Entrevista. Olga Roriz: “É urgente abrir canais à transformação, à criação da utopia”
A Humanidade representada em cerca de 500 figuras típicas e atípicas vai desfilar na praça imaginada por Olga Roriz para uma nova coreografia que se estreia a 29 de abril, em Loulé, e que terá digressão por 13 cidades do país.
Os personagens são de diversas profissões ou figuras do quotidiano, como o varredor, o empregado da pastelaria, o louco, a noiva, o atleta, as beldades, o agente secreto, o sem-abrigo, que entram num rol ampliado pela criatividade da coreógrafa a partir de uma peça de teatro do dramaturgo austríaco Peter Handke, de 1992.
“A hora em que não sabíamos nada uns dos outros”, a peça original, foi composta por 450 personagens caminhando numa praça transformada numa cidade, e a que Olga Roriz assistiu em Portugal.
“Eu tinha visto esta peça há muitos anos num festival do Teatro Nacional Dona Maria, e lembro-me de ter sentido uma estranheza”, recordou a coreógrafa em entrevista à agência Lusa, apontando que, nessa altura, já gostava do dramaturgo Peter Handke.
Mais tarde, a peça surgiu-lhe no pensamento “com a força desta grandiosidade, centenas de personagens”, adaptada à linguagem da dança que é a sua natureza, e prepara-se agora para a estrear a 29 de abril, Dia Mundial da Dança, no Cine-teatro Louletano, em Loulé, no Algarve.
Olga Roriz decidiu avançar para a criação com o propósito de colocar a obra na modernidade de um mundo muito alterado desde os anos 1990: “A peça tem a visão do escritor, daquilo que se estava a passar à frente dele. Quando a escreveu, ele observava a vida normal da praça de uma cidade”, em Itália.
“O detonador da peça foi uma tarde de vários anos atrás. Tinha passado o dia inteiro numa pequena praça em Muggia, perto de Trieste. Sentei-me no terraço de um café, e vi a vida a passar. Cada pequena coisa tornou-se significativa (sem ser simbólica). Os procedimentos mais minúsculos pareciam significativos do mundo”, escreveu Peter Handke, em 1992.
Passados 31 anos, Olga Roriz revela o que mudou no mundo, quem passa hoje naquela praça, partindo da constatação de que “o que sabemos uns dos outros e de nós próprios é um poço cada vez mais escuro, e é urgente abrir canais à transformação, à criação da utopia”.
“Obviamente que aquela não é a nossa praça. Nós já não vamos fazer encontros, convívio ou negócios à praça, que agora é apenas um local de passagem”, observou a coreógrafa, acrescentando, no entanto, que o texto “é totalmente intemporal”.
Foi com o pensamento na contemporaneidade que Olga Roriz pediu os direitos de autor da peça, convicta de que a dança daria “mais abertura a outras leituras do que o teatro”.
“Poder ir além da imaginação das palavras” deu grande entusiasmo à autora de peças como “A Sagração da Primavera”, “Antes que Matem os Elefantes”, “Síndrome” e “Seis Meses Depois”.
Em “A hora em que não sabíamos nada uns dos outros”, nascida no mundo da dança, “não há palavras, nem diálogo, mas um dar corpo à imaginação”, sublinhou Olga Roriz à Lusa, referindo que, quando lhe foram cedidos os direitos de autor para fazer estas adaptações, exigiram apenas que respeitasse a estrutura, ambiência e conteúdo da peça.
Peter Handke – que recebeu o Prémio Nobel da Literatura de 2019 – “dá liberdade a quem vai encenar, de dar a sua visão do mundo, que pode ser o momento presente, o passado, ou projetada no futuro”, reiterou a criadora.
Outro aspeto do texto que lhe interessou foi a forma como dá “oportunidade de abrir a imaginação à criação de arquétipos, ou de heróis de cada um”.
“A meio da peça, Handke começa a sonhar: diz que a figura bíblica de Moisés pode existir em cada esquina, e esse é o seu arquétipo”, apontou Roriz, acrescentando que optou, pessoalmente, pelo Minotauro, criatura da mitologia grega, representada por um ser com cabeça de touro e corpo de homem que vive preso num labirinto na ilha de Creta, na Grécia.
