Entrevista. Paula Gicovate: “O amor é a minha obsessão. Penso nisso o dia inteiro. A vida real contamina a ficção — o tempo todo”
Paula Gicovate é escritora, tem 38 anos e vive no Rio de Janeiro. Agora, Lia, a personagem principal do seu novo romance, fez com que Paula Gicovate atravessasse o oceano para apresentar «Notas sobre a Impermanência» em Portugal, um livro que acaba de ser publicado em Portugal pela jovem editora À Parte.
Paula Gicovate é também guionista e autora dos livros «Este é Um Livro Sobre Amor» e «Notas Sobre a Impermanência», que foi semifinalista do Prémio Oceanos, em 2022. Um dos seus contos integrou também a coletânea «Vivo muito vivo – 15 contos inspirados nas canções de Caetano Veloso».
A autora apresenta-nos este novo livro, com uma amante como personagem principal, explica o seu método de escrita e revela os contornos do seu próximo romance, que será sobre luto.
Magda Cruz: Tens o mesmo desejo de escrever livros, como a Lia tem desejo de estar com um homem casado?
Paula Gicovate: Eu tenho muito desejo em escrever livros, sem dúvida. (risos) Não sei se é o mesmo desejo que ela tem de estar com um homem casado. Acho que ela se apaixonou por Otto. Não sei se ela tem desejo por outras coisas. Acho que Lia é apaixonada, de forma geral. Mas eu te garanto que o mesmo frisson que ela tem, ou que ela teve ao conhecer esse cara, é o que eu tenho pela Literatura.
MC: Frisson é uma palavra que não faça parte do vocabulário do Português, penso eu. Pelo menos não a usamos com muita frequência. Aparece duas ou três vezes no livro. Não sei qual é o seu significado ao certo, mas trata-se de um impacto, não é?
PG: É um impacto, é um frio na barriga. É uma sensação física. É qualquer coisa que te prende ali pelo estômago. É, realmente, o que a gente sente quando está apaixonada por alguma coisa ou por alguém. E eu realmente sinto isso quando estou escrevendo. E sim, é isso que Lia sente com Otto. E acho que é isso que eu acabo querendo perseguir na minha vida. É claro que não dá para sentir isso em tudo. Você não vai sentir isso num trabalho todos os dias. Você não vai sentir isso na sua relação todos os dias. E que bom, não é? Porque eu acho que isso é um pouco insustentável. E é essa a questão da Lia: o que ela quer é insustentável. Não dá para sentir isso todos os dias. Ou você tem o meio [da relação] ou você tem o frisson do início.
MC: No livro, Lia diz que sempre foi criança que encara os estranhos, que ouvia o cochicho dos adultos e que talvez por isso trabalhe com histórias. Afinal, ela é tradutora. Ora, porque é que a Paula trabalha com histórias? Também gostas de ouvir as conversas de desconhecidos?
PG: Sim, eu trabalho com histórias porque eu acho que eu dei um jeito de pagar as contas com a coisa que eu mais amo de fazer na vida, que é escrever. Nem sempre estou escrevendo coisas deliciosas. Nem sempre estou escrevendo além de livro. O livro é um processo super longo — pelo menos para mim. Eu até tenho colegas que escrevem muito rápido. O livro mais rápido que eu escrevi talvez seja esse que eu acabei de terminar. Escrevi em dois anos e meio.
MC: Acabaste de terminá-lo? Vamos falar sobre ele.
PG: Terminei agora. Eu mandei o livro para a minha agente no dia em que vim para Portugal. Eu estou mexendo nele aqui de novo porque revisitar «Notas sobre a Impermanência», que é o meu romance recente, está me fazendo olhar para esse livro de agora de uma outra forma. Eu quero que ele seja bom.
MC: Este novo livro é a visão da mulher do homem casado, da esposa? Passados dois anos e meio, é uma história totalmente diferente. Não é a história do teu pai, também, porque essa história parou.
