Entrevista. Martim Sousa Tavares: “É sempre nas periferias que estão os fenómenos mais ricos de qualquer manifestação cultural”

por Comunidade Cultura e Arte,    10 Junho, 2024
Entrevista. Martim Sousa Tavares: “É sempre nas periferias que estão os fenómenos mais ricos de qualquer manifestação cultural”
Martim Sousa Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Entrevista realizada por Ana Monteiro Fernandes e Linda Formiga.

Depois de terminar a sua formação em Ciências Musicais, Martim Sousa Tavares fez guias de audição na Gulbenkian, onde, antes dos concertos, explicava a obra, o “contexto histórico-social, a corrente estética, e situava a experiência, desde logo, num certo patamar do ponto de vista intelectual”. Com o tempo, percebeu que “quanto mais subjetivo, quanto mais pessoal” fosse esse enquadramento, melhor chegava ao público. No seu livro “Falar Piano e Tocar Francês”, recentemente lançado pela editora Zigurate, Martim Sousa Tavares aplica este método, utilizando as suas experiências e formação para mostrar caminhos e levar o leitor a olhar para a expressão artística sob várias perspetivas, permitindo que, no final, cada um encontre a sua visão própria. Preferindo o contágio através da beleza à mera transmissão de factos históricos facilmente consultados em folhas de sala ou “nas Wikipédias da vida”, em “Falar Piano e Tocar Francês” aborda a arte moderna e a arte de consumo rápido, a arte antiga e os pequenos pormenores que nos passam despercebidos, sem dogmas e sem a rigidez do cânone.

Em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA), na Bróteria, em Lisboa, Martim Sousa Tavares falou-nos de Banksy, da indústria, das elites culturais e populares, os mercado, sem se esquecer de afirmar que é preciso relembrar que o mercado são as próprias pessoas e, claro, do Festival de Sintra e da Orquestra Sem Fronteiras (OSF).

Ana Monteiro Fernandes [AMF] – A pergunta “o que é o belo?”, além da componente artística é, em si mesma, uma pergunta filosófica. Desde Platão, a Kant há toda uma conceção de teorias sobre isso. No passado, o belo podia estar ligado a uma certa moralidade, ou seja, se és belo és bom, ou vice-versa. Depois, esta ligação, com o avançar do tempo, foi sendo quebrada, a ligação entre o belo e o bom. A minha pergunta é esta: concordas que o belo pode só existir por si, e ser apreciado como tal, ou não está livre de uma carga moral? Quem diz carga moral diz, também, se deverá estar ligado ou não a uma mensagem.

Acho que tudo é válido, honestamente. Quem diz que a verdade faz parte da beleza, entendo o seu porquê. Há casos em que estou de acordo com isso. Aliás, uma das citações que faço, de Sophia de Mello Breyner Andresen, é precisamente nesse aspeto de quem vê um fenómeno, quer ver todo o fenómeno. Quem está, portanto, atento à espantosa beleza do mundo, também vê o espantoso sofrimento do mundo. Isso justifica porque é que certas pessoas não conseguem ver determinadas cenas de um filme. O “Laranja Mecânica”, por exemplo, que tem cenas muito violentas não consegue, apesar da camada estética, ir além da violência — a maldade ultrapassa a capacidade de aceitar o que possa haver ali de conteúdo de beleza ou não. Por outro lado, a bondade também pode resgatar aquilo que nem sequer tem beleza. É transformar uma coisa que não é bonita em algo bonito como, por exemplo, uma festa com música de má qualidade, mas tocada com a melhor das intenções, que tem as pessoas a dançar: aquela música má, a comida má, mas feita com coração, tem a sua beleza. Acho, honestamente, que vale tudo. Percebo quem não consegue ultrapassar isso, também percebo quem vê o “Laranja Mecânica” como a obra de arte que é e, portanto, dissocia as questões éticas das questões estéticas. Não tento provar nada neste livro, nem afirmar nada. Só estou a mostrar caminhos e, por isso, não quis um livro nada dogmático, ou que não questionasse, não dialogasse com todas as diferentes possíveis filosofias e interpretações que há, porque só me interessa pôr as pessoas em contacto com formas de ver e indicar caminhos: é possível ir por aqui, é possível ir por ali. Pessoalmente, não vou passar da ombreira da porta, porque este é um livro de entrada. A ideia é mesmo só criar estas sinapses. Não vou tentar definir a beleza e o belo, posso é dizer que percebo e compreendo todos os lados e acho que todos eles podem ser defendidos.

AMF – Referes, no teu livro, John Berger e a sua conceção de que a beleza está no olhar de quem vê. Mas, atualmente, a beleza artística não estará, antes, nos olhos do mercado que pode ser, cada vez mais, um mediador do gosto artístico?

Não partilho a visão do Berger, simplesmente identifiquei a visão do Berger. Não estou a subscrevê-la ao longo do livro. Vou fazendo um percurso que passa por vários sítios e que mostra como várias pessoas se relacionam com isto, mas não digo que ele está certo ou errado. Simplesmente o meu discurso começa num ponto e, logo no segundo capítulo, chegamos à conclusão de que, perante certos fenómenos, faz sentido pensar no que diz John Berger. Mais à frente, falo precisamente da influência do mercado a propósito do Jeff Koons e a propósito da Bienal de Veneza. Também não estou a dizer que acho que é isso, ou seja, só quero um percurso que passa pelos vários sítios e mostra várias formas de pensar, várias formas de reagir às coisas, não necessariamente validá-las ou dar-lhes o meu aval. Não sou ninguém para dizer que o John Berger está certo ou errado, nem é isso que quero. Portanto, tudo o que seja dogmático ou taxativo, não tem lugar neste livro.

