Entrevista. Miguel Gomes: “Acredito que terei mais capacidade de criar qualquer coisa interessante se puder reagir a coisas que não controlo”

por José Paiva Capucho,    19 Setembro, 2024
Entrevista. Miguel Gomes: “Acredito que terei mais capacidade de criar qualquer coisa interessante se puder reagir a coisas que não controlo”
Miguel Gomes / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Miguel Esteves Cardoso, a propósito da cerimónia de entrega do Prémio de Melhor Realização para “Grand Tour”, de Miguel Gomes, no Festival de Cannes, disse que o realizador português parecia um larápio siciliano. Não é conhecida qualquer capacidade do cineasta que já nos trouxe três volumes de “Mil e Uma Noites” (2015) ou “Diários de Otsoga” (2021) em roubar, mas sabe-se que gosta de uma boa peripécia. Encontrámo-lo na Cinemateca, de óculos escuros e cigarro na boca, num dia de muito vento. Durante a conversa com a Comunidade Cultura e Arte, sobre esta sua aventura na Ásia palmilhada por Edward e Molly que nunca mais se casam, houve só um larápio: o vento. A certa altura, depois de dizer que não se sente um realizador consensual dentro e fora de portas e de revelar um pouco mais sobre o deslumbre documental pelo oriente de “Grand Tour” (2024), que chega hoje aos cinemas portugueses, vários toldos caíram ao chão. “Podia filmar isto”, disse, lembrando o filme “Party” (1996) de Manoel de Oliveira.

O cinema e Miguel Gomes confunde-se, numa luta onde a falta de controlo, que lhe é mais confortável, tem servido para procurar um filme que possa deslumbrar o espectador. Se há coisa que Miguel Gomes pode roubar, de facto, é a nossa atenção.

Queria começar por uma das cenas no seu filme onde vemos um senhor que está a cantar e acaba a chorar num bar de karaoke. Às vezes as pessoas fazem documentários e vão à procura de perceber outras culturas, outros países. O que queria descobrir? Se é que queria descobrir algo.

Não, eu não quero descobrir nada, quero mostrar. Talvez descobrir alguma coisa. Mas é preciso ter muita sorte. E queria mostrar, para começar, o deslumbramento de ver algo que eu sei que não conseguirei ver todos os dias. Para ter sorte, como acho que tive nesse caso, ou seja, nós não filmámos 20 dias para poder ter um momento em que havia alguém a cantar um karaoke e a chorar. A Wikipédia mostrou-nos que existe uma espécie de hobby nacional nas Filipinas, que é o karaoke. É uma grande paixão pelo karaoke. E não sei porquê, quais as razões culturais. Isso não fez parte de uma descoberta que tenha feito, mas fiquei fascinado por acontecer. Existe uma espécie do topo da pirâmide do karaoke nas Filipinas, que é cantar o “My Way” do Frank Sinatra. Já sabia disso porque tinha lido uma notícia curta num jornal há uns anos, de que havia um gangue nas Filipinas chamado o “Gangue My Way”, que assaltava as pessoas e que apontava uma arma à cabeça ao pé de uma máquina de karaoke a dizer: “Agora tens de conseguir 10 pontos na máquina a cantar o “My Way” ou levas um tiro na cabeça”. Foram presos. Isto é real. É absurdo, mas é real. Nós tínhamos em cada país um produtor local. E falámos com o produtor filipino e perguntámos se era possível instalarmos uma máquina de karaoke, mais um tipo de jeep, que é uma espécie de táxi, em Manila. Um meio de transporte que vem do tempo da Segunda Guerra Mundial.

“Um filme é quase uma espécie de edifício onde o espectador vai entrar e vai mover-se lá dentro, e o desafio para um realizador e para uma equipa que está a fazer um filme é fazer com que esse edifício surja, se materialize e arranje espaço, quer para o espectador, quer para aquilo que nos fascina.”

Então estamos perante uma espécie de encenação?

