Entrevista. Nuno Maulide: “Ser cientista é uma função de quão intensa e profunda é a sua curiosidade sobre o mundo que o rodeia”
Nuno Maulide é um químico e divulgador de ciência português. Nasceu em Lisboa e licenciou-se em Química pelo Instituto Superior Técnico. Trabalhou numa empresa em Basileia, na Suíça, em 2002, fez Erasmus em Louvain, na Bélgica, em 2003 e o mestrado em Química Molecular na École Polytechnique de Paris, em França, em 2004. Regressou à Bélgica onde obteve o seu doutoramento em Química Orgânica pela Universidade Católica de Louvain em 2007, passou pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde fez um pós-doc, e regressou à Europa em 2008 para liderar um grupo de investigação no Instituto Max-Planck für Kohlenforschung em Mülheim, na Alemanha. Desde 2013 que vive na Áustria e é Professor Catedrático de Química Orgânica na Universidade de Viena. Recebeu diversos prémios de reconhecimento internacional, sendo o mais recente o prémio norte-americano Arthur C. Cope, atribuído pela Sociedade Americana de Química (ACS) em 2024 pela primeira vez a um português.
Com raízes moçambicanas e são-tomenses, e com uma vasta experiência em centros de investigação de topo, Nuno Maulide acaba por ser um cidadão do mundo que nos leva ao que de melhor há no mundo da Química. Ao juntar à paixão que tem pela ciência, tem também o piano como outra das suas grandes paixões. O seu talento levou-o às fases finais de dois concursos internacionais de pianistas amadores, em Manchester (2012) e Paris (2013), tendo actuado em diversas salas de espetáculos. E foi a Sala Anton Zeilinger, na Academia Austríaca das Ciências (OAW), onde poderia dar um concerto de piano ou uma das suas cativantes palestras, que Nuno Maulide escolheu como local para nos conceder esta entrevista, a primeira feita pela Comunidade Cultura e Arte no âmbito internacional.
Esteve próximo de ingressar em Medicina, o seu talento para a música quase fez de si um pianista, mas foi na Química onde consumou toda a sua carreira profissional. Foi tudo um mero acaso, ou a Química era um talento que também tinha?
Sem dúvida que era uma paixão que já tinha. Não diria um talento porque nunca achei que fosse assim tão bom em Química. Tudo aquilo que nós fazemos resulta, de uma forma ou de outra, dos professores que temos. Se temos bons professores, se a pessoa gosta da maneira como o professor explica, gosta da disciplina em causa. Sempre tive bons professores de Química, apenas com uma ou outra rara excepção. Lembro-me que no meu primeiro teste de Físico-Química, que era só Química, tive 100%. Era uma coisa que não acontecia todos os dias.
Era uma disciplina que achava gira, mas nunca tinha pensado que me pudesse dedicar exclusivamente à Química. Vim parar à Química um bocadinho como aqueles pinballs, onde a bola bate de um lado, bate do outro, e de repente acaba num sítio onde ninguém esperava [risos].
Manteve sempre uma forte ligação ao piano, sendo esta uma das suas actividades fora do laboratório. Consegue encontrar algum paralelismo entre o laboratório de química e um concerto de piano ou de uma ópera?
Primeiro acho que tenho de corrigir porque desde que saí de Portugal, em 2002, até ter o meu primeiro emprego a sério no Max Planck, em 2009, não tive piano em casa. Vivi sempre em sítios pequenos, ou em quartinhos de estudos, e não tinha piano nem sequer acesso regular a nenhum um instrumento. Mas mantive sempre uma relação com o piano na medida em que sempre que passava perto de uma loja de música, e tinha um bocadinho de tempo, entrava e ficava lá duas horas a tocar. Ou se estava num evento em que havia um piano no canto, no final, quando toda a gente já se tinha ido embora, abria o piano e tocava. De facto, essa ligação permaneceu sempre.
Acho que o paralelismo existe mais entre aquilo que o performer tem de fazer quando dá um concerto para uma audiência e aquilo que um professor faz quando dá uma aula num auditório cheio de alunos, ou uma palestra numa conferência ou num congresso científico. Há uma noção de que é preciso manter as pessoas entretidas e é preciso contar uma história que faça sentido. É preciso trabalhar com o público de forma a que possa fazer parte do evento e não seja apenas um espectador passivo. É mais fácil de fazer isso quando se dá uma palestra porque usamos as palavras quando estamos mais móveis, do que quando estamos sentados com aquele mastodonte à nossa frente em que de facto estamos, do ponto de vista físico, mais imobilizados e mais estáticos.
Essa talvez seja a razão pela qual tinha começado a fazer concertos comentados, porque conseguia usar a palavra para transportar as pessoas para dentro da música antes de tocar. Fiz alguns desses concertos em Mülheim, para acções de beneficência para a UNICEF. As pessoas vinham de borla e recolhiam no final, numa caixinha , os donativos para a UNICEF. Isso permitia-me contar umas anedotas e umas histórias sobre aquilo que tocava. Depois a transição disso para o que faço atualmente foi um passo mais criativo. Foi transformar essas anedotas em algo ligado à ciência para, com isso, unir a ciência e a arte.
Acabou por se especializar em Química Orgânica e como estudante de licenciatura já era conhecido por ser um especialista e um entusiasta deste ramo. O que é que o levou a escolher esta área? Foi mais o laboratório e a complexidade de algumas das reações químicas ou foi, e voltando ao facto de ter interesse pela Medicina, pelo carbono ser um elemento profundamente ligado à vida no nosso planeta?