Martim Sousa Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

AMF – Mas aqui queria mesmo focar a questão do mercado, era essa a pergunta. Não achas que o mercado também pode definir o que é que as pessoas vão consumir ou não? Não têm essa capacidade de ditar aos nossos olhos o que é o belo? Ou seja, esse olhar não pertencerá ao mercado?

As pessoas são o mercado. As pessoas autorregulam os seus gostos na medida do que conseguem, porque também estão um pouco condicionadas por fatores sociais e económicos, de educação, em que ponto do mundo é que estão, o que é que o algoritmo lhes dá a comer no feed das redes sociais. É um axioma de estarmos vivos, da realidade, que o mercado e a produção artística funcionam de mãos dadas. Claro que a pessoa pode viver de forma iconoclasta e criar para a sua gaveta, mas assim nem sequer aparece no radar porque não tem relevância, não foi validada por ninguém. Tem de haver uma validação, por mais pequena que seja, pelo lado da academia, pelo lado do mercado, ou pelo lado social. Considero, no entanto, que é uma constatação evidente que sim, o mercado dita leis e o mercado somos nós. Quando decido pôr uma música em repeat, no Spotify, estou a agir enquanto agente de mercado. Isso é parte de ser mercado, acho que é importante talvez lembrar às pessoas que são consumidoras, que são o mercado. Quando, no fim do ano, partilham com enorme gosto as listas do Spotify e o disco que mais ouviram, isso são validações de mercado. Embora possam não ter essa ideia, são agentes comerciais.

AMF – No teu livro focas muito a questão da mediação, e até dás exemplos de como podemos descobrir coisas diferentes através do mediador. Mas achas que, também, se pode chegar a uma altura em que nos conseguimos afastar mais do mediador e ter uma experiência artística mais individualizada?

Sim. Traço a diferença entre aquilo que é a experiência mediada e a experiência imediata. A experiência imediata significa sem mediação, portanto, a experiência por osmose. Eu, com as minhas ferramentas, estou em contacto com alguma coisa e, com aquilo que trago dentro de mim, descodifico e relaciono com esse objeto. Na mediação, assumo este risco que é: se for extremamente convincente e falar de forma apaixonada, consigo com que as pessoas gostem daquilo de que eu gosto, pela minha forma de gostar. Consigo ser essa interposta pessoa que faz com que os outros queiram ouvir como eu, ver, ler e ver as coisas pelo meu prisma. Há sempre este perigo com os grandes mediadores, quando são pessoas carismáticas: o caso de John Berger, do Bernstein, que falavam de uma maneira tão eloquente, acessível e apaixonada que, para as pessoas, tudo o que eles dissessem era a verdade, porque é muito mais enriquecedor ter a visão do Berger do que a que eu tinha, que não sabia nada, que não conseguia correlacionar as coisas. Há este perigo de a mediação, quando é bem feita — a ideia de ser bem feita é, simplesmente, acender uma chama nas pessoas — queimar o que a pessoa tinha e, assim, esta pode esquecer quem era enquanto leitora, a passo que, enquanto espectadora, só quer aquela visão. Não é uma forma sustentável porque John Berger só há um, ninguém é o Berger, ninguém é o Bernstein, ninguém, para além de mim, sou eu também. Acho, por isso mesmo, importante ir lembrando ao leitor que tudo isto são formas de falar subjetivas, opiniões e sugestões que se estão a dar, mas lembro sempre que tudo pode ser defendido e o seu contrário. Por muito convincente que seja, não acho desejável que as pessoas subscrevam a 100% a minha visão e queiram ir só com ela, porque depois vou deixá-las ficar mal, não vou poder falar sobre cada coisa que elas encontrarem na sua vida. Há sempre este perigo de uma mediação muito bem feita, mas acho que vale a pena arriscar porque a experiência mediada versus experiência não mediada não retira a possibilidade deste encontro por osmose. Posso conhecer algo através dos olhos de um mediador e pensar “Ok, isto é interessante”, mas continuo a manter a minha visão, então vou enriquecer a minha própria visão com esta que acabei de ver. Tudo somado, a mediação não estraga nada, só acrescenta, e aquilo que ela acrescenta pode ser retirado. São camadas completamente reversíveis. Acho que é logo no primeiro capítulo que se pode ler nas entrelinhas em que eu explico, lá está, as várias camadas que conseguimos ir puxando se tiveremos acesso a várias coisas: a propósito de uma cena de um filme de João César Monteiro, quem vê só o filme vê certas coisas, quem conhece a música e sabe o que aquela música significa, tem acesso a mais coisas, quem conhece a iconografia cristã tem acesso a mais coisas, mas tudo isto é reversível. Quem quiser pode deitar fora estas coisas e procurar outras porque, na verdade, vale tudo. E é aquele tipo de conversa que pode durar para sempre porque são opiniões. É tudo subjetivo.

Linda Formiga [LF] – Nos programas que tens feito colocas-te no papel de mediador. Gostava de saber se já te vais encarando como um comunicador que tem de ter a consciência de que a mensagem tem de ser entendida.