Pedi para ver se conseguíamos ter um jeep, um sistema de som e uma série de filipinos a cantar em karaoke. Filmámos isso, está no filme, e depois um deles, uma daquelas pessoas que estava a cantar connosco, convidámo-lo para cantar o “My Way”. Sabia que estávamos também a fazer uma espécie de casting. Às vezes estou a filmar e a fazer um casting para uma cena futura. Pedi ao homem para cantar no Red Light District em Manila, cheguei e ele cantou. Tive sorte, porque era uma canção muito especial para ele. Emocionou-se. Fiz um take, desliguei a câmara e disse “muito obrigado, não temos mais nada a filmar aqui, não há nada a filmar, não há nada que possa bater isto, ou que eu ache que consiga bater isto”.

Há uma crítica recorrente aos cineastas ocidentais que filmam a Ásia e vão nesse sentimento de descoberta, o que os pode levar a ser um pouco condescendentes. Foi difícil não o ser?

Não, acho que é fácil se nós não complicarmos, ou seja, independentemente de estar a filmar na Beira Alta, na Ásia, ou em Moçambique. Ou mesmo numa casa em Sintra, que foram vários dos cenários por onde passei e fui filmando. Há sempre uma regra de ouro que é: independentemente daquilo que vier a confrontar, vai existir qualquer coisa que me é exterior, e que depois terá qualquer coisa que me pode falar ou não, que me pode tocar ou não, ou seja, pode ser cómico, pode ser comovente, pode ser muito bonito. Algo onde sinta que estou envolvido. Existe um princípio do prazer, de pensar, que existe, em Mianmar, uns senhores que têm uma roda gigante, sem motor e, portanto, são movidas pela motricidade dos seus funcionários. Penduram-se e fazem a roda mover-se. Eu e os argumentistas vimos imagens no Youtube disso e ficámos admirados. Quando alguém fica assim, já é meio caminho andado para irmos lá filmar. É sempre algo que nos interpela, e que temos de arranjar uma maneira disto poder existir no filme. Podemos inventar. Um filme é quase uma espécie de edifício onde o espectador vai entrar e vai mover-se lá dentro, e o desafio para um realizador e para uma equipa que está a fazer um filme é fazer com que esse edifício surja, se materialize e arranje espaço, quer para o espectador, quer para aquilo que nos fascina. Portanto esse foi o princípio, e pode ser o “My Way”, podem ser tantos outros elementos diferentes que vão aparecendo, mas era importante ter essa sensação, ou partilhar essa sensação de deslumbramento, num momento em que o mundo está mais pequeno.

Ou seja, em que é possível vê-lo através do Google Maps e ver fotografias de 500 mil, 30 milhões de viajantes que cobriram o território todo e queriam tirar a sua fotografia. Parece que nos estão a roubar a capacidade… [somos interrompidos por uma forte rajada de vento]. Por exemplo, gostava de filmar isto [a rajada de vento]. Já vi esta cena num filme português, do Manoel de Oliveira, onde acontece esta rajada.

Vamos tentar voltar à realidade apesar da ficção estar boa. Disse em Cannes que não queria fazer filmes sozinho. O Miguel tem trabalhado com a mesma equipa de argumentistas nos seus filmes, é mais fácil atingirem juntos esse deslumbramento?

Nós lutamos contra o mundo estar já muito mapeado, das pessoas já irem ao encontro das suas expectativas, em termos de viagem, em termos de cinema, as pessoas sabem onde vão. É um mundo muito corrido e tão divulgado, que a nossa capacidade de sermos seduzidos por ele, e de nos surpreendermos, é mais difícil hoje em dia.

Quando vi o filme no Cinema Nimas não estava à espera que fosse assim. Nem que ganhasse um prémio.

Nem eu.

Miguel Gomes / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Já se sabe que é muito difícil um filme português alcançar o patamar que “Grand Tour” alcançou em Cannes. No entanto, senti que fez um filme popular, para as massas. Que vai à base do cinema, que é a de ser uma arte que também entretém. Tinha essa intenção?

