amargura para os falsos arranques ou as pedras no caminho porque foram os sucessivos tropeços que o levaram ao sítio onde se encontra hoje. E o artista deixa a garantia: “tenho vivido contente com o sítio onde estou há algum tempo”. Foi um tropeço que o levou a começar a cantar com os Screaming Trees — Lanegan só se juntou aos irmãos Conner porque trabalhava para os seus pais e os jovens tinham gostos musicais parecidos. Foi um tropeço que o levou a assegurar um contrato com a editora Sub Pop para lançar o primeiro álbum a solo — um acaso que iniciou uma caminhada tão improvável quanto impressionante. Lanegan tropeçou rumo à poesia de Fernando Pessoa e a uma colaboração desafiante com os Dead Combo — o artista é um confesso apaixonado pelo trabalho do duo lisboeta e diz que “não é nada fácil uma banda instrumental dizer tanta coisa sem proferir uma palavra”. Mark Lanegan sublinha que teve a sorte de dançar entre os tropeços mais assustadores e os mais felizes sem perder o equilíbrio.
Aquilo que se ouve em Somebody’s Knocking é ao mesmo tempo o Mark Lanegan de sempre e um Mark Lanegan menos sufocado pelo medo asfixiante de um desaparecimento prematuro. “Vou fazer 55 anos daqui a um mês. Há algo que acontece quando envelheces. Tenho muitos amigos que não chegaram a ser velhos. Fico muito feliz por poder chegar a velho e por poder continuar a fazer música”, reconhece. Como que renascido das cinzas, Mark Lanegan parece cada vez mais distante das trevas. E a sua voz continua a ser um excelente antídoto para as espantar.