Sim, sem dúvida. Comecei a fazer isto assim, de forma mais sistemática, por volta de 2018, 2019, portanto, já são alguns anos em que fui ganhando muita experiência e fui testando vários modelos. No início, a minha formação teórica nas Ciências Musicais, com background sólido de academia – foram oito anos a estudar música em universidades — tentava fazer uma abordagem como aquela que via, como aquela que me pediam. Fiz guias de audição na Gulbenkian, que é falar com o público antes do concerto — no fundo explicar um bocado aquela obra — e aquilo que fazia era o contexto histórico-social. Tentava enquadrar a obra, a corrente estética, e situava a experiência, desde logo, num certo patamar do ponto de vista intelectual, uma vez que achava que era isso que me era pedido. Só com o tempo e com muitos encontros com o público e, também, nadando um bocadinho mais para fora de pé, é que comecei a perceber que quanto mais subjetivo, quanto mais pessoal, melhor, porque a informação que estava a dar ali, mesmo que esteja muito bem apresentada, esquematizada, não é nada de novo e podem encontrá-la em qualquer Wikipédia da vida. Mesmo que esteja a dar as últimas luzes da discussão académica, não são coisas que mudam o dia de ninguém: o que as pessoas querem é essa interposta pessoa. Enquanto seres humanos empáticos, as pessoas veem-me em cima de um palco e, automaticamente, sou um personagem. Querem saber o que penso daquela música, não em que ano é que o Beethoven morreu ou em que ano é que isto foi escrito. Isso interessa menos, é taxativo, trata-se de informação para estar numa folha de sala e não é mais do que isso. Com o tempo, fui-me interessando cada vez menos pela mera transmissão de factos, por essa informação assética, e mais por aquilo que é, para mim, o contágio através da beleza. Tento deixar as pessoas contagiadas por aquilo que, para mim, é mesmo mais bonito e merece a nossa atenção. Às vezes pode ser, até, um detalhe ridículo. Muitas vezes, com o piano, posso focar-me só numa nota, ou só numa coisa. Outras vezes gosto muito de, por exemplo, mostrar o acompanhamento: há tempos fiz isso, a propósito do “Summertime”, do Gershwin, com orquestra. Toda a gente conhece a melodia do “Summertime” mas, para mim, a chave daquele dia de calor que o Gershwin descreve está no acompanhamento. Dei a ouvir apenas o acompanhamento e disse ao público, “isto, para mim, é o lado mais fascinante desta música”, e no final, as pessoas vêm ter comigo e dizem, “realmente, obrigado, jamais iria lá chegar porque só você é que tem os botões da orquestra”. No fundo, é um exemplo entre milhares de como a ação humana e subjetiva é, na minha opinião, muito mais enriquecedora para o espetador: está ali uma coisa empática com a qual ele se consegue relacionar mais do que com a informação. Podia ter dito que isto é uma peça escrita no ano tal, no contexto estava bem, mas isso é muito menos interessante do que dizer: “Olhem o calor que vem deste acompanhamento”. Por isso, estou cada vez menos num lado teórico e universalista e, cada vez mais, no lado profundamente humano, sujeito ao erro, sujeito a estar enganado, mas, pelo menos, a fazê-lo de forma apaixonada. Acho que é isso que as pessoas procuram da mediação, porque quem procura a mediação procura apaixonar-se, procura ganhar mais amor por aquilo que vê, gostar mais, gostar melhor.

LF – Achas que ainda existe o estereótipo da high culture e da low culture? Pode existir o estereótipo de que um erudito não gostará de um meme, ou de um certo tipo de música, mas alguém com parcos recursos poderá também gostar de música clássica.

Sim, acho que o estigma ainda existe, na medida em que há pessoas que se servem um bocadinho dele para, de certa forma, criar tampões. Isto são apropriações que certas comunidades fazem de certos objetos. Não acontece só na música. Por exemplo, o golfe é um desporto que foi apropriado por certas camadas da sociedade. Não é por acaso que o Donald Trump joga golfe. Não é por acaso que certos tipos de pessoas, comunidades, clubes de golfe e negócios se fazem à volta do golfe e não à volta da canoagem. Digamos que não é culpa do golfe em si, enquanto desporto, tal como não é culpa da música clássica que tenha sido escolhida, por uma série de razões, para se tornar o feudo de certas pessoas. Todas as comunidades precisam de um lugar comum, precisam de ter um ponto de encontro, de um sítio onde falam a mesma língua e, no caso da arte, a música clássica acabou por ser esse o ponto de encontro para muitas pessoas.

Martim Sousa Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

LF – Achas que foram os programadores a criarem essa dimensão?

Não, coitadinhos dos programadores. Isso vem muito antes dos programadores, vem da natureza mecenática e aristocrática que potenciou muita da música clássica quando nasceu o cânone, quando nasceram os grandes clássicos, que é um momento na história em que deixámos de ouvir os contemporâneos e passámos a ouvir os que já morreram. Isso acontece na primeira metade do séc. XIX e há, até, estatísticas muito engraçadas que mostram, por exemplo, uma orquestra na Alemanha, em 1790, que tocava 90% música escrita ali, naquele momento mas, passados 50 anos, já tocava 15% de música escrita ali, o resto eram já compositores mortos. Essas primeiras gerações, as que começam a codificar o cânone, são as gerações que vão apanhar os Mozarts, os Beethovens, os Haydns – portanto, o centro da cultura — e as músicas que eles escreviam eram todas, quase sem exceção, 99% dos casos, pagas, diretamente, por mecenas que eram os patronos daqueles artistas. Basta abrir qualquer sinfonia que seja, qualquer sonata destes autores, e vemos sempre uma dedicatória ao Príncipe, ao Rei, à Rainha, à Princesa, à Condessa — há sempre, ali, algum nobre que era a pessoa que estava a pagar aquilo. Estes nobres, no fundo, ganhavam em estatuto, ganhavam em prestígio social: “Já ouviste o quarteto que encomendei ao Beethoven?”. De repente, este tipo de música, é uma forma de legitimação deste tipo de comunidade. Eles começam a praticá-la e, de forma tácita, vai-se alavancando este mecanismo de que esta é a música dos privilegiados, escrita em partituras dos quartetos de cordas, sinfonias, e por aí em diante. Depois, eles convidam o seu público restrito e seleto para esses concertos. O príncipe ficaria, certamente, muito triste se o seu quarteto, que ele pagou para ser ouvido no seu palácio, estivesse a ser tocado no dia seguinte num teatro que vendia bilhetes baratíssimos e as pessoas podiam ouvir em pé: isso, para ele, seria um desrespeito porque a música foi escrita para o palácio dele. Há até esta ideia de que isto é uma forma de arte que não é das ruas. Nas ruas fazem-se outras coisas, nós aqui dentro fazemos de forma um bocadinho diferente. E alguns autores como Mozart, por exemplo, arriscaram-se muito porque queriam jogar nos dois lados: a “Flauta Mágica”, por exemplo, era diversão para as massas, mas ele tinha de conseguir agradar aos dois lados porque não podia ofender os seus patronos, príncipes porque, de repente, anda a fazer récitas esgotadas. Era a “Flauta Mágica” em que ele, feito maluco, ia para ali e tocava nos carrilhões, depois não sei quê, aquilo era tudo uma rebaldaria e chocava as pessoas. É verdade, sobretudo desde esse período, que a música clássica afunilou um bocadinho em termos sociais e os programadores, coitados, chegam já muito tempo depois disso, com a coisa um pouco montada. Neste momento, aquilo a que assistimos é um esforço para dissolver estes efeitos e conseguir com que a música clássica ganhe uma representação social que não tinha.