Não, não é entreter mais do que tento entreter nos outros filmes todos, ou seja, essa dualidade entre o cinema, um cinema de autor, que é bastante austero em termos emocionais, em termos de experiência, e um cinema mais popular que, como dizes, entretém. Para mim as coisas não são assim tão simples, mesmo como espectador, ou seja, às vezes aborreço-me de morte com uma série de filmes que são grandes sucessos planetários. Mesmo. Mas acho que não sou o único também. E com outros filmes sinto-me completamente engolido e deixo de ter noção do espaço físico, da sala onde estou. O entretenimento pode ser isso. Há um envolvimento com o filme que quase que faz esquecer, que te faz abstrair da situação real em que estás naquele momento.

“Às vezes aborreço-me de morte com uma série de filmes que são grandes sucessos planetários.”

Uma vez disse que “às vezes parece que estou num circo e eu sou o palhaço”. O palhaço tem aquela ideia de…

… Não me lembro dessa afirmação.

Mas queria pegar mais na ideia do palhaço entreter, distrair, nem que seja por uma hora ou duas.

Isso às vezes é muito complicado, a concorrência é feroz, há várias situações para dissecarmos isto. Há um momento histórico no cinema, quer em termos de teoria de cinema e de crítica de cinema, mas também da sua história, que é o momento em que o pré-Nouvelle Vague, em que os críticos dos Cahiers du Cinema defendem como o apogeu do cinema naquele momento, um cinema que era popular e era menosprezado, precisamente por elites culturais que tinham uma ideia de cinema muito mais próxima, por exemplo, da literatura. E eles defendem autores que parecem relativamente óbvios, como o Alfred Hitchcock ou Nicholas Ray. Uma série de autores de cinema que faziam filmes populares dentro de um sistema de produção completamente codificado, com regras industriais, e os críticos diziam que estes senhores têm propostas de cinema que são imbatíveis, e tinham razão, ainda por cima. E são eles quem marcam também um tempo na história do cinema, fazendo filmes que hoje são vistos, ou muitos desses filmes são vistos como o momento em que o cinema passa para um patamar ou para uma dimensão mais desafiadora do público. São os mesmos. Para mim, está tudo junto, ou seja, para mim existem filmes. E, portanto, depois existem as propostas avaliadas em termos de sucesso comercial, por exemplo. Ser espectador de um filme de Hitchcock ou ser espectador de um filme do Jean-Luc Godard é algo incrível. Mesmo que me digam, e que eu possa conceder que sim, que existe um mundo de diferença entre os dois autores. Mas estão ligados.

O cinema português passa por outro tipo de fase, parece-me diferente, mas sempre que sai um filme seu, denoto um certo consenso. Sente-se consensual?

Não, não tenho essa sensação. Não sei se sou eu que vejo coisas diferentes de ti, ou se tu só vês uma parte, mas acho que vai haver sempre opiniões distintas sobre o filme. que é o que é um filme? Algo físico que existe, hoje em dia menos físico, porque já não temos bobines. O cinema é o encontro entre o espectador e uma série de planos que sucedem num ecrã com som, e que as pessoas reagem. Mesmo que as pessoas hoje em dia vejam menos filmes em sala, e vejam os filmes mais em casa, depois, quando falam uns com os outros, partilham experiências completamente diferentes. Parece-me que isso tem a ver com o caráter que o cinema tem que é o de ser um encontro. O filme não existe por si, o filme só existe a partir do momento em que é visto por alguém. E, depois, esse alguém vai projetar nesse filme os seus interesses, o seu sentido de humor, a sua sensibilidade, e vai reagir a ele de uma forma diferente. Os meus filmes são como os outros filmes todos, funcionam assim, funcionam de maneiras diferentes, com pessoas diferentes. Não acho que vá ser consensual em Portugal, como não acho que seja consensual em algum lugar do mundo.

“Ser espectador de um filme de Hitchcock ou ser espectador de um filme do Jean-Luc Godard é algo incrível. Mesmo que me digam, e que eu possa conceder que sim, que existe um mundo de diferença entre os dois autores. Mas estão ligados.”

Mas isso é bom?

É natural, não há nada que possa fazer e está ótimo assim.

E não sente mais responsabilidade pelo próximo projeto agora que está pré-nomeado aos Óscares e que venceu um prémio em Cannes?