Nenhuma das duas. Digo sempre em entrevistas que foi o aspecto estético da Química Orgânica. O facto de ter de desenhar fórmulas, torna-a numa língua esteticamente muito aplicativa. É uma língua muito pessoal porque cada um desenha as moléculas à sua forma. Certas moléculas, muito complexas, que são objetos em três dimensões, também as vemos de uma maneira diferente dependendo da perspectiva. Há algo muito pessoal quando se olha para uma molécula complexa e a transpomos para uma estrutura de duas dimensões. Se olharmos de uma maneira temos uma determinada estrutura, mas se olharmos de outra maneira, a estrutura da molécula é completamente diferente.
Agora que estou a pensar nisso, e sendo um bocadinho mais honesto comigo mesmo, quando entrei no Técnico vinha de um ano passado na Escola Superior de Música de Lisboa a estudar Piano. Estive lá um ano e ao fim de seis meses percebi que não era aquilo que queria fazer a minha vida toda. Tinha ainda, quase por acaso, uma matrícula no Técnico, na Licenciatura em Química, que tinha simplesmente congelado. Aliás, a propósito disso, lembro-me de uma cena que sucedeu quando o meu pai foi lá fazer a matrícula e suspende-la, e voltou para casa bastante transtornado. O senhor do Técnico disse-lhe “Mas você quer suspender a matrícula? Nesta instituição?”. O meu pai disse, “Sim, o meu filho, vai fazer outra coisa”. “Mas o que é que ele pode fazer tão interessante que possa justificar suspender a matrícula no Técnico?”, isto, com uma fila de pessoas à espera e o homem a exaltar-se. O meu pai disse-lhe “O meu filho vai estudar Piano.” “O quê? Vai estudar música? Prefere estudar música do que vir para o Técnico? Realmente, esta juventude!”. O meu pai voltou para casa e disse-me que o homem fez ali um filme às minhas custas [risos].
Depois disso, lembrei-me que tinha aquela inscrição no Técnico e, sendo muito sincero, ainda pensei que podia voltar a tentar entrar em Medicina. Inscrevi-me para fazer os exames nacionais das disciplinas que precisava de melhorar, que era a Biologia e a Química, curiosamente. Estudei para os ditos, mas nunca os fiz. Achei que era muito trabalho e não tinha tempo suficiente nem cabeça para estudar. Tinha a minha entrada em Química e já tinha perdido de qualquer maneira a oportunidade de poder ser pianista. Tudo o resto era irrelevante, se era Química, se era Medicina, se era o que fosse. Com 18 anos, a pessoa quando cai do céu, das suas lofty aspirations, dos seus sonhos, dizer que vai ser pianista e de repente percebe que afinal de contas não era aquilo que queria, tudo o resto é irrelevante. Tinha de conseguir arranjar um emprego e trabalhar das nove às cinco como toda a gente fazia. Se as pessoas sobrevivem assim, eu também conseguiria. Portanto, se for Química, é Química, e não vou estar agora a estudar e a fazer mais exames.
Entrei em Química e gostei muito de estar de volta às aulas normais, porque uma das coisas que me faltou nas classes de música foi não ter esta ocupação. O facto das pessoas não terem uma ocupação mental, às vezes dá aso a muito disparate [risos]. Foi bom voltar a ter aquela ocupação. As aulas começavam às oito, depois vinha a pausa para o almoço, depois vinha a aula Laboratórios à tarde, e isso fez-me bem. Fez-me bem estar de volta a anfiteatros cheios de gente, porque o trabalho na música é estar muito sozinho com o seu instrumento. Para uma pessoa como eu, isso não era bom. E depois comecei a ver algumas disciplinas que me atraíram. Em Introdução à Química-Física, por exemplo, o professor era bom e a disciplina era gira. Por mim, teria feito Química-Física durante o resto da minha vida.
A Química Orgânica, de facto, chamou-me à atenção quando, na primeira aula, o Professor Horácio Novais começou a desenhar no quadro e eu achei que havia ali algo de estético. Fiz os exames todos no primeiro semestre e tive muito boas notas, tudo entre 17 e 19. Não tive nenhum 20, mas estive lá perto. Depois, cheguei à Química Orgânica, e estudei como fazia para as outras cadeiras. Quando fiz o primeiro teste pensava que ia ter um 18 ou um 19, porque achava que tinha respondido tudo certo. Quando saiu a nota era afinal um 15. Não é má nota, mas pensei logo “O que é que aconteceu aqui?”. Fui à revisão de prova e depois vi que eles tinham descontado montes de pontos em coisas que estavam per se corretas mas, formalmente, incorretas. Faltava ali uma carga, faltavam ali dois eletrões, havia uma seta que não estava no sítio certo, etc. Fiquei mesmo a ferver! Disse-lhes logo “Mas como é que descontaram pontos aqui? Vocês são mesmo chatos na Química Orgânica!” [risos] E eles “Não. Você tem de responder às coisas de maneira precisa e correta, porque é assim que a gente vos ensina”. Depois disse para comigo “Ai, é? Então, esperem aí que já vão ver!” [risos].
Fiquei espicaçado e comecei a estudar Química Orgânica todos os dias. Percebi que era uma cadeira que requeria mais estudo para perceber aqueles pontinhos todos que os professores queriam nos exames. Depois lá acabei por conseguir ter 20 no final. Ao estudar uma cadeira destas todos os dias, a pessoa ou detesta ou começa a ganhar um certo apego à coisa. Acho que foi isso. O facto de os químicos orgânicos terem um formalismo e uma linguagem que é tão específica e que tem de ser reproduzida com tanto cuidado, fez com que me tivesse de dedicar mais. A minha irmã conta que, para os exames finais na Química Orgânica, estudava tantas horas que adormecia no sofá e falava durante o sono. Começava a dizer coisas como “o aldeído e aquela cetona vão reagir e vão fazer isto…” [risos]. Acho que talvez tenha sido um bocadinho isto. Espicaçaram-me de tal forma que me provocaram a fazer algo que depois me levou a adorar aquela área e aquela disciplina como ainda adoro hoje.