AMF – Mas aqui seria interessante perceber se há ou não um ciclo vicioso, porque se houver a perceção de que determinada classe social não gosta de determinado estilo artístico, já não se vai apostar nesse tipo artístico, ou seja, podem-se afunilar os horizontes.

Sim. Mas não estou muito preocupado com a questão das elites, até porque as elites, hoje em dia, cada vez menos ouvem Mozart. Temos mais miúdos, talvez, que tocam Mozart no Conservatório de Loures, com o projeto comunitário, do que temos famílias com três apelidos, em Portugal, a ensinar os seus filhos a tocar Mozart. Não tenho dúvida alguma de que a sustentabilidade está garantida. Depois, vai sempre haver elites e as elites vão sempre ter de gostar de alguma coisa. Nós não podemos tornar ilegal que pessoas com dinheiro, milionárias, vão à ópera ou ao teatro. Se for, sei lá, a um baile funk numa comunidade suburbana no Rio de Janeiro, também me vai fazer sentir que não pertenço ali, portanto, não são só as elites que colocam barreiras. É um fenómeno universal, tem que ver com o nosso espaço comum, a nossa comunidade. Aqueles que nós conhecemos são bem-vindos, aqueles que não conhecemos calma aí, não é, portanto, uma coisa das elites que estão a tentar barrar o caminho do Mozart. O que ainda se vai vendo é que, por exemplo, nos Estados Unidos, as famílias mecenáticas ainda são quem banca a temporada do Metropolitan Opera e tem os nomes inscritos lá, numa placa dourada. Estes patronos são as primeiras pessoas que o teatro quer que se sintam bem e se gostarem de ir de black tie e casacos de pele para ali, isso torna-se na forma de vestir oficial. Quem não o praticar, o teatro, ou a instituição vai-se encarregar de dar a entender que preferia que houvesse outro tipo de comportamentos. Portanto, são, também, estratégias de sobrevivência: o Metropolitan não vive dos bilhetes, vive de doações de milhões e milhões das famílias de Nova Iorque mais ricas do mundo. Tudo isto é um jogo de diplomacia e das pessoas se sentirem bem nas comunidades a que pertencem.

AMF – A música pop, por exemplo, talvez tenha sido uma das formas musicais com mais preconceito. Obviamente não estou a dizer que partilhas, de todo, dessa opinião. Mas também há a ideia da música pop ser rica e plural nas suas facetas e camadas, que assume um lado camaleónico, até. A música pop é também ela rica?

Claro que sim, perfeitamente, e se há elites que se estão a apropriar de alguma coisa, que eu saiba, são as da música pop, por exemplo, com a Beyoncé que vai atuar nos casamentos dos xeiques árabes por milhões de euros. Na orquestra de Chicago, até se podia colocar o discurso se a música pop, na verdade, não joga mais do que a música clássica nesse campo porque, lá está, há cada vez menos novas gerações privilegiadas do piano. Qualquer príncipe milionário, ou o que for, vai querer a Britney Spears, vai querer ter a Dua Lipa, vai ter isso nos seus concertos, nos seus casamentos. Em relação à qualidade da música pop acho que não há grande coisa a dizer, é tão vasta, tão rica, tão extraordinariamente ilustrativa daquilo que é o mundo que é já estudada nas universidades, já está perfeitamente validada. Depois divide-se entre a boa e a má, mas isso é o que acontece com todos os tipos de expressão humana: também há boa comida, má comida; roupa bem feita, roupa mal feita; casas bem desenhadas, casas mal desenhadas. Há música pop francamente abjeta, mas há também música clássica que dá vontade de chorar de tão má que é, não é só porque tem duzentos anos que é boa.

AMF – No livro focas o David Bruno e fazes menção à reação dele nas redes, quando soube que tinha sido nomeado para os Globos de Ouro 2023, na categoria “Melhor intérprete”: “Não interessa o resultado: Gaia já ganhou. Portugal suburbano já ganhou. Portugal rural já ganhou. Os restaurantes que servem refeições em travessas de inox já ganharam.” Como olhas para fenómenos e artistas como David Bruno?