Não, sinto sempre responsabilidade. A responsabilidade que existe quando se faz um filme, que tem a ver com os produtores, de como arriscam o pescoço, aos atores que estamos a filmar e ao espectador que nós queremos ter. A responsabilidades de um realizador é a de não trair quem vai estar envolvido num filme. Isso vai desde as pessoas que se filmam, às pessoas que trabalham connosco e também ao espectador.

Uma das maneiras de não trair o espectador é o de não o tentar infantilizar. E se calhar, antes de tudo, a responsabilidade é connosco de tentar fazer qualquer coisa onde eu, como realizador, me possa rever. E não sentir que isto é completamente distante de mim e estou a fazer cada plano do filme, ou um plano do filme, por uma razão que não tenha a ver com o facto de eu querer, ter o desejo de partilhar uma coisa com alguém.

“Mesmo que as pessoas hoje em dia vejam menos filmes em sala, e vejam os filmes mais em casa, depois, quando falam uns com os outros, partilham experiências completamente diferentes. Parece-me que isso tem a ver com o caráter que o cinema tem que é o de ser um encontro. O filme não existe por si, o filme só existe a partir do momento em que é visto por alguém.”

O Edward e a Molly jogam uma espécie de jogo de gato e de rato. O cinema português e o espectador português também vivem um bocadinho assim. Quando um realizador português lá fora ganha, há um interesse. Cá estamos, outra vez, a passar por um período difícil em que as pessoas não estão a ir ao cinema, sobretudo para ver cinema português. Não vou pedir soluções. O governo, entretanto, mudou, mas o Miguel tem alguma esperança que o cenário mude?

O cinema de cada país é também o resultado do seu sistema económico, do mercado concreto que existe nesse país. Ou seja, o cinema americano é assim devido ao mercado que existe nos Estados Unidos e no mundo. O cinema português é assim porque existem condições socioeconómicas muito específicas. Era impossível que o cinema português, com o mercado que tem, funcionasse como o cinema americano, e era impossível que o cinema americano funcionasse como o cinema português. Portanto, as duas coisas estão ligadas e o cinema que se faz resulta dessas condições. Acho que o mercado português é muito pequeno e isso faz com que exista muito pouco dinheiro disponível para o produzir. É um setor subfinanciado, apesar do apoio público, o que tem um efeito colateral.

Ou seja, é mau, objetivamente, é mau que não exista outro tipo de condições para se fazer mais filmes, filmes que não estejam subfinanciados, ou que não exista uma indústria de cinema. Por outro lado, é o facto de termos essas condições que faz com que o cinema português tenha uma identidade própria. Ou seja, é uma espécie de consequência disso, da ausência de pressão industrial e do capital que não existe, porque ninguém tem uma grande perspetiva de ganhar dinheiro com um filme português, faz com que exista uma menor necessidade de negociar compromissos.

“O cinema português que existe, naquilo que eu acho que tem de melhor, beneficia de uma espécie de efeito colateral de uma coisa má, que é o facto de haver pouco dinheiro.”

Portanto, estamos condenados, saindo dessa realidade, a subverter o nosso próprio género?

Acho que nunca vamos sair dessa realidade porque ela é estrutural, ou seja, nós temos 10 milhões de pessoas com poucos hábitos culturais, temos toda uma realidade socioeconómica que não vai mudar tão rapidamente. Talvez mude daqui a dois séculos, mas vai permanecer assim. E, portanto, o cinema português que existe, naquilo que eu acho que tem de melhor, beneficia de uma espécie de efeito colateral de uma coisa má, que é o facto de haver pouco dinheiro, de haver um mercado muito pequeno e, portanto, não haver grandes perspetivas de fazer lucro com os filmes. E não havendo essa perspetiva de fazer lucro com os filmes, as obras beneficiaram do facto de não existir uma pressão que obrigue a colocar vedetas da televisão, ou ter de fazer um filme que aos 15 minutos aconteça isto ou aquilo. Que, enfim, seja obrigado a replicar uma fórmula industrial. A singularidade do cinema português resulta numa coisa péssima, que é a de não haver dinheiro suficiente, não haver mercado para o nosso cinema.