Deixou o seu país de origem com 22 anos, passou por vários outros onde fez Erasmus, mestrado, doutoramento e pós-doutoramento até ter assentado em Viena. Está bastante próximo de ultrapassar o tempo que passou no estrangeiro com aquele que passou no seu país de origem. Já pensava em querer seguir uma carreira internacional deste calibre e passar por tantos sítios onde até agora passou?
Não, de todo. É verdade que este ano faz o fifty-fitty, metade da minha vida passada em Portugal e a outra metade passada fora. Mas não, não fazia ideia. Até porque quando a pessoa cresce naquele ambiente em Portugal imagina como é que poderia ser grande ali. Não imaginava poder ser grande num ambiente ou num contexto que não conhecesse. Tinha muito a ideia de, eventualmente, chegar a Professor Catedrático. Mas isso seria no Técnico, ou na Faculdade de Ciências, ou num ambiente qualquer em Portugal, mas nunca no estrangeiro. Nunca pensei que pudesse viver tanto tempo no estrangeiro.
E ter assumido a Cátedra de Química Orgânica na Universidade de Viena quando tinha apenas 33 anos foi na altura uma responsabilidade enorme para si?
Não, eu achava era que já me deviam ter recrutado antes [risos]! Isto pode soar a arrogante, mas quando concorri achei que estava mais que preparado para dar aquele salto. O Leitmotiv [Motivo Condutor] da minha vida é este, sempre que faço uma transição para um passo seguinte faço porque acho que já estou pronto. Tornei-me líder de um grupo de investigação no Max Planck ia fazer 29 anos. Estava há três meses no meu pós-doc em Standford e mandei currículo para lá, e fui chamado à entrevista. O Max Planck faz uma coisa em que todas as ciências naturais e tecnologias têm a entrevista todos juntos. Convidam as pessoas todas e dizem “Se não achámos que nenhum dos candidatos é suficientemente bom, ninguém ganha um lugar na entrevista. Se vocês forem todos bons, todos ganham”. Nenhum de nós estava a concorrer uns com os outros, mas sim connosco próprios. É um sistema que acho interessante.
Esta é uma história que não costumo contar. Havia um simpósio com todos os candidatos que durava uns três dias. Estávamos todos juntos à mesa ao almoço e ao jantar. Antes do primeiro almoço pediram a cada um de nós que se apresentasse, que dissesse o que andávamos a fazer, de que área éramos, de que sítio vínhamos. E comecei a ouvir os outros a dizer que já estavam há quatro anos a fazer pós-doc, ou que estavam no seu segundo ou terceiro pós-doc, e que fizeram pós-doc aqui e ali. Chegou a minha vez e disse “Comecei a fazer pós-doc em Stanford há 3 meses”. E houve alguém que disse “O quê? Ainda não terminaste sequer o teu primeiro pós-doc e estás aqui?” [risos]. Fez-me também um comentário a dizer que era muito novo. E pensei, “Na tua opinião sim, mas para mim estou mais que preparado” [risos]. É interessante porque tinha acabado de começar o pós-doc e na minha cabeça aquilo já chegava. Estava já na hora de pegar na minha própria equipa e de ser a liderar, porque sabia mesmo como é que queria fazer. Não tinha respostas para tudo, mas sabia como queria fazer.
A mesma coisa aconteceu com a Universidade de Viena. Cheguei à entrevista e houve umas pessoas que me disseram que era muito novo e porquê é que haveriam de oferecer um lugar tão bom a alguém tão novo. Ocorreu-me mais ou menos aquele pensamento da Química Orgânica quando era aluno, “Esperem aí que já vão ver” [risos]. E alguns anos depois reencontrei algumas dessas pessoas e perguntei “Ainda acham espantoso?”, e responderam-me “Ah não. De facto, tinhas razão”. Já me poderiam ter recrutado em 2011 ou 2012, quando tinha começado a concorrer a outras coisas. Estava já mais que pronto para a próxima etapa [risos].
O facto da Áustria ser um país ligado a grandes compositores da música clássica teve influência na sua escolha?
Não, de todo. O meu pai disse-me “Sim, sim, escolheste o sítio certo porque tem que ver contigo.” Não! Se fosse a Universidade de Timbuktu no Mali eu tinha ido para Timbuktu. Porque o que eles [Universidade de Viena] puseram em cima da mesa foi um pacote de condições, com recursos abundantes, autênticos mundos e fundos para fazer investigação. Olhei para aquilo e, em comparação com as outras ofertas que tinha, esta era de longe a melhor. Se tivesse sido a Universidade numa outra cidade de um outro país, tinha ido para esse sítio com essas mesmas condições. Claro que depois é bonito estar numa cidade com música, mas não foi de todo por causa da música que escolhi Viena.
Tornou-se apenas o segundo professor de etnia africana em mais de seis séculos de existência da Universidade de Viena, pois é filho de pai moçambicano e de mãe são-tomense. Existe ainda alguma predominância da segregação racial no meio académico? Ainda faltam role models [modelos de exemplo] para que isto seja de facto melhorado?