A criadora diz ter sentido “um grande prazer” em introduzir personagens da contemporaneidade que não existem na peça, nomeadamente uma parada gay, uma manifestação, vários tipos de noivas, com uma imagem não tradicional, e outras figuras cuja identificação é deixada à imaginação do espectador.
Os cerca de 500 personagens do espetáculo – que entram e saem do palco marcando a presença de forma intensa e alguns muito velozmente – são interpretados por um elenco de apenas 28 pessoas.
Sete são bailarinos profissionais – da Companhia Olga Roriz e outros convidados, como Gaya de Medeiros, Marta Jardim e Dinis Santos –, 13 são jovens estudantes de dança, e os restantes foram escolhidos numa ‘open-call’ aberta à comunidade para este espetáculo, e que se repetirá em cada cidade onde a peça for em digressão.
Olga Roriz sentiu necessidade de abrir o espetáculo à comunidade, depois de ter tido experiências semelhantes em trabalhos como “Insónia”, para a qual convidou uma dezena de alunos do Conservatório Nacional de Dança, e “Corpo em Cadeia”, com detidos da prisão do Linhó.
“Fiquei com vontade de abrir a companhia fora do seu próprio elenco, à comunidade, e dar oportunidade a outras pessoas para sentirem, experienciarem, ouvirem e estarem comigo e os bailarinos”, comentou, referindo, por outro lado, que a capacidade financeira da sua companhia não comporta uma equipa maior.
Todas as 500 personagens nascem de um diversificado guarda-roupa com mais de 300 figurinos e dezenas de adereços da Companhia Olga Roriz, resultado de um acumular de muitas outras coreografias de 28 anos de atividade artística, além de doações.
“Ao longo da peça há indicações: se é homem, mulher, qual a personagem. Foi a primeira vez que fiz um trabalho do princípio ao fim com muito acompanhamento. Fui guiada, e foi muito interessante. Ficou a vontade de fazer novamente algo assim”, disse, entusiasmada com uma dramaturgia “muito especial, com uma dimensão inacreditável, que exigiu um grande esforço da companhia para lhe responder”.
A criadora – com uma carreira como intérprete e coreógrafa que passou pelo Ballet Gulbenkian – vai apresentar a nova obra em 13 cidades do país em dois anos, abrindo sempre o espetáculo à participação, no elenco, de um grupo de pessoas interessadas.
“Fazer a seleção das pessoas e ensaiá-las é muito complexo porque interpretam muitos personagens ao longo da peça”, apontou, referindo que o elenco percorre idades entre os 18 e os 70 anos.
Questionada pela Lusa sobre a necessidade de aprofundar esta abertura à comunidade, Olga Roriz considera que, quando bailarinos não profissionais participam nos espetáculos, acontece também uma abertura a novos públicos.
“Vêm os familiares, os amigos, os vizinhos para ver os espetáculos, o que é muito bom para divulgar a dança. Esta experiência pode ser enriquecedora para ambas as partes”, avalia a coreógrafa, nascida em 1955, em Viana do Castelo, e cuja companhia possui um repertório com mais de 30 peças da sua autoria.
“A hora em que não sabíamos nada uns dos outros” irá, depois da estreia, ser apresentada, este ano, a 12, 13, 14, 19, 20 e 21 de maio, no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, a 27 de maio, no Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre, a 17 de junho, no Teatro Municipal de Bragança, a 14 de outubro, no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo, a 27 de outubro, no Centro de Arte de Ovar, a 03 de novembro, na Casa das Artes – Vila Nova de Famalicão, e, a 25 de novembro, no Teatro Aveirense, em Aveiro.
Olga Roriz foi distinguida com a insígnia da Ordem do Infante D. Henrique (2004), o Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores (2008), o Prémio da Latinidade (2012) e o doutoramento Honoris Causa por distinção nas Artes pela Universidade de Aveiro (2017), entre outras distinções.