Entrevista. Milhanas: “Os rótulos são muito inimigos da arte”
Há um ano, Milhanas lançava o seu primeiro disco De Sombra a Sombra. Apreciado pela crítica e com destaque em várias listas de melhores de 2023, Milhanas há muito que conhece os bastidores do mundo da música. Filha de Vítor Milhanas, baixista e produtor de Fausto, cresceu entre música e poemas e é com esse legado que vai encontrando a sua voz. Admiradora confessa de Miguel Torga e de Amália, Milhanas não esconde as suas inspirações presentes, e, no início deste ano, realizou uma série de duetos que publicámos nas redes sociais, nomeadamente com António Zambujo, Luísa Sobral (que a levou a escrever canções), Ricardo Ribeiro, Agir (produtor do disco) e Salvador Sobral.
O disco De Sombra a Sombra, escrito num momento especialmente “escuro”, foi recentemente estreado ao vivo num esgotado Maria Matos, onde Milhanas pôde conciliar duas grandes paixões, a música e a estética. É com todas as suas histórias e mulheres do seu disco que irá abrir o palco principal do Primavera Sound no mesmo dia de Lana del Rey. Falámos com Milhanas sobre as mulheres do seu disco, sobre as suas inspirações e planos para o futuro, que se quer sem rótulos e livre, como sempre foi.
No podcast Posto Emissor da Blitz falaste sobre como foi crescer no mundo da música, com Fausto e José Mário Branco, e que na altura tentavas, acima de tudo, chamar a atenção do teu pai. Mas como foi crescer no meio da poesia de tanta gente que te rodeava?
Costumo dizer sempre que é preciso maturidade, que eu não tinha na altura, para entender a obra de artistas como Fausto, como José Mário Branco. E eu na altura não tinha, então eu associava maioritariamente o Fausto, que era quem estava mais lá em casa, à pessoa que tirava a atenção do meu pai comigo. Mas é muito curiosa e bonita a forma como começou por ser uma pessoa por quem eu tinha quase uma certa repulsa — num sentido obviamente exagerado — para ser hoje em dia a minha maior influência, é o meu artista preferido, porque é de facto preciso maturidade e tempo. E, para além de estar obviamente muito grata por ter crescido muitíssimo bem rodeada, eu sou a maior fã do meu pai. Desde sempre. É claro que já não senti ser necessária essa maturidade, é uma ligação emocional directa. Os meus pais foram sempre muito liberais e deixaram-me sempre experimentar um pouco de tudo, nunca tiveram uma postura imperativa, como se eu tivesse de fazer música ou não. Deixaram sempre que acontecesse, e por acaso os meus interesses acabavam por se basear todos à volta disso. Por isso foi muito bonito.
“A poesia tem assim um papel muito importante no meu processo de composição e de vida.”
Tiveste aulas de violino, mas como descobres que queres cantar? Cantavas em casa?
Cantava em casa, mas a voz, ou seja, a vontade de usar a voz como instrumento principal veio muito mais tarde. Toquei violino, estava no coro, estava no teatro, mas a voz era quase uma extensão de tudo o que eu fazia. No teatro cantava, mas porque tinha de cantar, porque era teatro musical. No coro cantava, mas cantava porque estávamos todos em grupo. Nunca achei que tivesse alguma coisa de especial para cantar sozinha. Depois comecei a ter aulas, técnica vocal e comecei a ganhar mais gosto e a entender que se calhar seria a melhor forma de me expressar, mas até há uns 3 anos achava que era só uma miúda afinada. E não é que seja agora algo mais, mas não via futuro na minha voz, olhava com amor. Foi algo que se foi construindo sem pressão.
Tens muitas referências. Desbloqueaste o teu processo criativo com a Luísa Sobral, mas tens também muitas referências de Miguel Torga, que também escreve muito sobre as angústias do seu tempo. A tua voz interior foi potenciada pela poesia, pela escrita?