Sou muito admirador do David Bruno. Aliás, a nomeação dele para os Globos de Ouro veio através de mim. Mesmo sabendo que estava condenado a não ganhar, foi uma grande vitória consegui-lo tê-lo lá. A razão pela qual uso o David Bruno é para mostrar que aquilo que o David Bruno faz é uma técnica que já vem sendo usada por artistas há muito tempo, que parece humorística e provocatória à superfície mas, na verdade, tem muita substância, tem muitas camadas. O exemplo do David Bruno é um exemplo com um paralelismo com o Mahler, um dos grandes autores da música clássica, outro que muitos não levavam a sério no seu tempo e só viam, ali, provocação quando, na verdade, aquilo vem de uma observação muito bem fundamentada de comunidades específicas, de lugares específicos, de certos hábitos. Acho que ele tem uma poética que é, francamente, genial.

Martim Sousa Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

LF – A próxima pergunta vem ao encontro da nossa última entrevista sobre o Festival de Sintra. No ano passado, o festival de Sintra acolheu Filho da Mãe e, este ano, o festival de Sintra acolherá também Tomás Wallenstein. Esta interceção da música clássica com a música contemporânea não ajudará a desmistificar a ideia de um certo elitismo?

Sim, sem dúvida. O Tomás Wallenstein é o mais conhecido para os portugueses mas há, pelo menos, mais três concertos: o da Mary Lattimore, o da Ana Carla Maza e o de Fran and Flora, que são quatro concertos que tocam na música clássica. O Tomás Wallenstein vai tocar, provavelmente, os temas do disco “Vida Antiga” que, lá no meio, tem duas peças de música clássica. Ninguém lhe pediu para tocar, mas lá no meio há Debussy e Erik Satie, peças instrumentais ao piano. Se ele sentiu que estava confortável em pôr essas músicas no seu disco, e se essa pergunta não lhe foi feita a ele,então ele também estará bem no Festival de Sintra. Até porque é uma coisa quase simbiótica, porque o festival procura ter estes formatos um bocadinho menos clássicos, e que acontecem em sítios também menos clássicos. No caso dele, vai ser em plena natureza, mas Fran and Flora, por exemplo, é um dueto que toca música de tradição klezmer, vão tocar na Adega de Colares. Também tocam instrumentos clássicos, violino e violoncelo, são treinadas de forma clássica, mas estão um bocadinho do lado de lá da fronteira. Acho isso muito interessante, porque acho que é sempre nas periferias que estão os fenómenos mais ricos de qualquer manifestação cultural. Interessa-me muito menos o núcleo do que aquilo que está à volta.

LF – Periferia geográfica?

Periferias estéticas, de influências e tudo. No caso do Tomás, é uma pessoa que vem de uma formação clássica até bastante sólida mas que, entretanto, enveredou por outros caminhos, mas acaba por voltar aí. No caso do Tomás, em específico, até posso dizer que conheço o pensamento musical criativo dele só pela quantidade de arranjos que já fiz de canções dos Capitão Fausto e que estou a fazer agora para o concerto no de São Luís. Sei que há ali uma linguagem criativa e harmónica que uma pessoa como David Bruno, por exemplo, não tem, porque são percursos, backgrounds muito diferentes. E eu, no caso do Tomás, vejo ali a dedada da música clássica naquilo que ele faz. Olho para aquilo e percebo perfeitamente. Estas coisas podem ser, à superfície, um bocadinho mais ténues, mas, ao nível das raízes, fazem-me todo o sentido, que é alargar um bocadinho o nosso horizonte sem transgredir, ou seja, sem ofender, sem transgredir. Acho que há espaço para tudo e que as coisas devem comunicar. Acho que não é por acaso, também, que a única orquestra que fundei aqui, em Portugal, chama-se “Sem Fronteiras” e, de facto, é um bocadinho como vejo. Não tem nada a ver com os Jogos Sem Fronteiras, nem com os Médicos Sem Fronteiras, mas com a ideia de abolir quaisquer barreiras que haja entre as pessoas.

LF – Falaste há pouco do caso de a Beyoncé fazer concertos para príncipes árabes. É muito a questão do dinheiro pela arte, digamos assim, a acessibilidade das coisas. Mas no caso do Banksy, por exemplo, quando vimos aquela obra meio triturada que acabou por ser leiloada por mais de um milhão de dólares, mesmo assim, o que achas que acabou por pesar mais: o ter-se um Banksy, porque só o nome vende, ou toda a experiência e significado que envolveu a obra?

No caso do Love is in the Bin, que é a tal obra semi-triturada, é claramente pelo mediatismo que teve: isso não há dúvida nenhuma. Ou seja, quando toda a gente está a falar daquele objeto, ele valoriza-se muitíssimo mais e, por isso, é que falo muito da cultura das selfies, por exemplo, que é a coisa mais desejável que o museu pode ter a acontecer lá dentro, pessoas a tirar selfies. Isso é a expansão exponencial do conteúdo que ali está. Significa que é um lugar onde as pessoas querem estar, porque a selfie quer dizer “eu estive aqui”, neste sítio, pertenço a este lugar, comi esta comida ou estive com esta pessoa. Há, portanto, uma apropriação e quando toda a gente quer uma selfie com aquilo, é ótimo sinal, é sinal que há uma procura muito grande. Ser dono, portanto, desse objeto original é muitíssimo apetitoso. No caso da obra do Banksy, é até interessante porque foi vendida, creio, por oito milhões. Quando foi triturada, o lote já estava arrematado e, passados dois anos, foi vendida por 25 milhões. A valorização praticamente triplicou. Isto abre um precedente muito interessante, do qual eu também falo no meu livro, que é quando aquela estátua do Jeff Koon se partiu na Feira de Miami em 2023. Está a custar 80 mil dólares e, de repente, está feito em cacos, e há logo um tipo que diz, “compro os cacos disto”. O tipo pensou que é um investimento, é um colecionador norte-americano, riquíssimo e, claramente, viu ali um investimento porque as pessoas tiraram fotografias, fizeram notícias, estava toda a gente a falar. O mediatismo, nestes casos, é fundamental para gerir o mercado, para gerir o valor que o artista tem. Em Portugal, temos um exemplo muito evidente que é a Joana Vasconcelos, que é uma artista que está neste efeito bola de neve e de ter muito mediatismo. Tem um suporte institucional por trás muito grande, as instituições que lhe fazem encomendas são a República Portuguesa, as câmaras municipais, os grandes museus. São obras muitíssimo gulosas de ver, as pessoas vão e tiram fotografias, interagem. A coisa alimenta-se dessa forma e é a estética do polido, esta arte que convida, uma arte que é muitíssimo agradável, e não quer dizer que os artistas a façam por isso, mas é a arte vencedora em sentido de mercado e o mesmo vemos na música ou mesmo no cinema. Não é por acaso que o filme “Branca de Neve” nunca na vida poderia ter um sentido comercial. Isto porque é um filme que agride a expectativa do espetador. Um filme que só mostra escuro é uma provocação, o espetador não gosta de ser agredido nem provocado, ao passo que filmes como a “Barbie”, por exemplo, é quase sacarina visual: automaticamente essas obras viciam e têm um sucesso estrondoso. Não estou a dizer que o filme da “Barbie” não seja uma obra de arte, ou que seja pior, mas que simplesmente tem os ingredientes do sucesso.

