Entrevista. O Marta: “A música em Portugal, a cultura, essencialmente, ainda não é vista como um trabalho”
“Ó Moça é Folclore” é o primeiro álbum de O Marta, o projeto a solo de Guilherme Marta (também metade dos Bang Avenue). Começado de forma mais ou menos oficial no início de 2021, tem os seus genes já em experiências que datam ainda dos tempos do curso de Engenharia Electrónica, na Universidade de Aveiro, onde torceu o destino.
Mas indo mesmo à raiz, já que é de folclore que se trata, este percurso começa a traçar-se logo na infância de Guilherme: “A minha mãe é de uma aldeia da Beira Alta, de uma aldeia do concelho de Sernancelhe, e em criança costumava passar lá muito tempo, em casa dos meus avós. Ia muito às festas ouvir os ranchos folclóricos, ia para lá cantar, mesmo não sabendo bem as coisas. Além disso, o meu pai trabalhava em São Pedro do Sul e conhecia os cantares do Manhouce. Muitas vezes também acompanhava esses grupos. Foi quase “culpa” dos meus pais este bichinho que ficou comigo, desde criança“, assume O Marta.
Como é costume, a adolescência baralha-nos o jogo dos afectos, e as afinidades de Guilherme Marta viram-se para outras paisagens. O metal e o rock, primeiro, e o indie depois, após um impactante festival de Paredes de Coura aos 17 anos. Em paralelo, há uma experiência de conservatório interrompida para ir aprender guitarra.
“Escolhi Engenharia Electrónica pela relação com a tecnologia dos instrumentos musicais. A minha intenção até era perceber como é que funcionam os sintetizadores. Foi a tentativa de um caminho seguro mas a ver se conseguia tocar ali um bocado na música.”
O Marta (Guilherme Marta)
Até que o caminho se cruza com Aveiro e com um curso de Engenharia. “A música em Portugal, a cultura, essencialmente, ainda não é vista como um trabalho. As nossas mães são protetoras e querem que os nossos caminhos sejam os mais fáceis. A aceitação da minha ida para a música foi uma luta. Há um tema, o “Mãe”, no Ó Moça é Folclore, que fala um pouco sobre esse crescimento.” O curso foi uma espécie de compromisso entre a segurança e a aplicabilidade na música: “Escolhi Engenharia Electrónica pela relação com a tecnologia dos instrumentos musicais. A minha intenção até era perceber como é que funcionam os sintetizadores. Foi a tentativa de um caminho seguro mas a ver se conseguia tocar ali um bocado na música“, afirma o artista.
Pelo caminho, há o contacto com uma cidade nova. “Foi uma experiência fundamental. Primeiro, para perceber que o que eu queria mesmo era música. Além disso, conheci pessoas incríveis que me incentivaram a continuar e a querer perseguir este trajecto. Foi nessa altura que criei os Bang Avenue e que comecei a idealizar este projeto que é “O Marta” (…). Conheci em especial um amigo, o André Meneses, que estava a estudar composição lá, ou o Leonardo Patrício, que é o meu parceiro nos Bang Avenue. E mesmo pessoas de fora desse ramo mas que me incentivaram a crescer culturalmente e que influenciaram decisivamente o meu percurso enquanto músico.”
O contacto com uma cidade com uma “cena” artística em crescimento foi importante. “Em Aveiro está a crescer bastante esse lado que permite a muitos artistas começar a lançar-se. Isto porque tem oferta, e para além da oferta que tem, tem investimento, tem bandas a aparecer porque existe esse investimento e esse apoio. Existem espaços”, conta-nos Guilherme sobre uma cidade cujos espaços conheceu bastante bem também enquanto público: “ia essencialmente ao GrETUA. Desde que comecei a estudar lá fui ver todas as peças que se fazia no GrETUA. Em termos de concertos também. Depois também comecei a ir a alguns no Mercado Negro, ia às vezes às jam sessions que havia lá assim como no GrETUA. Mais tarde, o Avenida Café Concerto, sempre que lá iam bandas que me interessavam.”
“O Marta” é, assim, um culminar deste processo de amadurecimento, que um contacto com o projeto “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, em período de pandemia, fez transbordar: “fascinei-me com aquilo, fui recuperar memórias de infância e voltei a apaixonar-me totalmente. Principalmente pelos cantares polifónicos. A polifonia, a crueza, as vozes garridas das mulheres… Foi esse o ponto de partida para este projeto“. Um projeto que comporta uma certa síntese das suas diversas referências, as tradicionais e as contemporânea, que também serve de veículo a mensagens mais directas.
“Este projeto também nasceu de uma necessidade de poder gritar cá para fora aquilo que eu estava a sentir. Essencialmente, sobre aquilo que vejo no nosso país e na sociedade atual. Uma sociedade de crescente globalização. Abordo no álbum como, por exemplo, a aceitação do corpo, problemas que na sociedade actual são muito recorrentes mas que não são muito retratados na música. Um dos objetivos também é apresentar temas menos confortáveis e debater sobre eles. Provocar algo nas pessoas”. Os temas em que vem trabalhando, posteriores a “Ó Moça é Folclore” continuam esse caminho de análise social e política: “Em duas músicas que toco ao vivo, que facilmente poderão surgir num próximo álbum, coloquei um caráter bastante mais politico — a “Fado à Portuguesa” e a “Ladrão” — com uma crítica ao Estado e ao povo português, às coisas que eu vejo. “O Marta” é um projeto que pretende fazer certas provocações“, assume o artista.
“A indústria da música está toda no litoral de Portugal. O interior de Portugal está muito apagado. Gostava que existisse um esforço para alterar isso e gostava de também ter mão nesse esforço. Gostava de trazer também o interior de Portugal para a frente.”
O Marta (Guilherme Marta)
A música tradicional é “a nossa raiz, a nossa base”, mas a afinidade de Guilherme com o interior do país não se esgota nas sonoridades. A estudar Produção e Tecnologias da Música, na cidade do Porto, confessa a sua preferência por cidades mais pequenas: “Gosto muito de cidades mais pequenas, mais confortáveis. Estou a gostar muito de viver no Porto, mas é diferente. Era muito mais tranquilo, conseguia estar muito mais em paz em Aveiro ou Viseu. É claro que as oportunidades são completamente diferentes mas gostava que isso mudasse“, refere ainda O Marta.
“A indústria da música está toda no litoral de Portugal. O interior de Portugal está muito apagado. Gostava que existisse um esforço para alterar isso e gostava de também ter mão nesse esforço. Gostava de trazer também o interior de Portugal para a frente.“, assume o cantautor. Mas, para que isso aconteça, há um conjunto de promessas a realizar: “É importante que exista uma envolvente, uma comunidade artística que dê estímulos, e isso só é possível quando há financiamento, quando há espaço e condições.”.
Para já, “O Marta” vai percorrendo os palcos deste país, contactando pela primeira vez com um público que já vai conhecendo os temas: “tem sido excelente. Agora que o álbum já maturou, já começamos a ver pessoas a cantar as músicas e a conhecer as letras, o que dá outra energia ao concerto“. Apresentando-se em palco com mais cinco músicos, bateria, baixo e percussão, guitarra, teclado e flauta, já passou pela sua cidade natal, no Carmo 81, pela ACERT em Tondela, por Lisboa, Évora e Águeda e apresenta-se no dia 2 de Junho em Aveiro, no GrETUA, lugar que saberá também a casa.