Acho que sim, acho que encontrei na poesia. Comecei a ler tarde, era mais uma criança de música e depois, no secundário, escolhi literatura como disciplina suplementar e foi aí que me apaixonei. Nessa altura vi na poesia um lugar que me era muito confortável, a forma como nos poemas se descrevem as dores e os lamentos. Portanto, o Miguel Torga teve um papel muito importante, porque sinto que a antologia poética dele me veio dar respostas sobre muitas coisas que eu nem sequer sabia que precisavam de resposta. Ou seja, ele respondeu a muitas perguntas que eu não tinha. E o que aconteceu foi que adoptei esse método em que, por cada poema que eu gostava, ou que eu sentia que me dizia alguma coisa especial, pegava numa ideia ou naquilo que o poema me fazia sentir e escrevia um poema. Era quase como se fosse uma colaboração em que o Miguel Torga não fazia sequer a mínima ideia — e provavelmente nem sequer concordaria —, mas na minha cabeça, nas minhas 4 paredes, é quase uma colaboração de responder àquilo que os poetas me dão. Aquilo que sinto que posso acrescentar ou não, e, portanto, a poesia tem assim um papel muito importante no meu processo de composição e de vida.
Na música “Eu de prosa” cantas “Falta-me a voz para contar/O que eu quero e não consigo”. E por vezes não são só as palavras que faltam, é também a voz. Por alguma impotência perante o mundo, diria?
O “Eu de prosa” também fala muito sobre acho que o processo final dessa dor toda de chegar a um ponto em que já não é “gerível”. Cheguei ali uma determinada fase da minha vida, provavelmente o lugar mais escuro onde eu estive e onde, graças a Deus, já não me encontro, mas porque eu já não sabia gerir nem as dores que me eram alheias, que no fundo são as que me doem sempre mais, nem as minhas próprias dores. Entrei ali num poço e o “Eu de prosa” fala um pouco sobre o facto de — e pode ser algo bruto dizê-lo assim — não me apetecer continuar aqui, mas havia sempre alguma coisa que, no final do dia, por consciência ou sobrevivência, me lembrava que se calhar era preciso que eu ficasse, não só para os outros, mas para mim própria. Que ia haver um tempo em que eu ia perceber que há luz. E encontrei-a muito mais rápido do que achei. Esta canção é quase estranha de cantar hoje, porque já não me sinto nesse lugar, é como se estivesse a contar a história de outra pessoa por quem eu tenho muita empatia.
Dizes numa entrevista recente que tens imenso respeito pelo fado, mas não és fadista. O que me leva à tua admiração pela Amália, que num fado canta “Acho inúteis as palavras/Quando o silêncio é maior (…)Acho inúteis nossos corpos/Quando o desejo é certeza” que relacionei de certa forma com a tua canção “Mundo” “No espaço entre dois corpos/ Há lugar para existir/ Não queiras só do corpo/O que o corpo vai pedir”. O ser-se mulher, em toda a sua acepção, é, parece-me, algo que a Amália canta e parece-me ser também preponderante no teu disco.
Sim, absolutamente. Acho que foi inconsciente, mas no fim do processo percebi que se calhar era uma coisa que tinha de acontecer. Por exemplo, o “Roubar um corpo” é, no fundo, um grito de revolta por todas as mulheres que já sofreram nas mãos de um homem. É a minha homenagem a todas as mulheres que ainda passam por isso. Na canção “Mundo”, é quase uma passagem de submissão para a posição exactamente oposta, de uma mulher poder ser realmente livre e tomar as suas decisões sem culpa. Ainda que haja cada vez menos, acho que há ainda muito a culpa da mulher e temos um longo caminho pela frente. Talvez por ser mulher, as minhas maiores inspirações são todas figuras femininas e a Amália está, obviamente, entre elas.
A Amália diz numa entrevista que “o fado sente-se, não se compreende nem se explica”. Não achas que és fadista?