AMF – Focaste o caso da “Branca de Neve”, mas essa provocação também conta.

Sim, e o João César Monteiro teve coragem de a fazer sabendo, claramente, que aquilo estava condenado a ser o que foi. Também acho curioso e no livro também falo disso: à saída, ao João Bénard da Costa, o então diretor da Cinemateca, perguntaram-lhe o que é que achou e ele não teve coragem de não ser diplomático e dizer: “Achei bem, mas ainda preciso de ver uma segunda vez”. Enquanto representante da Cinemateca, sendo que era um filme pago com dinheiros públicos e tudo, ele remeteu-se ao discurso oficial, não foi capaz de falar em nome próprio. É evidente que aquele filme foi muito provocador e dá para ver as reações das pessoas à saída, é divertidíssimo, está no Youtube.

LF – Depois foi ao telejornal fazer uma entrevista onde se falou da verba destinada ao guarda-roupa.

Sim, o famoso “quero que o público português se foda” é à saída da estreia do filme e as reações das pessoas são incríveis. Há uns assim mais jovens que dizem “acho incrível”, mas é como quem diz, as pessoas querem ver o mundo arder. Há outras pessoas profundamente indignadas e percebo porquê, é evidente. Ainda por cima, tendo em conta a questão ética de ter sido pago com dinheiros da RTP e do Fundo do Cinema e do Audiovisual. O próprio João César Monteiro disse, e pôs isso num filme seu, “vou gastá-lo mal gasto”. Antes de ele pôr isso nas “Bodas de Deus”, foi o que ele disse na Gulbenkian, quando a Gulbenkian lhe deu dinheiro para ir para Paris estudar. Ele sobe ao palco e diz: “vou gastá-lo mal gasto”. Acho incrível, a frase deve ter sido tão acutilante que, depois, entra no filme.

AMF – Com as redes sociais, hoje em dia, pode ser muito comum estarmos a ler um livro e, por exemplo, logo a seguir, estarmos a responder a uma mensagem do Instagram ou do Facebook, qualquer que seja a rede social que se use. Isso interfere ou não com a nossa atenção?

Interfere, claro, torna-nos pessoas diferentes, a nossa forma de ler é diferente. Pode ter alguns pontos positivos porque somos, claramente, mais fortes no multitasking. Mas imaginemos pessoas como o Santo Agostinho, por exemplo, que lia em silêncio: no tempo dele, era comum ler-se em voz alta e as pessoas ficavam muito impressionadas porque Santo Agostinho lia em silêncio, não partilhava a sua leitura. Imaginemos este homem, o primeiro a ler em silêncio, o nível de concentração em que ele devia estar nesse momento. Se, de repente, lhe tocasse um telefone ao lado, teria provavelmente um ataque cardíaco e fechava-se o dia inteiro para se recompor e voltar a estar na zona. Não somos assim, hoje em dia. Há pouco tempo dirigi a nona sinfonia de Beethoven, e não vou mentir, estava a estudar a partitura e, de vez em quando, o telemóvel piscava, era uma coisa qualquer, dava uma resposta, e voltava à nona de Beethoven, que é a partitura mais sagrada que há na música clássica. Isso é inevitável e parece-me irreversível o facto de que mudámos um bocado. Por um lado, é preocupante porque andamos sempre mais à superfície das coisas e, por outro, acho que pode ser igualmente enriquecedor porque somos capazes de captar e correlacionar muitas mais coisas.

LF – No livro referes que, por exemplo, alguém que não visite museus no seu país, o pode fazer quando está em viagem, porque há um contexto que o faz apreciar o belo naquela altura. No geral, acha que os ambientes e os contextos em que nos encontramos podem influenciar a nossa predisposição para consumir uma obra de arte? Porque no livro referes: “quando viaja, aciona um dispositivo que diz «de momento estou disponível para a arte e a beleza», mas, assim que regressa a casa, esse espírito desliga-se automaticamente.”