Tornei-me no segundo professor por um mês de diferença. O outro professor, que é de estudos africanos, começou em Setembro e comecei em Outubto. Acho que o problema é mesmo a falta role models. Vamos ser sinceros, a xenofobia na Austria é algo que está no dia-a-dia. Mas uma coisa pouco popular que agora vou dizer é que muitas das vezes está na cabeça de cada um. Se quando alguém olha de lado ou quando alguém faz um comentário que pode ser interpretado como backhanded [depreciativo], se na minha cabeça automaticamente interpretar logo que é porque ser preto, então também não vou chegar longe da minha vida.
Conto sempre uma história. Havia uma altura em que ia ao ginásio de metro, de manhã cedo. Aos sábados, por exemplo, apanhamos aquelas pessoas que foram às festas do dia anterior e estão a regressar já com os copos. É típico aparecer alguém a dizer “vai mas é para a tua casa”. E na minha cabeça a única resposta que me ocorria é “Sim, sim, eu saio já daqui a duas paragens. Moro ali na Zimmermannplatz” [risos]. Mas os meus alunos também o ouvem coisas semelhantes muitas vezes. Não me ocorreu naquele momento levar para uma ofensa, de dizer que a pessoa me estava a ofender por eu ser de pele escura. Por isso é que eu digo que muitas vezes está muito na cabeça da pessoa.
Lembro-me que, quando estava no terceiro ano no Técnico, ter chegado atrasado a uma aula de Química Analítica. E eu entrei, fui-me sentar, e pedi desculpa à professora pelo atraso. Ela respondeu, “Tudo bem, Nuno. Pode sentar-se aqui”. A primeira coisa que me ocorreu foi que era bom ser o único de pele escura na turma porque os professores lembravam-se mais facilmente de mim [risos]. A professora Margarida Salema uma vez ficou mortificada. Ela dava aulas práticas de Química dos Elementos e andava sempre com o giz a explicar-nos as coisas. Era muito engraçada, riamo-nos muito com ela. Uma vez ela veio ter comigo com as mãos cheias de giz, a explicar-me umas coisas, e acabou por tocar na minha mão. E eu disse-lhe “Essas dedadas de giz é que se dispensavam”. E ela respondeu “Se não fosses tão escurinho, não se notavam”. E rimos todos! No final da aula veio ter comigo e disse-me “Peço imensa desculpa, Nuno! Não quis que me interpretasse dessa maneira”. E respondi-lhe “Mas porquê? Não tem de pedir desculpa!” [risos].
Obviamente que com isto que estou a dizer não estou a querer minimizar casos de racismo e de violência. Não quero de todo fazer um whitewashing nem minimizar isso. Mas também tem um bocadinho que ver com aquilo que a pessoa mete na cabeça. Por isso é que os role models são muito importantes. Há aí muito miúdo que na sua cabeça acha que “Nem sequer posso pensar um dia ser Professor Catedrático porque isso não é para mim”. A minha mãe costumava dizer-me “Contigo é tudo sempre muito perigoso porque tu não tens limites”. Acho que com isto ela queria dizer que não havia na minha cabeça nada de sistémico que me impossibilitasse o que quer que seja. Imaginava-me, sem problemas, como Presidente da República ou como Primeiro-Ministro. Tal como imagino muitas vezes poder vir a ser um dia Reitor da Universidade de Viena. Ou como me imagino estar um dia sentado na cadeira do Elon Musk ou do Steve Jobs. Porque não? Porque na minha cabeça não há nada que aquelas pessoas tenham que eu não tenha já, ou que não possa vir a ter.
Isso também tem um pouco que ver com os meus pais, eles nunca me limitaram. A minha mãe também me dizia muitas vezes “Tu deves achar que és branco!”, porque de facto na minha cabeça nunca me vi como aluno como diferente dos outros em termos de algo tão físico, tão óbvio. Para mim eu era apenas mais um daqueles alunos que fazia o melhor para ser o melhor. Por isso, nunca houve na minha cabeça uma barreira sistémica como provavelmente haverá, infelizmente, na cabeça de algumas crianças de minorias étnicas.
Apesar de tudo isso, a Áustria é um país onde se sente realizado em termos profissionais. Consegue facilmente consolidar o seu trabalho de investigação, com as aulas, com as parcerias com empresas e com actividades de divulgação? Isto porque também tem parecerias com empresas, foi por exemplo co-fundador da Spartax Chemicals, em Portugal.
Sim, e queira fazer muito mais! Se houvesse mais tempo e se os dias esticassem [risos]. Não há objeções nenhumas a fazer aquilo que faço. E mesmo que alguém tenha, passa-se por cima [risos].
A Áustria é também um exemplo de investimento público na ciência, cerca de 3% do PIB, acima da média da União Europeia. Portugal tem um investimento de apenas 1,6%, apesar dos últimos dados do Eurobarómetro mostrarem que os portugueses são o povo europeu que mais confia na ciência. Como olha para a situação da ciência em Portugal numa altura em que se prevê um corte de 68 milhões de euros à principal entidade financiadora da investigação científica (FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia)?
Sei disso muito bem porque na altura o Ministro da Ciência austríaco tinha um fetiche pela comunicação de ciência. Eu disse que ele tinha de ir a Portugal falar com a Rosalia Vargas do Ciência Viva para perceber como é que eles fizeram aquele milagre lá. Eu coordenei essa visita oficial do Ministro da Ciência da Áustria a Portugal e fui na comitiva com ele. Passámos lá dois dias a ver os centros do Ciência Viva e a falar com a Rosalia. Foi uma coisa que me deu muito orgulho, por o meu país conseguir servir de exemplo para um outro país.
Vou ser muito sincero. Sim, o dinheiro é importante. Mas mais importante do que o dinheiro é a forma como o dinheiro é usado. Aqui na Áustria quando se usa a narrativa de que “se nós tivéssemos mais dinheiro é que era!” é o primeiro sinal de que algo está errado. Porque é possível sempre fazer muito mais com o dinheiro que se tem. A Áustria tem muitos problemas de corrupção no seu meio académico, em que o dinheiro é muito mal utilizado, muito mal entregue e sofre muito da política de amigo-amigo. O que é espantoso quando imaginamos um país onde há tanto investimento. Mas não. É um país onde por alguma razão tem mais dinheiro, mas não é por isso que fazem melhor.
Não é impossível para Portugal, com os seus 1,6%, fazer algumas coisas melhor do que actualmente. No outro dia falei com alguém que insistiu em vir falar comigo a explicar que tinha na cabeça um plano de como é que a investigação em Portugal, com o dinheiro que existe atualmente, podia ser catapultada para níveis muito superiores. Por exemplo, como é que é possível a FCT, com mais ou com menos 68 milhões de euros, não ter calls regulares para projectos de investigação? Como é possível haver investigadores que não sabem quando uma call começa, se vai haver uma ou se vão existir duas, quando é que é a deadline, quais são as regras, etc. Aqui, por exemplo, posso submeter um projecto a qualquer altura do ano. Como é que a FCT não tem procedimentos semelhantes ao das grandes entidades financeiras de investigação da Europa para a gestão de carreira ou para a gestão de projetos? São coisas que não seriam difíceis de resolver e que não iriam necessariamente custar mais dinheiro. Bem pelo contrário, deveriam até promover uma melhor utilização dos recursos. Quando falei com esta pessoa disse-lhe, “Você é que devia ser presidente da FCT!” [risos]. Ou então devíamos os dois, em conjunto, fazer um plano e entregar a quem direito. Mas depois penso nisso e, tal como diria a minha mãe, “Isso é sarna para me coçar” [risos].
Acho que estes lugares de gestão são um bocadinho ingratos. Por exemplo, o Barack Obama antes de ser Presidente dos Estados Unidos era um tipo novinho. Depois de oito anos como Presidente dos Estados Unidos, tornou-se o avô do Barack. Não é o pai, é o avô do Barack Obama [risos]! Estes empregos têm muito stress associado. Ele fez o melhor que pode e metade do país acha que ele foi o Anticristo. Para quê? Envelheceu, e se calhar era capaz de ter ficado com aquele aspecto jovial por mais vinte anos. Mas envelheceu de uma maneira… E sabe Deus que os problemas de saúde que ele terá tido como consequências daquilo. Para quê? Sim, para poder dizer que foi o primeiro Presidente dos Estados Unidos afro-americano. E isso foi óptimo! Espero é que não morra mais cedo por causa disso.
O meu predecessor, Johann Mulzer, era um dos melhores químicos orgânicos da Europa. Era até conhecido nos Estados Unidos e é raro haver químicos orgânicos europeus conhecidos nos Estados Unidos porque só que eles é que existem e não há nada mais. Uma pessoa quando vai lá e diz de onde vem ou quem trabalha, ninguém conhece. Mas o Johann Mulzer era muito conhecido nos Estados Unidos. Reformou-se em 2012 e fui sucessor dele em 2013. Ao fim de alguns anos, os meus alunos vinham-me dizer que havia um velho de sobretudo, que andava a passear pelos corredores, e que lhes metia um bocado de medo. E dizia: “Mas vocês não sabem quem é? É o Mulzer! O Mulzer que fez a síntese total daquele composto!” E os alunos “Ah, não sabíamos”. A pessoa que era o chefe, o rei naquela universidade tornou-se num velho wandering, a passear pelos corredores. E toda uma geração passou sem saber quem era Mulzer. Dá que pensar. As pessoas no máximo dos máximos ficam, perpetuam o seu legado com outros a contar várias histórias. O Johann Mulzer matou-se a trabalhar para isso, e sabe Deus se realmente valeu a pena.
Para além da sua actividade enquanto cientista e professor de Química, o público em geral vê-lo como um comunicador e divulgador de ciência quer em Portugal quer também na Áustria. Ganhou em 2019 o Prémio de Cientista do Ano na Áustria, não pela sua actividade de investigação, mas sim a sua actividade como comunicador e divulgador de ciência. Sente que é mais fácil levar a ciência ao público português do que ao público austríaco?
O público português é de facto o público que reage mais. Recebo muitas mensagens de Portugal, demonstrações de afeto que me deixam sempre banzado. No outro dia apareceu uma senhora que veio de propósito a Viena de férias, com a filha, e veio bater-me à porta para me entregar uma aguarela feita por ela. Quando alguém me bate à porta do gabinete, por norma são alunos, ou a senhora da limpeza, ou a Amazon que me vem entregar qualquer coisa [risos]. Lembro-me que esta pessoa só bateu à porta uma vez, sem grande insistência. Abri e a senhora disse-me “É o Professor Nuno Maulide? Tenho uma coisa para si.” Recebi das mãos dela um envelope. Ao início fez-me lembrar aquelas cenas dos Estados Unidos em que eles entregam os papeis de divórcio e dizem “you have been served” [risos]. Comecei a abrir e a senhora estava com um sorriso tão grande… “Ah, é você!”, disse eu, “Você pintou isto! Eu lembro-me de ver no Instagram! Mas o que é que está aqui a fazer?”. A senhora respondeu, “Lembro-me de uma vez ter postado a fotografia da sua entrada do seu edifício e foi fácil encontrá-lo!” [risos].