Há uma frase que se diz muitos nos fados que é tão fadista quem canta como quem ouve, por isso, nesse sentido sim, sou fadista, porque há toda uma compreensão que não se explica com palavras e que eu sinto que a tenho. Apesar de achar que entender os fados e amar os fados é um caminho que leva tempo, por muito que se vá aos fados uma vez e se goste, para se entender, é preciso mais vezes. Porque os fados não são só os fados tradicionais. Os fados são tudo aquilo que o fado implica, que é toda uma vida e a forma de sentir dos fadistas. É todo um mundo quase paralelo. Ao mesmo tempo, e se calhar é mau para os fadistas e peço imensa desculpa, durante estes últimos 2 anos, houve alturas em que eu ia aos fados 6 vezes por semana e eu sinto que ouvi fados 3 vezes. O fado acontece de vez em quando. Houve uma altura em que eu continuava a ir na esperança de voltar a ouvir fado, na verdadeira acepção da palavra, porque é uma coisa rara. Isto não significa que os fadistas sejam piores ou melhores, acho que é só uma coisa que não se explica, que quase parece que absorve todo o espaço e ambiente que se cria. Quando comecei a ir aos fados, perguntei à Teresinha Landeiro como é que ela acaba de cantar um fado menor do Porto, com um poema brutalmente triste, a seguir canta uma marcha, e ela disse-me “Vem mais vezes e vais perceber”. Quando a pessoa está a precisar de cantar aquele fado, sente. E eu, não sendo fadista, porque para o ser tenho de cantar fados, fazer fados, e eu não faço fados. Não sou boa a cantar, não domino a linguagem por muito que ouça. E o fado não precisa de mim, não sinto que vá acrescentar nada. Gostava sim de um dia, mais tarde, gravar um disco mais tradicional, de uma forma mais personalizada, mas sinto que o fado não precisa de mim.
“As pessoas querem tanto viver tudo ao mesmo tempo e não podem perder nada. Há muito FOMO, querem estar presentes em todo o lado que acabam por não se entregar de facto a lado nenhum e a lugar nenhum.”
Usas muitos elementos, usas a guitarra portuguesa, misturas um pouco de electrónica. Estás, de certa forma, a fugir a rótulos? Disseste uma vez que se quiseres gravas um disco de reggaeton ou de outro género qualquer.
Os rótulos são muito inimigos da arte. Se eu estivesse a fazer um disco a pensar no que vai ser rotulado ou não, eu estaria a fazer o disco com a cabeça no sítio errado. O disco aconteceu e acabou por ficar a soar assim. Não comecei a fazer as músicas a pensar “vou pôr guitarra portuguesa, vou trazer um bocadinho de electrónica, vai ficar uma cena assim, moderna, mas tradicional.” Não foi nada consciente, até porque o disco começou a ser feito antes de eu começar a ir aos fados. A guitarra portuguesa só apareceu depois. A parte electrónica só apareceu quando o Agir apareceu. Foi mesmo encaixando de forma inconsciente. De facto, disse há algum tempo que a próxima coisa pode ser reggaeton e é mesmo verdade. Vou começar a fazer lentamente o próximo disco e sei que não vai ser a mesma coisa do que o anterior, porque cresci, porque a vida acontece, porque tenho outras histórias para contar e porque já não estou naquele lugar tão escuro onde estava. O facto de estar noutro sítio mais lunar também traz outra perspectiva de cadência de disco. Mas também, se calhar, vou chegar ao fim da minha vida e dizer “eu sou fadista”.
Esse lugar escuro, e sem querer estar a dissecar muito essa parte, porque os lugares passam por nós. Mas na música “Sã” escreves “Escrevi recados para ninguém/Guardei segredos fui segredo”. Nós vivemos numa sociedade muito apressada, onde a emoção é muito superficial e o que se sente realmente é muito disfarçado, especialmente nas camadas mais jovens.
Sim, é muitíssimo assustador. Com a minha geração, há tantos estímulos e tantas portas que estão abertas, que as pessoas querem tanto viver tudo ao mesmo tempo e não podem perder nada. Há muito FOMO, querem estar presentes em todo o lado que acabam por não se entregar de facto a lado nenhum e a lugar nenhum. E, portanto, há uma sensação de — quase mesmo que não se diga literalmente — de não pertença. Porque é impossível pertencer a algum lado se pertencermos a milhões de lugares. É como ter um bocadinho do corpo em todos os sítios, mas no fim do dia não sei onde vou dormir. Porque não consigo dormir se a cabeça não estiver ao pé da mão e da perna. Sinto que as pessoas estão um bocadinho aéreas. Acho que vai mudar, porque é uma coisa urgente dentro de nós. Acho que é uma fase passageira, mas perigosa, porque pode criar de facto pessoas ausentes, pessoas pouco empáticas. Isto de querer viver tudo ao mesmo tempo, acaba por nos fazer ficar autocentrados em demasia, demasiadamente preocupados só com os nossos objetivos e as nossas vontades. E se calhar menos com as dos outros. Aquilo que mais move as pessoas é o cuidado e a empatia, e eu sinto que a minha geração está pouco empática ou empaticamente superficial.
O teu disco fez agora um ano. Apresentaste-o no Maria Matos, vais abrir o palco principal num dos dias do Primavera Sound. Qual é o rescaldo deste ano?
Foi um ano onde cresci muito e porque também aconteceu tudo muito rápido. Não estava genuinamente à espera de nada do que aconteceu e sou muito grata. Foi muito, muito bonito passar — e voltamos à conversa, que se calhar é um bocado sensacionalista, mas que é super verdade — de um lugar tão escuro para sítio mais luminoso, onde estou hoje em dia. Para o próximo disco quero trazer a mesma verdade, a mesma preocupação e atenção ao detalhe que houve muito durante este processo. A coisa que eu mais me mudaria, mas não tanto no disco especificamente, mas talvez tenha sido a minha postura muito séria, mas também é normal pois nunca tinha feito uma entrevista na vida. Sinto que me levei demasiado a sério nessa altura e neste ano que passou percebi só tenho e olhar para as coisas de uma forma mais leve, que a música é música e eu só estou a fazer isto porque gosto muito. Continuar a ser verdadeira e a fazer as coisas pela arte, ainda que por vezes seja difícil não pensar em mais nada.
“Gosto demasiado de pessoas para estar enfiada num estúdio, por isso estou ansiosa por percorrer o país.”
Como correu o concerto no Maria Matos?
Estava muito nervosa. Queria fazer uma coisa meio encenada, só que não há oportunidade de ensaiar na sala. Sinto que fiz aquele concerto para poder ter comigo os meus artistas preferidos. Tinha a responsabilidade de estar a fazer um concerto em nome próprio e a responsabilidade de cantar com os convidados de honra, mas acho que que correu bem. Sinto-me concretizada. Acho que o meu maior objetivo era mesmo sentir, fazer com que as pessoas sentissem que não era o meu concerto, mas que era o nosso, o nosso jantar.
A componente da imagem é algo muito forte para ti? Porque é visível na fotografia, nos vídeos.
É uma paixão. Sempre gostei muito da parte estética. Estou agora a trabalhar com o Du, que é o meu director criativo. A imagem é uma boa forma de completar a mensagem. No projecto inicial, eu e o Du decidimos que a imagem nunca seria sobre o corpo e que seria sempre uma desconstrução do corpo da mulher. Não queria que se visse nada, evitar a nudez e a forma do corpo. Agora talvez já queira sair daí e ir para algo mais sóbrio, sem muitos brilhos. Tenho um projeto muito giro com o Du, que é criar personagens, no fundo um bocadinho Cindy Sherman, pegar na minha imagem e tentar desconstruí-la até criar uma pessoa com a qual não me identifico. Fazer um pouco de desapego do ego, procurar novas pessoas que possam existir cá dentro, romanticamente falando.
Vais ao Primavera Sound.
Sim, estou muito nervosa. Será o primeiro grande festival que vou.
No mesmo palco tocará Lana del Rey, horas mais tarde da tua actuação.
Gosto muito do trabalho dela, ela é muito disruptiva. Sinto que ela lançou 2 discos em 2 dias [risos]. Foram dois anos. Gostei mesmo muito e até ouvi durante o processo de composição. É aquela artista que é transversal a várias fases da minha vida.
E depois será fazer estrada.
Sim, sou cada vez mais feliz ao vivo. Até mesmo mais do que em estúdio, que é um processo muito solitário. Gosto demasiado de pessoas para estar enfiada num estúdio, por isso estou ansiosa por percorrer o país.