Acho que vem da pessoa, honestamente. O que faço no livro é a crítica de tantas pessoas que conheço, que são capazes de viver em pleno centro de Lisboa, onde há dezenas de museus, galerias e exposições, e nunca vão a qualquer museu, mas assim que aterram em Paris, a primeira coisa que fazem é ir para o Louvre. Pergunto-me, porque é que isso acontece? O que faz com que no dia-a-dia, no quotidiano normal na cidade, isso parece que está trancado e, de repente, quando se sai, já estamos disponíveis para a arte e para ver os quadros e tudo. Acho que há duas respostas: ou não há quadros de qualidade e exposições boas em Lisboa e, portanto, é preciso sair daqui para ver as coisas — acho que não é esse o caso — ou, então, parece que na ideia do turismo e da viagem está subentendida uma espécie de recomendação, que é de bom tom ou desejável passar também os olhos pelos museus. Em qualquer museu do mundo 90% dos visitantes não são do lugar. É um dos desafios que os museus mais têm, o de criar a sua própria comunidade no bairro, uma vez que as pessoas que ali vivem não sentem nenhuma atração por aquele objeto. Acho que isso vem mesmo das pessoas, não é colocar a pessoa à frente dos Himalaias, ao nascer do sol e, de repente, a pessoa tem ali uma epifania e passa a ser sensível à beleza. Acho que tem mesmo que ver com o mindset em que estamos, a importância que damos ou não à beleza, se a busca da beleza é uma coisa que temos ativamente ligada em nós ou se, pelo contrário, até desligamos de forma ostensiva, porque se a pessoa vive tipo São Francisco de Assis, em deslumbramento perante tudo, torna-se muito pouco prático, não se consegue fazer nada. Como é que se entra, por exemplo, numa loja de loiça e se escolhe um serviço de pratos? Se tudo é lindíssimo e apreciamos o trabalho, o esforço e “o obrigado por estar aqui”, isso não é prático, não é pragmático, não vamos a lado nenhum. Acho que é, até, uma forma de sobrevivência: desligamos ou atenuamos a nossa sensibilidade à beleza e, em momentos chave, abrimo-la. Esses momentos-chave, normalmente, são as férias.

Martim Sousa Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

LF – Achas que isso tem a ver com a dinâmica do nosso dia a dia, a rapidez com que se vive? Isso também interfere na forma como percecionamos a arte?

Sem dúvida, é uma forma de proteção que nós temos. Se calhar, se um familiar próximo nosso estiver numa situação desesperada, somos capazes de interromper o nosso dia, interceder por ele, mas quando estamos à espera que fique verde e passe alguém a pedir dinheiro, por mais desesperadora que seja a situação, nem abrimos o vídeo. Como é que a mesma pessoa tem esta dualidade de critérios perante situações de emergência humanas? Tem que ver com este instinto de proteção, sentimos que não podemos acudir a todos, portanto, vou escolher os momentos em que vou acudir, vou definir onde e quando é que posso. É a mesma coisa com a beleza. Se, de repente, para mim é tudo maravilhosamente bonito, não vou a lado nenhum, não vou conseguir fazer nada. Tenho de me tornar um bocadinho mais insensível à beleza e, em determinados momentos, abro o flanco. Há pessoas que não vivem desta forma e, portanto, vivem de maneira perfeitamente deslumbrada, já outras nunca se deixam tocar por nada.

LF – Há uma citação no livro que diz: “Não acredite o leitor que estamos tramados só porque vivemos na era dos memes e passamos muito tempo a ver conteúdos através de um ecrã na palma das nossas mãos. Lembremo-nos do episódio de Miguel Ângelo e a Capela Sistina: a tradição mais antiga da arte é que a arte está a morrer.” Também é arte, já disseste há pouco, mas não poderá perdurar no tempo e transformar-se num clássico?

Sim, sem dúvida. Mais não seja pela importância que teve para tanta gente no seu tempo. Ou seja, nem que fosse só pelo fenómeno social que causou, já está inscrito na história. Depois, é uma obra e um perfil com uma singularidade muito grande. Trata-se da questão do anonimato, por conseguir intervir de forma muito rápida em lugares escolhidos a dedo. Na Ucrânia, já apareceram nas ruínas coisas do Banksy e, provavelmente, deve estar a estudar uma forma de ir à Palestina, à Faixa de Gaza e fazer alguma coisa lá. Só por isso, pelo facto do modus operandi ser tão diferente, acho que já estaria na História.

LF– Mas, no geral, esta arte de consumo rápido, como por exemplo a Joana Vasconcelos que espanta por ser muito grande ou controverso, e a nossa pergunta é mais no sentido de perceber até que ponto passa à prova do tempo e transforma-se num clássico?

Bom, não sei. Podemos aplicar as regras do Italo Calvino. No livro dele, “Porquê ler os clássicos”, dá um conjunto de premissas, acho que são 14, o que é que define um clássico? Acho que são à prova de bala, honestamente. Não as sei todas de cor, mas uma delas — ele fala dos livros, mas aplica-se a tudo — é “um clássico é um livro que nunca acabou de dizer aquilo que tem para dizer”. Cada nova geração de pessoas que o lê volta a fazer leituras e assim nunca está estanque. É uma ótima forma de aplicar isso à obra da Joana Vasconcelos e temos de pegar nas esculturas dela, de há 20 anos, e olhar para aquilo e perguntar se ainda nos diz alguma coisa ou não, que ficou claramente codificado naquele momento. Se ainda nos disser alguma coisa, provavelmente é um clássico, e assim sucessivamente com as outras premissas. Acho que nesse aspeto podemos até podemos ser objetivos em relação à nossa avaliação destas obras, sendo que depois é muito ingrato fazer este tipo de premonições, se isto vai ser o cânone ou não vai. Lembro-me que a Tinta-da-China fez, há tempos, uma compilação de autores a que chamou, “O Cânone”, que eram, supostamente, os canónicos autores portugueses. Aquilo estava destinado à controvérsia, porque alguns autores não estavam ali, e estão outros que, surpreendentemente, não estariam no nosso ranking. Claro que toda a gente começou a discutir que raio de cânone é este, e quem são estes para, de repente, fazerem o seu próprio cânone. É muito ingrato tentar dizer, na espuma dos dias, que isto vai ou não ser um clássico, mas acho que se pode fazê-lo de maneira objetiva. Se disser que a Joana Vasconcelos é um clássico, sei que outros virão e dirão que não, não é possível, que um clássico é isto e isto. Mas isso também é a natureza infinita e irreconciliável do ser humano.