PG: Não, não. Também não é essa história. Na verdade, esse livro que eu estou escrevendo agora ele não fala de uma paixão de um casal, ele não fala desse atravessamento de desejo. Ele parte de um ponto em que eu realmente vivi — ao contrário de «Notas sobre a Impermanência», que ele tem muito mais ficção, embora os sentimentos sejam muito reais. Esse livro que eu estou fazendo agora parte desse ponto real, que é a morte da minha mãe. E com a morte da minha mãe, que é a perda dessa pedra fundamental onde eu construi a minha vida, esse amor incondicional.
MC: Como é o amor de todas as mães.
PG: No momento em que eu perco esse amor incondicional — e eu vivi esse amor de forma bem cliché, no sentido em que a gente de amava muito. A gente realmente era inseparáveis, apaixonadas uma pela outra. E a minha irmã também tinha essa mesma relação com a minha mãe. Somos três. Seremos sempre três. Mas quando eu perdi a minha mãe, a minha irmã ficou noutro país. Ela mora na Califórnia. Eu, no Rio. Aí a minha avó, mãe da minha mãe, numa cidade do interior que é onde eu nasci [Campos dos Goytacazes], eu comecei a ir a Campos, e existia esse silêncio entre nós duas. Sabíamos o que a outra estava passando, mas eu, sem querer levar muito esses assuntos para a minha avó… porque enfim, perder uma mãe é muito doloroso. Perder uma filha também. E eu comecei a pensar nesses silêncios e nessas gerações: como estava eu num ponto da vida e a minha avó em outro. Nesse vazio que ficou entre as duas. E como a minha mãe ocupava esse vazio sendo cuidadora primordial da minha avó — porque eu acho que esse é um papel que acaba recaindo muito nas mulheres. E aí eu comecei a olhar para a família. Então, eu agora estou a escrever de facto sobre o luto e família, que não tem nada a ver com a história do «Notas sobre a Impermanência». E isso me causa muito medo. Porque escrever sobre paixão é o meu lugar de conforto. Porque eu sei o que é isso aqui, no «Notas».
MC: Acabas por escrever sobre um tipo de amor. Só não é platónico, como no «Notas». É um amor entre parentes: mãe, filha, avó.
PG: Foi isso que eu entendi. Isso me trouxe um pouco de paz. Eu falei: «Espera aí… Eu continuo falando de amor. O amor ainda é a minha obsessão. Mas eu estou falando de um outro tipo de amor.
MC: O amor é a tua obsessão?
PG: O amor é total a minha obsessão. Eu penso nisso o dia inteiro. Inclusive, sobre se eu presto atenção a conversas alheias: eu presto tanto atenção nas conversas alheias… porque eu já atravessei a rua para entrar num núcleo familiar, para ouvir o que eles estavam falando, sem perceber que eu tinha atravessado. E aí, a mãe da família me viu e falou: «Me dá licença?». (risos) Eu realmente entro na história. Uma vez, na fila do avião, indo viajar para ver minha irmã, de novo uma família. Dois pais e duas adolescentes. Eu fiquei olhando tanto para a menina que ela cutucou a mãe e falou: «Aquela garota não para de me olhar.» E aí o meu companheiro, o Miguel, falou: «Cara, isso aqui é a fila para viajar para os Estados Unidos. Você pode ser presa. Você não pode ficar olhando.» Mas eu perco completamente a noção.
MC: Fazes me lembrar de uma frase que está mais à frente no livro «Notas sobre a Impermanência»?. Escreve: “Nada é tão literário quanto a vida real”. Podes estar a inspirar-te nessas conversas que ouves para depois, de alguma forma escrever. Acontece-te isso?