Quando uma vez fui à praia de Vilamoura, em Abril, o tempo já estava razoavelmente bom. A minha mulher e a mãe foram passear um bocadinho à beira-mar e eu preferi ficar deitado ao sol. Quando estava deitado, apareceram duas crianças e perguntram-me “É o professor Nuno?”. A mãe das crianças veio a correr, a dizer “Desculpe, desculpe! Peço imensa desculpa!”. Depois disse-me que as crianças andavam a seguir-me já há vários metros e que lhes tinha dito “Não é nada o Professor Nuno! O Professor Nuno vive na Áustria e nós estamos no Algarve”. Quando se apercebeu que era mesmo eu disse-me “Eles são os seus maiores fãs, vêem-no televisão!” Isto passou-se em Abril, na praia, onde não estava mais ninguém e estava só eu deitado na minha toalha. Quando a minha mulher e a mãe dela voltaram e eu disse-lhes, “Vocês nem conseguem imaginar o que aconteceu!” [risos]. E de facto, eu também não queria acreditar. São estes momentos que deixam uma pessoa um bocadinho embasbacada.
O facto de usar, por exemplo, o Instagram para comunicar ciência e participar em vários podcasts de diferentes temáticas e contextos é uma maneira de estar mais ligado ao público jovem?
Sim, porque acho que a comunicação de ciência é muito parecida com o ensino. O que que realmente me anima, desde pequeno, é o enorme prazer que tenho em conseguir explicar alguma coisa difícil de maneira simples, acessível e até divertida. E vejo do outro lado aquela cara de espanto ao dizerem “Ah, é isso!”. Quando explico à senhora da limpeza que há uma razão pela qual ela pode pôr o sal quando a água já está a ferver e não antes, ou então como é que ela pode cortar as cebolas sem chorar. Não preciso de explicar qual é o composto químico envolvido, explico só assim uma maneira mais ou menos pictórica e vejo a cara dela a dizer “Ah, não sabia. vou já experimentar!”. É daquelas coisas que aquecem a alma.
Acho que as redes sociais, em particular o Instagram, prestam-se muito bem a isso. E acabou por ser uma coisa que me deixou também um bocadinho viciado, em gravar vídeos para o Instagram. Mas gravo sem condições nenhumas. As pessoas, em geral, têm aquelas luzes e aqueles planos. Eu ponho o telemóvel à minha frente no meu gabinete, sento-me na na cadeira e gravo [risos]. Mas não é algo autêntico, não é manufactured.
Tem dois livros feitos para o público português e publicados pela Editora Planeta. O primeiro “Como Transformar Ar em Pão” e o segundo “Com Desvendar o Quebra-Cabeças da Origem da Vida”. No primeiro acaba por escrever crónicas de Química, dividida em vários capítulos onde aborda diversos temas relativos à Química. No segundo responde gradualmente a 27 das muitas questões que lhe chegaram ao mail, com fundamentos e pressupostos de Química, até chegar à pergunta final que dá o título ao livro. Foi fácil arquitectar estes dois livros?
O primeiro foi, porque tinha estas ideias todas na cabeça. Uma espécie de crónicas da Química que gostava de as condensar em forma de livro. De facto, foi um livro que se escreveu bem porque apresento aquilo que é no fundo a minha visão da Química. Já para o Segundo livro, andei ali muito tempo à procura de como é que eu poderia fazer. Foi a editora que teve a ideia pelo facto de eu receber tantos mails e mensagens de pessoas a colocarem-me perguntas. E as pessoas têm montes de ideias dentro da gaveta e nunca tiveram com quem as pudessem partilhar. Uma vez perguntaram-me “Olhe, já pensou como as sequoias gigantes transportam água a centenas de metros de altura? Porquê é que não poderíamos copiar esse mecanismo de transporte de água em arranha-céus?” As pessoas de facto pensam em coisas fantásticas.
É por isso que digo sempre que os portugueses têm muito desta apetência científica e se calhar é porque o Eurobarómetro está onde está. Sem saberem que estão a fazer ciência, mas mais naquela do engenhocas, e de pensar como é que isto é pode ser assim e não de outra maneira, e que é mais científico do muitas coisas que se fazem em laboratórios. No fundo, ser cientista não é uma função de que curso se tirou ou o que é que se estudou na universidade. É uma função de quão intensa e profunda é a sua curiosidade sobre o mundo que o rodeia. Permite a pessoas que, não tendo relação científica nenhuma, possam colocar perguntas que são, na minha opinião, mais científicas do que muitas que aparentam sê-lo.
Tem outro livro em mente, ou na iminência de ser lançado?
Estou a tentar escrever o terceiro, mas está difícil de conseguir acabar [risos].
Acabou por se tornar no principal rosto da Química em Portugal e consideram-no como “O Cristiano Ronaldo da Química”. Sente-se que acaba por ser uma espécie de embaixador da Química ao promovê-la e esclarecer os portugueses sobre as inúmeras dúvidas e receios que têm sobre a Química?
Sem o saber e sem nunca ter esse desígnio, acredito que sim. E é um grande orgulho e uma grande honra para mim.
Já que o comparam ao Cristiano Ronaldo acredita que já tenha nascido o jogador a quem vão apelidar por “O Nuno Maulide do futebol”?