AMF – A questão da necessidade dos artistas fazerem-se acompanhar de vários textos explicativos das suas obras, não será também condescendente para o público e não limitará, também, a interpretação livre do público face ao objeto artístico?

Se for bem feito não, mas no contexto em que falo, que é no pós-guerra, isso serviu como muleta para que artistas sem talento valorizassem a sua obra: “Se não chego lá através do talento, preciso de chegar através de outra maneira”. Naquele período podia fazer-se tudo: quanto mais provocador, mais interessante; era a novidade pela novidade; queriam deixar de ter aulas de desenho à vista, nas faculdades de belas artes, porque já não faz sentido. Portanto, quando a técnica e o talento já não são critério, estes artistas podem chegar lá através do aparato teórico e crítico. Começam assim, a surgir compositores que, para ouvir uma peça de dez minutos, preciso de passar meia hora a ler um texto sobre o que é que o autor quis com relação acústica disto e daquilo mas, do ponto de vista musical, não diz absolutamente nada. Esse momento já passou, mas nunca foi embora. Isso continua a existir e, para mim, das coisas mais exasperantes é aquela má linguagem de curador de exposição, das frases sempre herméticas, muito curtas, excessivamente pontuadas. Até na crítica, por exemplo. Ainda há dias comecei a ler uma crítica musical no Público e desisti quando entrou uma referência ao Gilles Deleuze. Pensei: “Como é que vim parar ao Gilles Deleuze? Que mal é que fiz a alguém? Só quero saber como é que foi o concerto e de repente estamos nisto?”. Para mim, é uma muleta. A pessoa não consegue falar de forma eloquente, não consegue exprimir-se, vamos buscar aqui um filósofo qualquer. Podia ser o Adorno, calhou ao Gilles Deleuze.

Martim Sousa Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

AMF – O projeto da Orquestra Sem Fronteiras (OSF), em Idanha-a-Nova, “tem como matriz a criação de oportunidades de participação e fruição cultural, fortalecendo o ecossistema social, económico e cultural do nosso país e contribuindo para a diminuição das assimetrias geográficas.” Pode-se ler no site da orquestra. Já no livro: “num simples silogismo lógico à maneira de Aristóteles (…) O indivíduo/cidadão aspira e tem o poder de melhorar a comunidade/o mundo”. São estas as linhas-mestras que te guiam enquanto cidadão?

Sim, embora falte aí a segunda parte do silogismo, que era o que é que a arte pode fazer pelo mundo, no fundo. Acho que sim, nós, enquanto membros de uma comunidade, quer queiramos quer não, estamos neste mundo trazidos por alguém e temos de nos relacionar com outrem. É como aquelas coisas, “deixe esta sala melhor ou igual àquilo que encontrou” e, portanto, a nossa passagem pelo mundo deve ser um bocadinho isso, tentar não estragar, pelo menos. Isso implica ter um olhar atento sobre o que é que precisa de conserto. Qualquer pessoa pode dar o seu contributo, em qualquer área da sua expressão, da sua existência. No meu caso, é isso enquanto músico e português. Identifiquei naquela zona do território aquilo que era a falta de um certo núcleo de oportunidades para os jovens, mas também para as pessoas que vivem naquela zona e, dessa forma, nasceu a Orquestra Sem Fronteiras. Mas posso garantir que se fosse carpinteiro, o mesmo olhar que tenho ter-se-ia materializado num outro projeto na minha expressão, naquele caso, na carpintaria. Não sei o que esse projeto seria, mas acredito que está ao alcance de qualquer pessoa dar passos na sua Madre Teresa de Calcutá, também. Acho que isto é uma coisa realista e até pragmática, que nos define enquanto membros de uma comunidade.

AMF- No país já há conservatórios, escolas profissionais de música de norte a sul, no interior também. Achas que tem sido feita uma descentralização, ou uma pessoa que queira seguir a via da música clássica ainda terá de nascer no sítio certo para evoluir? Ainda há coisas que necessitam de ser resolvidas?

Não é só na música clássica. O discurso é quase o acesso ao ensino superior. Basta ver os sítios em que as pessoas mais vão para o ensino superior. A distribuição de oportunidades é muito diferente, portanto, não é só a questão de ser músico. Há escolas profissionais e conservatórios pelo país inteiro desde o 25 de Abril. A questão é esta: quem vai estudar música ali, e porque é que vai estudar música ali? Com base em que experiências é que se vai agarrar à profissão? Vai acreditar que aquilo é o futuro quando, à sua volta, não há trabalho naquela área, chega aos 20 anos e nunca ganhou um euro a tocar aquele tipo de música? É uma coisa pouco realista. Mais depressa desiste daquilo e vai trabalhar em alguma coisa mais pragmática. A nossa ideia é mitigar este efeito, é que estes jovens não desistam, que por viverem em Belmonte, no Fundão ou na Covilhã não tenham de desistir da música. Estes são os jovens que ganham o seu dinheiro connosco, têm as suas experiências a tocar connosco, veem o país, conhecem outros músicos, tornam-se profissionais ao ponto de dizerem, ‘vou fazer disto carreira’. O mais interessante é que no seio da OSF já começam a nascer pequenos projetos, o que é extremamente bom: há o cogumelo mãe e ele já polinizou à volta para que nasçam outros. Isso é sinal de que aquela terra estava fértil e havia ali material vivo à espera de uma oportunidade.

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