Entrevista. Nuno Duarte: “Até há seis meses nem era escritor. Tive o atrevimento e correu bem”

por Magda Cruz,    27 Junho, 2025
Entrevista. Nuno Duarte: “Até há seis meses nem era escritor. Tive o atrevimento e correu bem”
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Nuno Duarte passou de desconhecido do público leitor a vencedor do Prémio LeYa. Em 2024, foi o escolhido pelo júri com o seu primeiro livro, “Pés de Barro”, em que ficciona a construção da Ponte sobre o Tejo – hoje Ponte 25 de Abril -, a partir de um pátio em Alcântara, onde vive Victor, que vem trabalhar na ponte, e Dália, a muda que cheira a chocolate.

A que chegou a ser Ponte Salazar era, para o escritor, o “símbolo máximo do Estado Novo”. E, nesta entrevista a Magda Cruz, deixa um ponto assente: não podia escrever um livro passado durante o Estado Novo que não batesse no regime. Nuno Duarte nasceu anos antes da Revolução dos Cravos, detesta a ditadura e sublinha que é um tempo a que não quer voltar, apesar de sentir algum saudosismo, nos dias de hoje, vindo de algumas pessoas.

Neste episódio do “Ponto Final, Parágrafo”, Nuno Duarte reflete sobre a importância do Prémio LeYa, sobre se tornar escritor e sobre como não sente pressão do mercado editorial para escrever um novo romance. Aliás, já escrevia o segundo livro quando nem sabia da atribuição do prémio, e ideias para três ou quatro livros não lhe faltam, garante.

Magda Cruz: Este seu “Pés de Barro” é livro fulgurante. É muitíssimo elogiado pelos leitores. Venceu o Prémio LeYa mais recente, o de 2024, entre centenas de submissões. A editora Maria do Rosário Pedreira diz que foi um ano de muitas boas submissões. A minha pergunta é: como é que vai fazer para escrever um segundo romance igualmente bom ou melhor?

Nuno Duarte: Já me fizeram essa provocação várias vezes. E eu respondo sempre mais ou menos da mesma maneira. Eu não me sinto minimamente preocupado ou pressionado a fazer o que quer que seja a seguir, porque a minha vida… Eu não escrevi a vida toda, eu sou designer de profissão, embora seja designer muito sofrível, e entrei na escrita há meia dúzia de anos. Há uns 15 anos, que foi quando eu comecei a tentar. E, portanto, aquilo que já consegui, com uma tentativa… concretizada [risos].

MC: Não foi uma tentativa falhada. É de facto um romance incrível.

ND: Se eu não conseguir mais nada a partir daqui, por mim está tudo bem. [risos]

MC: Essa é uma posição mesmo interessante. Assumindo que já escreve… Há aquela expressão de “escrever para a gaveta”. Chegando aqui, e sentindo que o Prémio LeYa às vezes até muda o rumo de alguns escritores. Passam a ser mais conhecidos. Mesmo com esse conhecimento por parte do público eleitor não há… Se calhar há vontade de escrever um segundo romance, mas já não há…

ND: Há imensa vontade de escrever um segundo, que por acaso até já está a ser escrito. Já estava a ser escrito quando fui surpreendido com o prémio, mas estará mais ou menos a meio. Agora deixei-o guardado porque agora, [há] Feira do Livro [de Lisboa], presenças nalguns sítios, a promoção do livro, que saiu há pouco tempo, há um mês. E, portanto, achei melhor parar um bocadinho. É a primeira vez que paro tanto tempo de escrever, porque normalmente escrevo todos os dias. E, portanto, não me faltam ideias. Se se eu agora fosse obrigado, se me apontassem uma pistola e tivesse de escrever dois ou três livros seguidos, eu já tinha ideias para dois ou três livros. Ou pelo menos princípios de ideias.

MC: Então não sente que o mercado literário lhe esteja a apontar essa arma à cabeça.

ND: Eu nem sei o que é isso do mercado literário. Eu até há seis meses… Agora dizem que eu sou escritor, não é? Eu também já digo, porque o Prémio LeYa permite-me dizer que sou escritor, mas eu até há seis meses nem sequer era escritor, não é? Era só publicitário e tive o atrevimentozito e que correu muito bem, correu muito melhor do que aquilo que eu esperava. [risos] Portanto, eu sou bocadinho estrangeiro, estranho numa terra estranha, para frasear um título de um livro. E estou a aprender como é que isto tudo funciona, se calhar por inconsciência, mas não sinto essa pressão.

MC: Isso é muito interessante, sentir-se… Houve uma altura que marca o antes e o depois de se sentir escritor.

ND: Sim, sim, sim.

MC: E mesmo a editora Maria do Rosário Pedreira teceu esses elogios ao livro e até disse na apresentação do livro «Este é o primeiro romance publicado de Nuno Duarte, mas muitos outros há de ter escrito para chegar a este nível de escrita». Ou seja, eu até acho que com alguém que escreve desta maneira só podemos querer ler mais.

ND: Ainda bem. Eu agradeço imenso esses elogios e, aliás, eu acho que tão espantado estive com a vitória no prémio LeYa, como estou com a reação que o livro está a ter. Se nunca esperei ganhar um prémio destes, se calhar ainda menos esperava que a reação, por um lado das pessoas, e essas eu vou tomando o pulso nas redes sociais, que é onde eu posso, e agora em dois ou três sítios onde vou. Depois há a reação das outras pessoas mais profissionais, digamos assim, dos críticos mais respeitáveis, que são opiniões mais…

MC: …mais trabalhadas, fundamentadas.