PG: Sim, totalmente. «Notas sobre a Impermanência» tem um trecho que eu praticamente descrevi o que eu estava vendo. É uma cena que quando lerem vão encontrar, que é a Lia, num restaurante, observando um casal a discutir — e talvez se separar. Isso aconteceu exatamente comigo. Eu estava na FIL de Guadalajara, que é a Feira do Livro do México, para falar do meu livro anterior, «Este é Um Livro Sobre Amor», e eu estava sozinha num restaurante e vi um casal discutir, exatamente com as questões que são levantadas: uma mulher muito cansada falando que está sobrecarregada e aí o marido fala «Porque é que você não me pede, então?» e aí ela fala…
MC: Ela não quer ter de pedir.
PG: Exato! Ela não quer ter de pedir. Porque isso também é uma sobrecarga mental. Então, eu vi isso acontecer. E eu falei «Isso aqui está pronto. Isso aqui precisa de vir para o livro.»
MC: A vida real contamina a ficção.
PG: Para mim, contamina o tempo todo.
MC: Então, voltemos à ficção, neste caso ao «Notas sobre a Impermanência», para te perguntar: Do que foge a Lia?
PG: A Lia foge do fim. A Lia tem de se deparar com o fim. Tem de viver algo que acaba. Porque, quando ela escolhe alguém que não está disponível para ela, ela não vai realizar aquela relação. Então, o que não é realizável perdura, dura para sempre. As coisas só acabam quando elas acontecem. Eu acho que a Lia, o tempo inteiro, está fugindo do fim. Ela está fugindo, talvez, de se sentir abandonada. Talvez, de ter de abandonar. É disso que ela foge.
MC: E daí o título do livro: «Notas sobre a Impermanência». Reflete muito a história. O que é esta impermanência?
PG: Eu fiz muita questão de trazer esse título porque eu tinha uma outra opção. A outra opção era «História de um Acidente». Justamente por pensar no desejo como esse trovão que cai, um raio, ser acometido pelo desejo. Mas aí eu pensei que não é isso. Porque com «Notas sobre a Impermanência», eu estou falando de todas as impermanências que a Lia está contando nessa história. Não é só não poder estar com esse cara. É tudo o que ela gostaria de ter: é ver o ex-namorado dela se casar e sentir inveja não porque ele está com outro amor, mas por não saber como se tem a certeza de que está alguém para o resto da vida.
MC: E esta capa também é muito interessante. Temos uma capa vermelha com o que parecem fraturas. Eu interpreto como três vidas, três fraturas no coração, três rasgos. Porque são três linhas brancas que atravessam o livro. Tiveste essa interpretação? É algo que tenhas explorado? Como é a capa da edição no Brasil? Gostaste desta interpretação?
PG: Sim, eu tenho muita sorte com a À Parte. Eu caí realmente numa casa muito especial. Tenho sido muito bem tratada, mas também tenho trabalhado muito. Eu falo: «Ana [Pimentel], eu quero conhecer todo o mundo, eu quero ir a todas as livrarias, eu quero falar com todas as pessoas». Então, foi uma escolha minha estar aqui em Lisboa. Porque eu falei: «Eu estou nessa casa, eu estou com essas mulheres, eu quero ir lá, conhecê-las pessoalmente».
MC: Sim, não se cruza o Oceano só porque sim.
PG: Exato! Eu atravessei o Oceano por paixão por essa editora e por essas mulheres. E aqui visitar as livrarias e conhecer as pessoas, os leitores. E ouvir o que os leitores têm a dizer. Eu recebi a proposta de capa da À Parte e eu não pedi nem uma alteração. Quando chegou, eu olhei e falei: «É isso, está tudo certo.» Eu não tive a interpretação que você teve. Acho que isso traz uma nova camada para essa capa porque agora eu consigo ver o que você vê. Mas eu gostava da ideia das ondas, inclusive a fonte do título não é em linha reta. Passa uma ideia em que eu acredito muito, que o amor não é linear, de que a vida não é linear. Eu estou aqui tirando minha última gota de Lisboa porque eu sei que amanhã eu estou no Rio de Janeiro, fazendo outras coisas. Talvez escrevendo para o mercado imobiliário ou para outros trabalhos — que eu sou freelancer — e que não me trazem isso que eu estou vivendo aqui agora. Porque a vida é absolutamente impermanente. Então eu estou aqui vivendo as minhas últimas horas de Lisboa e que bom que são com vocês. Essa capa, quando chegou, eu aprovei a capa na hora. Não mexi em nada do projeto gráfico. No Brasil, a capa é rosa com um mapa com uma sereia no meio. Aí sim, eu fiz a proposta da capa. Para mim, Lia é uma sereia. Ela tem um canto da sereia. Porque a sereia sobe à superfície, ela canta.