Isso seria muito bom [risos]! Nunca tinha pensado nisso, mas no dia em que isso acontecer reformo-me logo [risos]! É engraçado porque quando estava a crescer, tinha um fascínio pela ideia de poder vir a ser treinador de futebol. E quando apareceu o Mourinho, eu sempre pensei que aquele era eu, que ia começar no União de Leiria até chegar a um colosso. Porque tinha tudo na cabeça, como é que se modificava o treino, como é que se modificavam as metodologias. Nos bons tempos do Mourinho ele era tecnicamente excelente. Depois, provavelmente, cansou-se do ser tecnicamente excelente, porque é difícil estar sempre no topo e estar sempre a inovar. Se calhar achou que não era preciso, que bastava ser só ele. Isso é a pior coisa que pode acontecer a alguém que é muito bom naquilo que faz. É achar que basta ser só ele, que corre sempre bem.
Há quem ache que ele fez um pacto com o diabo a certa altura [risos]. Porque a maneira como ele ganha aquela Champions League com o Inter, parece que houve ali alguma energia muito escura. Aquele jogo com o Barcelona, poder-se-ia repetir 20 vezes que não haveria meio de ele voltar a ganhar uma única vez [risos]. Foi já o começo de achar que “Vou levar a minha ideologia até ao extremo e vocês vão ver que ainda assim ganho”. Na altura ele ainda estava dentro daquela ideologia, portanto era tecnicamente orientado. Depois passou a ser só o culto da figura e tenho muita pena porque ele era mesmo muito bom.
Gostava muito de ter sido treinador de futebol, até porque acho que para se ser treinador de futebol tem de ser muito pedagogo e há uma analogia muito forte com aquilo que faço. No meu grupo de investigação, acabo por ter pessoas que têm sempre as mesmas idades. Quase todos os grupos de investigação têm essa parte interessante em que o Professor vai ficando mais velho, assim como a secretária ou o técnico de laboratório que têm contratos permanentes. Mas a idade média dos membros do grupo é sempre a mesma. São sempre pessoas que estão a fazer doutoramento, começam logo quando a licenciatura acaba. Portanto, estão entre os 22 e os 30 anos que é quando estão a fazer os pós-docs. E são sempre pessoas daquela faixa etária. Por isso, a pessoa está sempre a lidar com um certo grupo de uma certa mentalidade, uma certa maneira de estar, um grupo etário que é mais ou menos igual ao de uma equipa de futebol. Também há pessoas mais novas, os alunos que estão a fazer estágios ou teses de mestrado. Uma pessoa repara que o mais difícil nem sequer é que eles tenham ideias boas para trabalhar, ou que eles tenham boas condições, ou que eles tenham uma boa supervisão técnica. O mais importante é conseguir que aquelas pessoas não se matem umas às outras. E que aqueles egos todos consigam minimamente coexistir. Que toda a gente se sinta que um special one para o treinador, que sou eu.
É importante também que o treinador não dê atenção indevida mais a uns do que a outros. Que o treinador perceba que eles são todos muito bons, mas não precisam todos da mesma coisa. Há alguns que precisam mais de afecto, há outros que precisam mais de orientação, há uns que às vezes precisam de levar mais no toutiço. Cada um é como é, e a gestão dos egos e das personalidades é quase mais difícil do que a gestão científica do ir tentar isto, e se não resultar, tentamos aquilo, tendo sempre ideias novas. Vejo muitos paralelismos entre aquilo que faço e o que eu treinador de futebol faz. Eu já disse isto, numa entrevista aqui na Áustria, que se algum clube de futebol estivesse interessado estaria disponível [risos]. O problema é que já há muito tempo que não sigo futebol. Mas houve uma altura que seguia tudo o que eram os jogos de futebol e também o Football Manager. Estava em cima do acontecimento.
No plano profissional, o ano de 2024 foi recheado de títulos como as recentes publicações na Nature e na Science e a conquista de mais uma bolsa ERC [European Research Council], a terceira da sua carreira. Foi também reconhecido o prémio Arthur C. Cope, da Sociedade Americana de Química (ACS), sendo o primeiro português a receber este prémio. Este ano foi um dos mais bem-sucedidos que teve na sua carreira enquanto químico?
É verdade. Acho que 2013 talvez tenha sido um ano parecido com este. E foi na altura em que eu achei que devia sair do Max Planck. Depois da vinda para Viena, passámos três anos até conseguir recuperar mais ou menos a mesma engrenagem. Então é agora que alcanço a pergunta, “Será que está na altura de sairmos e irmos para outro sítio ainda maior do que a Universidade de Viena?”. Já andávamos a preparar-nos desde 2019, 2020, para este ritmo de cruzeiro em que estamos agora. Temos neste momento uma estrutura no grupo que funciona muito bem.
Agora, com as miúdas em casa, com pouco sono e com pouquíssimo tempo, acabei por muito mais eficiente durante este ano. Os artigos que escrevemos são os alunos que escrevem. Depois tenho que corrigir, e corrigir, e corrigir outra vez. E depois também tenho que os submeter. Entrei num ritmo de eficiência tão grande que este foi o ano em que publicámos mais artigos. Chegámos lá porque na minha cabeça, com sono ou sem sono, com tempo ou sem tempo, todas as semanas tinha de se corrigir e de se submeter um artigo. O resto, anda como anda, mas não podia passar uma semana sem se submeter um artigo. São cerca de 50 semanas, há artigos que às vezes vêm rejeitados, tem de dar-se a volta e fazer muito mais. Mas realmente, em 50% das semanas conseguimos publicar um artigo. O que não é nada mau.
No plano pessoal, este foi um ano ainda mais especial pois foi pai de duas meninas gémeas. De todas as experiências que teve na vida, na música e no laboratório, esta está a ser a maior de todas que teve até hoje?