ND: Mais fundamentadas, pessoas que estão mais habituadas a ler com um espírito crítico mais apurado, são mais implacáveis, não é? E naturalmente menos generosos e ainda bem. E, portanto, essas reações também têm sido boas. Até agora, tudo tem corrido muito bem. É bocadinho aquela… Eu se não tivesse quase 52 anos, era capaz de ficar meio deslumbrado com isto tudo. A idade já me permite olhar para isto ainda com espanto, muito espanto, continuo a viver ainda sem perceber bem o que é está a acontecer. E muito agradecido por isto tudo.

MC: Estava a falar nisso e estava a lembrar-me do artigo que o crítico literário João Céu e Silva escreveu, que é um exemplo disso: tece elogios, mas fundamenta-os bem e é exemplo disso que tanto leitores como os críticos estão a gostar do livro.

ND: Não recebi muitas críticas oficiais, mas o Miguel Real também fez uma crítica simpática no Jornal de Letras. O João Céu e Silva. E depois tive algumas reações de pessoas que não sei se lhes chamamos críticos, mas são pessoas por quem eu tenho um profundo respeito. Por exemplo, o João de Melo, que por acaso tenho aqui um livro dele, por curiosidade, que é uma pessoa de uma generosidade…

MC: Colegas casa, da LeYa.

ND: Agora sim. Ele tem sido uma pessoa de uma enorme generosidade sempre que me vê e teve o cuidado de me enviar uma mensagem a dizer que tinha gostado muito do livro. E isso para mim tem valor acima de… sei lá. Assim como este fim de semana, tive uma pessoa. Eu estive em Marco de Canaveses, no festival literário de Marco de Canaveses, e foi lá uma pessoa de propósito para ouvir a conversa que eu ia ter com o João Tordo. Portanto, foi nos ouvir aos dois, mas fez não sei quantos quilómetros… Não sei se foi do Porto. Fez não sei quantos quilómetros só para falar de livros e para ouvir falar de livros. E isso é uma coisa absolutamente extraordinária porque eu continuo a ser a mesma pessoa que era dantes, e nunca ninguém tinha feito quilómetros para me ouvir falar de coisa nenhuma. [risos] Nem eu faço quilómetros para me ouvir falar de coisa nenhuma. Portanto, ter de repente pessoas que fazem um esforço.

MC: e esse leitor já tinha lido «Pés de Barro»?

ND: Sim, esse leitor fez uma crítica absolutamente elogiosa do livro numa página que tem, no Instagram, dedicada a livros. Ele é um leitor habitual. Esse e outros, mas esse eu sei que fez esses quilómetros de propósito, e eu acho que é uma coisa, é comovente, não é? Saber que uma pessoa se dá ao trabalho de ir fazer os quilómetros para ouvir este palerma. [Risos]

MC: Mas de certo modo esperava um público eleitor mais implacável?

ND: Esperava. Eu desejo que as pessoas sejam implacáveis porque eu já aprendi que quando me fazem críticas negativas, quando me picam de alguma forma, eu primeiro fico muito chateado e amuo e tal, mas depois vou para o meu canto a pensar no que é que aquela crítica quer efetivamente dizer. Pode ser só gratuita e nesse caso eu depois já tenho, acho eu, maturidade para ignorar, ou mesmo que seja gratuita se tiver algum fundo de verdade que eu possa melhorar a seguir, eu vou fazê-lo. Já tive, não lhes vou chamar críticas, mas já tive pelo menos uma nota de uma pessoa que me chamou a atenção de um erro que tem, um erro factual, de uma arma que era utilizada, que eu refiro que era uma e era outra. Esse tipo de coisas, então, eu agradeço muito. Agora, de facto, as reações têm sido todas muito boas, tirando aquelas pessoas que de certeza nem sequer leram o livro e que vão para o internet dizer mal, mas isso gente sabe que seja logo for [risos], há sempre duas ou três que, só porque sim, o livro ainda não tinha saído, já estavam a dizer que era o título era plágio…

MC: A sério? Não me cruzei com isso.

ND: Sim, mas isso é cómico.

MC: Eu gostei muito do título. João Céu e Silva revela que só se percebe o título lá para os finais, nessa busca pelo título que também alguns leitores fazem. E não é muito literal, é muito interessante.

ND: O título foi das últimas coisas a surgir. Tinha muitos [títulos], eram todos maus e isso arreliava-me imenso.

MC: Mas este título já foi assim para a submissão do prémio?

ND: Já, já. Eu até já tinha entregado, entre aspas, a duas ou três pessoas em quem confio para fazer uma leitura e tinha outro título qualquer. E este surgiu provavelmente numa das minhas corridas. Não fui atravessar a ponte, mas uma das minhas corridas. E eu não queria que coisa fosse literal e na verdade, sim, a expressão de «Pés de barro´» só aparece mesmo na penúltima frase do livro. Mas todo o livro é sobre isso, sobre um estado, um regime que todo ele estava assente em pés de barro. Não só a ponte. Saiu bem, por acaso acho que saiu bem. [risos] Quando lá cheguei, disse: «Pronto, era disto que eu estava à procura», porque de facto os títulos que eu tinha tinham todos a palavra «margem» e eram todos fraquitos.

MC: «Margem» que também é simbólico. É de onde partiam os navios para levar os nossos militares; é onde se passa a construção da ponte.

ND: Sim, interessava-me muito mais escrever sobre aquilo que está na margem do que propriamente sobre a parte técnica da ponte, e por isso é que o título andava sempre à volta da margem, a margem disto, a margem daquilo, mas os títulos eram assim, todos bocado «nho, nhós» [risos]. Ainda bem que apareceu este, porque este realmente acho que é um bom título.

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