Imagine que o “Grand Tour” ganha o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Estaria pronto para aceitar as regras de Hollywood quando fizessem o primeiro convite?

Vou-te contar uma história. Durante o Festival de Cannes, um realizador, que tinha um filme também na competição, que eu não vou nomear, que tinha alguma admiração pelo meu trabalho, veio falar comigo. Às tantas pergunta-me como é que eu reagiria se me propusessem fazer um filme noutra língua que não a minha.

Miguel Gomes / Fotografia de Rui André Soares – CCA


Como aconteceu agora com o Pedro Almodóvar com o seu “The Room Next Door”, vencedor do Leão de Ouro em Veneza este ano.

Ele é mais velho do que eu. Muito do cinema clássico americano é uma invenção da Europa, num momento histórico muito preciso, em que havia uma guerra mundial, e muita gente a fugir da Alemanha, de países onde fugir da guerra era uma questão decisiva, quase de sobrevivência, e que foram fazer carreiras incríveis. Fizeram filmes inacreditáveis, e inventaram, numa parte substancial, o cinema americano clássico, desde o Fritz Lang, ou o Jean Renoir, que também fugiu e fez lá cinema. Muita gente. Retomando a história de Cannes, esse meu colega realizador, veio-me colocar essa questão. Olhei para ele, um pouco surpreendido, e disse-lhe que me parecia tão improvável que nunca tinha pensado nisso como deve ser. É algo tão afastado da realidade, que não sei como é que tenho de responder, pensei eu. Gostava de responder com propriedade, mas para isso tinha que me dedicar a pensar nisso mais do que trinta segundos. Nunca pensei.

“O cinema de cada país é também o resultado do seu sistema económico, do mercado concreto que existe nesse país.”

Um dia, quando, e se acontecer, voltamos aqui. Com vento, de preferência. Partilhamos uma pessoa em comum: o Telmo Churro, que foi meu vizinho. É uma espécie de peripécia, algo que o Miguel gosta muito de encontrar no seu cinema. De onde vem esse fascínio com uma “arte” que só podemos encontrar na espécie humana? A do acaso, do engodo, do empecilho.

Quando estou a tentar fazer um filme, acho que não tenho capacidade suficiente para pré-definir exatamente tudo aquilo que se vai desenrolar nesse filme. Acho que, ou pelo menos acredito, terei mais capacidade de criar qualquer coisa interessante se puder reagir a coisas que não controlo. Portanto, a ideia de perder controlo é útil. Apercebi-me disso não só a fazer filmes, mas também a vê-los. E vi muitos filmes em que considerei que tudo estava demasiado controlado. Ok, entra figurante número 5, agora vai da esquerda para direita. Sinto a mecânica toda do cinema naquilo que tem de mais logístico a acontecer à minha frente. Isso é a morte do cinema, porque não há vida. E o cinema pode ser completamente artificial, mas tem que ter uma vida qualquer. Tem que estar a ser habitado. Muitas vezes sinto que não há. Que é só apenas um bailado mecânico, em que a máquina do cinema tomou controlo daquilo. É tudo bastante previsível e, por isso, aborrecido. Tenho medo disso. E, portanto, o que tento fazer é criar condições para perder o controlo.

Falo de figuração mas posso estender a outros aspetos do cinema. Um filme beneficia, ou pode beneficiar, de um certo descontrolo e de haver um lado de casualidade, de uma abertura qualquer ao mundo que acabe por insuflar vida nos filmes, muito mais do que num platô completamente controlado. E isto não é só para filmar um plano, mas também para uma cena do filme. Ou seja, no caso do “Grand Tour”, decidimos que seria mais benéfico filmar um percurso pela Ásia e tentar reagir. Ou seja, já haver uma matéria concreta para reagir, do que ser apenas produto da nossa imaginação. Achámos que a nossa imaginação poderia beneficiar com o confronto com aquilo que filmámos nesse percurso.

“Grand Tour”, filme de Miguel Gomes



Houve uma parte que teve de ser feita à distância, por causa da pandemia de covid-19 na China e no resto do mundo. Foi difícil fazê-lo para um realizador que gosta de perder o controlo mas ao vivo e a cores? Espera repetir a experiência?

Espero que não, mas foi muito difícil até ao primeiro dia de rodagem. Estava muito cético relativamente à possibilidade de acontecer qualquer coisa. Daquilo funcionar, basicamente. E, para a minha grande surpresa, funcionou. Era impossível entrar na China por causa da política de covid-zero dos chineses. Tínhamos uma equipa de chineses lá e nós numa casa no Areeiro, da meia-noite até às oito da manhã, a acompanhar a rodagem. E havia um diretor de fotografia, um assistente de realização, uma equipa para poder filmar, um diretor de som. No fundo, uma equipa para fabricar aquele filme. E estávamos nós, do outro lado do mundo, num Airbnb, a olhar para dois monitores. Um dos técnicos tinha as imagens daquilo que via na câmara, recebia o sinal digital e o outro recebia o sinal do telemóvel do assistente de realização. A escuta estava para mim, para equipa que estava no Areeiro, para o assistente de realização e para o diretor de fotografia. E, supostamente, nós teríamos de ter uma live feed, ou seja, estaríamos a receber em tempo real as imagens, quer do telemóvel do assistente de realização, quer da câmara.

Era o mais cético?

Não sei. Estávamos todos um bocadinho, não sei.

Essa maneira de realizar foi uma proposta da equipa da China?

Não, os chineses propuseram-me dizer que era impossível continuarmos a viagem ou voltarmos para a China e fazermos o que estava programado. Foram dois anos de espera para poder retomar essa viagem e finalmente entrar na China. Estava a ser impossível. Disseram-me que eu podia ir mas mais ninguém. Tinha de fazer duas semanas de isolamento profilático num hotel, meio prisão, na China. Pergunto se podia fumar. Disseram que não. Respondi: esqueçam, há sacrifícios e sacrifícios. Escolhemos filmar à distância, desde que me garantissem que podia estar a ver o espaço, ter a imagem daquilo que a câmara está a captar e que eu possa dizer: “corta e ação” e “corta os momentos”. Não haver uma décalage de um minuto, nem sequer de três segundos entre aquilo que eles estão a fazer na China e aquilo que estava a ver para poder reagir àquilo que está a ser filmado.

E portanto dizer, “ok, vejo no telemóvel”, dá-me uma imagem mais larga do que aquilo que a câmara está a captar, vejo um casal que está a entrar no salão de baile do hotel, vai entrar a dançar, vai entrar à esquerda da câmara” e, aí, tive a possibilidade de sussurrar no ouvido do diretor de fotografia, “panorâmica direita, vais apanhar um casal, segue o casal a dançar”, e foi precisamente isso que aconteceu. É isso que estou habituado a fazer na altura em que estou lá presencialmente ao lado do diretor de fotografia.

“Muito do cinema clássico americano é uma invenção da Europa.”

Correu bem, mas não é para repetir?

Correu bem, mas porque eles estavam lá, até porque eles iam para almoço e eu não [ri-se].

Há quem diga que o cinema está muito ameaçado por esse tipo de tecnologias como a Inteligência Artificial, é uma coisa que o aflige ou vamos conseguir de certa forma salvar-nos da ameaça?

Não me parece que nenhum realizador prescinda da oportunidade de estar fisicamente no local onde se está a filmar e de poder olhar para a cara dos atores e falar com eles e com a equipa. Foram circunstâncias muito específicas que nos obrigam àquelas condições. É sempre melhor estar presente.

Miguel Gomes / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Não é tão fatalista como alguns que dizem que, por exemplo, a Inteligência Artificial vai, de facto, transformar a sétima arte noutra coisa. Ainda esta semana fui ao Motelx e vi duas curtas-metragens geradas por IA.

E que tal?

Como exercício cómico achei engraçado. Mas só como exercício.

Não fui ao Motelx e está a falar-me de filmes específicos. Não consigo elaborar muito sobre isso.

A minha profissão, por exemplo, está de facto ameaçada. Os realizadores e argumentistas também podem estar.

É preciso alguma inteligência para fazer filmes, mas também alguma estupidez. Confio na estupidez humana para criar qualquer coisa que seja habitável. Ou seja, nós somos inteligentes, mas também somos estúpidos. A Inteligência artificial é, neste momento, bastante estúpida. Independentemente disso, a ideia de haver algo que é gerado através de uma espécie de base de dados, de estatísticas…Enfim. Parece-me bastante disfuncional, mas veremos.

“Acredito que terei mais capacidade de criar qualquer coisa interessante se puder reagir a coisas que não controlo. Portanto, a ideia de perder controlo é útil. Apercebi-me disso não só a fazer filmes, mas também a vê-los.”

Voltando ao “Grand Tour”. Porque é que o Edward e a Molly nunca se encontram?

Houve um momento, no argumento, em que havia uma cena que não era muito boa, em que os personagens se encontravam. Era um sonho. Tentámos perceber se funcionava, como reagiriam as duas personagens nesse encontro.

Atenção, gostei da desilusão de não se encontrarem.

Mas, sim, testámos essa hipótese. Não fomos indiferentes à ideia. Só que escrevemos a cena e ninguém ficou satisfeito. Uma construção cómica de personagens clássicas: o homem, a mulher, o romance.

Trabalhou muito com os actores ou deu-lhes espaço para o improviso?

Geralmente não dou muitas indicações aos atores. É preciso ter confiança no seu trabalho. Ter esperança de que foram bem escolhidos. Não vale a pena manipular, é preciso estar atento e ir ajustando.

Falando de outra personagem da nossa praça, o Miguel Esteves Cardoso apelidou-o de larápio siciliano. Falemos da sátira, muito presente no seu cinema. Há uns meses, o diretor da RTP José Fragoso disse que faltavam comédias em Portugal, durante os Encontros do Cinema Português…

Esses Encontros são, de facto, uma comédia…

Certo. Mas falta-nos comédia ou não?

Rio-me muito em filmes de Manoel Oliveira, rio muito, obviamente, com os filmes do João César Monteiro, e até me rio em filmes do Pedro Costa. Todos eles, por exemplo, no sentido do humor, são bastante apurados. Agora, o encontro entre uma determinada sensibilidade de alguém, em específico, e um filme que está a ser projetado, não é claro. Depende muito de quais são os critérios daquela pessoa sobre uma série de coisas. Nomeadamente sobre o sentido do humor que está no filme, porque o que é genial no sentido do humor é que é super flutuante. Ou seja, aquilo que alguns entendem como humor muito estúpido para uns e para outros não. Nem sequer sei o que é uma comédia. Num sistema não industrial, os géneros não existem de uma maneira tão tipificada. Está tudo um pouco misturado. Os filmes ou têm piada ou não têm.

Miguel Gomes / Fotografia de Rui André Soares – CCA

No seu discurso de entrega do prémio para Melhor Realização em Cannes falou de cineastas que lhe precederam. Há uns tempos fiz uma reportagem sobre o António de Macedo, realizador do Cinema Novo bastante marginalizado. Falta-nos empatia para com estas figuras?

Existem tempos diferentes na receção dos filmes. Existe um momento que corresponde ao momento da estreia, depois o filme é visto mais tarde e pode desaparecer. Ou foi completamente valorizado, mas num determinado momento não consegue sobreviver ao tempo, ou o inverso, algo que teve uma existência super discreta, num determinado momento, ganha um outro tipo de visibilidade. Mas isso não é só no caso português, é a história do cinema que é feita desses encontros e desencontros que se vão sucedendo no tempo. Não é algo exclusivo nosso.

“Aquilo que alguns entendem como humor muito estúpido para uns e para outros não. Nem sequer sei o que é uma comédia. Num sistema não industrial, os géneros não existem de uma maneira tão tipificada. Está tudo um pouco misturado. Os filmes ou têm piada ou não têm.”

Não sente que o temos feito e que só se ganha destaque com premiações internacionais?

Já é uma sorte nós continuarmos a filmar. Poder filmar, prosseguir com o trabalho, haver o desejo de um filme futuro e disso poder ser concretizado. O reconhecimento é muito estimulante. Pode-nos dar mais força para continuar, mas não é algo que esteja no topo das prioridades. É ótimo quando acontece mas a questão é: será que consigo continuar a filmar? É uma questão muito prática. Não existe nada de garantido para qualquer pessoa que esteja a fazer filmes.

“É preciso alguma inteligência para fazer filmes, mas também alguma estupidez. Confio na estupidez humana para criar qualquer coisa que seja habitável.”

Gosto sempre de aproveitar as entrevistas também para aprender alguma coisa. O Miguel foi crítico durante alguns anos, eu estou a aprender a ser. Torna-se cada vez mais difícil fazer um texto crítico ao ver mais cinema. Como cineasta, é mais difícil hoje criticar os filmes dos outros?

Estás no bom caminho, se achas que quanto mais filmes vês, mais dúvidas tens sobre como falar sobre eles. Ou seja, isso parece-me uma coisa natural e positiva. Para mim, por vezes, era um momento horrível mesmo. Nunca aprendi. Nunca aprendi exatamente como escrever sobre um filme. Fui tentando. Como realizador acho que existe sempre uma espécie de… quer dizer… não posso dizer que após cada filme é-me mais difícil ter opinião sobre os outros. É que vou sempre a zeros. O contador vai a zeros. Não me sinto menos à vontade. Confio na sorte. Tenho mais confiança na sorte hoje em dia. Porque num minuto pode acontecer algo incrível. Filmar mete sempre medo. Consigo dominá-lo melhor hoje em dia. E de perceber o que pode resultar daqui. Lidar com o lado emocional de fazer um filme. O seu lado social também. De lidar com actores, com técnicos, cada vez me sinto mais em casa. Cada filme é um reset. É irmos a zero e ver no que dá.

Última pergunta. Li a sua entrevista ao Expresso que dizia que gostava de jogar ténis. Já não gosta?

Pensei que me ia perguntar outra coisa.

Já falámos sobre isso. Mas joga ou não?

Não, não, não.

Não cedeu ao padel?

Acho o padel repugnante. Uma perversão. Nem o reconheço como desporto.

Por acaso jogo, mas não sou para aqui chamado.

Ténis é a coisa a sério.

Fotografia de Rui André Soares – CCA

Não temos grandes exemplos de filmes sobre ténis. Saiu este ano o “Challengers” do Luca Guadagnino.

Vi no avião para Toronto.

Gostou?

Nos aviões acho que não gosto de filme nenhum. Não tenho problema em estar em aviões, mas não há opção de sair dali. Numa sala de cinema posso-me ir embora.

Pode desligar.

Sim. Mas não posso sair da cadeira.

Concentra-se mais no filme. Mas diga-me lá se gostou do “Challengers”?

Há filmes piores e… outros melhores.

Continua a ver ténis?

Já vi mais.

O que é que faz quando não está a filmar?


Muita coisa. Sou do Benfica.

Agora é que ficou tudo estragado.

A glória em Portugal é o Benfica. Isso é mais ou menos consensual. Mas faço imensa coisa, interessam-me muitos assuntos.

Se o Benfica o convidasse para realizar um filme, realizava?

Não. Fazer um filme sobre o Benfica é muito abstracto. Se me convidassem para fazer um filme sobre colonialismo também dizia que não. São temas demasiado genéricos e que não estão habitados por algo específico com que eu possa lidar.

Ainda acompanha a actividade clubística?

Certamente, mas não tenho de fazer um filme sobre o Benfica para acompanhar.

Ainda é sócio, vai ao estádio?

Já fui, deixei de ser. Tenho dois filhos pequenos em casa, portanto, é difícil ir ao estádio.

São do Benfica?

Começam a ser mas não vou influenciá-los.

É um adepto calmo como era o meu avô que só se levantou no golo do Simão Sabrosa contra o Liverpool para a Liga dos Campeões ou é irracional?

Isso de adepto calmo não existe.

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