É, é de facto tremendo. A pessoa percebe que ali não conta nada daquilo que tem. Se tem mais dinheiro ou se tem menos dinheiro. Se tem mais prémios ou se tem menos prémios. Se tem mais artigos, ou se tem menos artigos. Aquelas crianças são máquinas emocionais que reagem imediatamente a mudanças emocionais. Elas ensinam-nos coisas quando ninguém está totalmente desperto do seu lado emocional. Não é fácil. E se uma pessoa quer ser eficiente, com pouco tempo para trabalhar, não pode estar sempre a pensar “Agora tenho que fazer assim, agora tenho que fazer assado, agora tenho que fazer assim…”. Mas com as bebés, elas reagem de maneira que imediatamente nos levam para outro patamar. Elas acabam por nos abrir os olhos, e acho isso muito humbling. Porque isso reduz-nos todos ao mesmo tipo, à nivelação zero, quando apenas estão lá as emoções. O resto fica lá fora, deixamos no trabalho se quisermos. Pode ter importância para outras pessoas lá fora, mas não é de todo importante.
A nossa nanny disse-me no outro dia, “Nuno, descobri no Google que tu és muito famoso. Tens uma página no Instagram, tens uma página na Wikipedia, ganhaste muitos prémios, e aqui em casa és só um pai. E estas meninas nem sabem que quando te mordam ou quando vomitam em cima de ti, estão a fazer em cima do Nuno Maulide” [risos]. E no fundo, sou só isso mesmo. Sou apenas um pai que está ali.
Isso também modificou também a sua maneira de ver o mundo como cidadão e também como químico?
Claro que sim. Foi aí percebi que, para que é que a pessoa anda a matar-se para chegar a lugares de responsabilidade e gestão, quando na verdade o sumo da vida é isto? É interagir com as bebés, não dormir, ser vomitado em cima, e ser mordido, agora que já têm dentinhos [risos].
E como é que olha para o futuro da Ciência quando, tanto os Prémios Nobel da Química e da Física deste ano, foram atribuídos a cientistas que promoveram os avanços de ferramentas de inteligência artificial na sua investigação?
Neste momento não consigo imaginar a inteligência artificial como uma inteligência. Parece algo muito artificial, mas que funciona bem com supervisão. Aliás, a inteligência artificial para mim é uma maneira de nos libertar de fazer certas coisas em que perdíamos demasiado tempo para a importância que a tarefa realmente tem. Isto é, pode ajudar a que tenhamos mais tempo para nos dedicarmos a outras coisas. Havia quem dissesse que qualquer dia teríamos robôs a fazer sínteses. Isso era da maneira que poderíamos utilizar os nossos recursos mentais para aquilo que realmente é difícil, e que os robôs não conseguem, que é a criatividade e coisas que saem do zero.
Às vezes peço ao ChatGPT, “Propõe-me uma coisa criativa”. E ele põe uns disparates quaisquer e digo “Não, quero uma coisa mesmo criativa”. E volta a fazer o mesmo. Aí eu digo: “Mas não és capaz de propor uma coisa criativa como deve ser?” [risos]. E pronto, ele lá sai com uma. Mas não tem muita necessidade de ter ideias out of the box. O que ele faz bem é, se a gente lhe dá as nossas ideias out of the box, ele consegue mais facilmente trabalhar em torno disso e ganhamos tempo. Acho que a inteligência artificial, tal como está neste momento, é um grande time-saver. Se for bem utilizada e se assim se mantiver.
Às vezes, há pessoas que me escrevem e-mails que olho e penso “Isto não foste tu que escreveste” [risos]. Quando uma pessoa trabalha um bocadinho com estas ferramentas começa a perceber que elas têm o mesmo estilo de escrita. Há algumas pessoas que podem sentir-se desrespeitadas ou ofendidas quando isto lhes acontece. Eu não. É sinal que a pessoa do outro lado me respeita o suficiente para querer escrever uma coisa que saiba que formalmente não terá erros. Por isso, não levo isso a mal. Se um técnico que é da Síria e que eu sei que luta com o alemão porque não é a língua materna, mas escreve um e-mail que vejo imediatamente que está demasiado bem escrito, é sinal de que ele se preocupou com a qualidade do seu e-mail. Acho que isso é uma grande prova de respeito que se tem pelo outro.
Já que estamos a falar no futuro, é possível um regresso definitivo a Portugal nos próximos anos?
Sim, mas só nas condições certas. Se pensarmos só em dinheiro não há nenhuma universidade em Portugal que consiga fazer um match com a Universidade de Viena nesse aspecto. Mas há muitas outras coisas que poderiam tornar o regresso a Portugal numa coisa que eu assinaria logo no dia seguinte.
Tais como?
Não vou dizer isso aqui [risos]. Se alguém estiver interessado, contacte-me e conversaremos. Mas eu consigo imaginar um pacote de condições conjunturais que não me beneficiariam só a mim. Isto porque estou numa fase da carreira em que se é tudo só para mim só pode vir a causar estragos. Mas são condições conjunturais que, com a minha vinda, pudessem melhorar a vida de muita gente e até, eventualmente, atrair outras pessoas. Não seria necessário injectar muito dinheiro. Seria mais necessário criar um elã e um tipo de mudança de paradigma que me deixaria muito orgulhoso fazer parte.
Houve uma altura em que evitava a resposta a essa pergunta. Houve outra altura em que dizia “Não me parece”. Agora também, à medida que a pessoa fica mais velha e tem que criar os filhos com este frio e com o FPÖ [partido de extrema direita] no governo…. Em Portugal também temos o Chega a crescer, mas pronto. É o meu país e a minha mulher também adora Portugal. Por ela, já tínhamos ido. Só falta mesmo a proposta [risos]! É só mesmo isso que falta.