MC: Quem chega ao final do livro acho que consegue perceber essa ideia da sereia.
PG: Ela também é uma sereia. Isso sim foi uma encomenda.
MC: As tuas editoras também te traçaram alguns elogios. Por exemplo, a tua editora Ana Pimentel diz que quando começou a ler não conseguiu parar. O ritmo era uma preocupação que tiveste ao escrever? Porque acho que consegues ter muito «início, meio e fim», nos capítulos. As últimas duas frases fecham bem o capítulo. Adorei isso. É uma preocupação que tens?
PG: Sim, o tempo todo. Eu tenho muita preocupação com o ritmo. Eu gosto de ter… Isso é muito a minha voz. Tanto que agora escrevendo sobre luto e sobre família, hoje fui reler o livro e eu vi que isso está ali também. Esses mesmos ritmos. Essas mesmas páginas que começam e terminam nelas mesmas. Eu sou uma leitora de conto e eu comecei a escrever no blog. E no blog, você está escrevendo conto. Textos curtos. Eu começo a escrever com textos curtos. Eu chego no romance depois de dois livros de conto. «Este é Um Livro Sobre Amor», que é o meu primeiro romance, foi difícil de classificar. Algumas livrarias não sabiam onde é que botavam: se na prateleira de conto ou de romance. Porque a minha cabeça, para a Literatura, é muito fragmentada. Eu escrevo em fragmentos. Então, «Notas sobre a Impermanência», que acabou por ser um romance um pouco mais linear do que o anterior, ele é muito fragmentado. E eu acho que isso é a minha voz. Para mim, é muito importante levar isso para tudo o que eu for escrever. O que eu quero passar para o leitor é: você vai ler esse livro até ao final, e você vai entender a história como ela é, mas se você abrir esse livro em qualquer parte, qualquer trecho que você for ler, você vai tirar alguma coisa.
MC: Isso é muito interessante. Se abrir a dois terços do livro, está num dado momento da relação da Lia e do Otto que se consegue acompanhar até ao final. Até quanto às cartas que trocam. Mas esse ritmo sente-se e ainda bem que o conseguiste ter, também, no teu próximo romance. Falavas do leitor e eu queria também perguntar se achas que conseguiste criar essa empatia no leitor. Porque o livro é sobre a amante, a Lia, e ela é vista como «a outra», «a que está mal», «a que não tem valores nem razão». Achas que o leitor sentiu empatia pela amante.
PG: Eu espero que o leitor sinta empatia por todos os personagens desse livro. Até pelo Otto. (risos) Eu fiz um trabalho de tentar não julgar nenhum dos personagens — até quando eu queria. Claro que eu não estou escrevendo um livro para falar que ser amante é ótimo. Todo o mundo está ali vivendo um incómodo. Mas eu espero que as pessoas tenham empatia com a Lia, sim. Não vou negar isso, não. Porque eu acho que a Lia ela… Eu ia falar que é um ser humano, mas é um personagem, né? (risos) É um ser humano tão cheio de camadas. Ela sente tantas coisas. Ela não está ali num lugar confortável. Ela está muito ciente dos próprios desejos. Mas sim, eu espero que as pessoas sintam empatia por ela.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: