Entrevista. Paulo Almeida: “Um solo é um processo de evolução”

por João Estróia Vieira,    24 Agosto, 2020
Entrevista. Paulo Almeida: “Um solo é um processo de evolução”
Paulo Almeida, Facebook oficial
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A pandemia veio colocar uma pausa forçada a uma primeira temporada de espectáculos de stand up que são resultado de um processo complexo de criação e de logística para muitos humoristas. Desde a primeira piada à marcação e reserva das datas em várias localidades por todo o país, o espectáculo a que assistimos é um resultado longo de diferentes camadas, todas elas necessárias, à ida “para a estrada” por parte dos humoristas. Um deles é Paulo Almeida, com quem muitos de nós cresceram um pouco, desde que ia às tardes do Curto Circuito fazer a curiosa personagem Grozny. A partir daí cresceu nos palcos, foi conquistando o seu espaço no panorama do humor em Portugal e já foi parceiro de outros grandes nomes como Rui Cruz e Rui Sinel de Cordes.

Tivemos oportunidade de entrevistar o Paulo e falar um pouco desde o início da sua carreira até ao seu processo criativo, bem como o revés que alguém que faz humor mais “temperado”, tem em Portugal. No final deixamos o recomeço da tour e correspondentes datas. Volta a arrancar a 3 de Setembro em Cascais.

Quais foram os teus primeiros contactos com o humor?
Eu não sou aquele gajo que diz: “quando era novo, o meu sonho sempre foi ser humorista ou comediante”. A minha formação não tem nada a ver com isto. Eu sou licenciado em Educação. Ao mesmo tempo em que eu estava a tirar o curso na Escola Superior de Educação, em Benfica, o Curto Circuito da SIC Radical estava no ar naquela altura dos tempos áureos do [Rui] Unas, do Bruno Nogueira, do [Fernando] Alvim, da Rita [Andrade], a malta que estava lá naquela altura, e há um dia que estou em casa a estudar e não me apetecia e então lembro-me de ligar para lá e fazer um personagem a imitar um ucraniano, o Grozny. Eu vejo muitas notícias e na altura a RTP1 tinha um correspondente na Rússia, o Evgueni Mouravitch que ainda o é, e na brincadeira imitava o sotaque dele a falar com amigos e então decidi fazê-lo para o Curto Circuito. O nome do personagem, o Grozny, é o nome de uma cidade que apareceu nas notícias naquele dia. A cena pegou com aquele telefonema e começou a funcionar ao contrário. Depois de uns telefonemas já era a produção que ligava para mim porque aquilo estava a criar uma reacção fixe com o público e lá com eles. Comecei a ter mais vontade de fazer aquilo e um dia convidam-me para ir lá fazer o personagem. Estava lá o Alvim que curtiu logo de mim, tivemos uma química imediata, e me convidou logo para escrever umas cenas para ele na Antena 3. Depois há um dia que ele me convida para fazer uma participação ao vivo no Freakshow da Prova Oral, que é um programa que ele tem anual com malta de várias vertentes. Fiz stand up pela primeira vez aí. Cinco minutos em personagem, isto em 2004. As minhas primeiras vezes foram sempre em personagem porque eu não tinha base para fazer de outra maneira, estás a perceber? Aquela também era a minha maneira de me proteger. Depois fui fazendo sempre em personagem até que participei num concurso no restaurante do Herman, que era o Bastidores, em Alcântara. Fui até à meia final, não passei, e o Herman aí disse-me que adorou, mas que eu tinha de começar a fazer isto não só em personagem pois isto vai acabar por chegar ao final. Aquilo bateu-me e foi aí que comecei a escrever material só para mim. Foi a partir daí que deixei. Ao mesmo tempo estava ainda a fazer ainda duas participações semanais ainda enquanto Grozny mas só ia fazendo as participações em bares só enquanto Paulo Almeida. O bichinho pegou, fui fazendo umas coisas aqui e ali, começas a conhecer outras pessoas e foi a partir daí. Não era portanto algo que existia inicialmente, mas foi algo que fui regando.

Como é que isso te levou ao primeiro solo?
Eu já fazia stand up há alguns anos a essa parte. Eu não fiz sempre de forma consistente. Estive parado cerca de três anos quando comecei a trabalhar na área da Banca. Precisava de um sustento e o stand up só na altura não estava a dar. Foi uma altura em que cheguei mesmo a pensar em desistir. Só que entretanto, nessa altura, recebo uma chamada do Rui Sinel, que estava a começar a fazer o Roleta Russa na +TVI e precisava de alguém que o ajudasse na escrita. Já lá estava o Rui Cruz e ainda se juntou o Manuel Cardoso depois. O trigger de voltar a trabalhar em comédia deu-me vontade de começar a escrever. Já tinha algumas coisas antigas, aí uns quinze por cento, mas o resto foi tudo novo, histórias que ganhei naqueles três anos a trabalhar na empresa, juntei também histórias sobre ter participado em reality shows da TVI e a partir daí tinha o material para o “Psicómico”. Começou a correr bem, esgotei o Villaret, fiz umas datas mais espalhadas pelo país que também correram muito bem e a partir daí fui querendo fazer mais e mais.

Já antes de começares a trabalhar com o Rui Sinel tinhas essa maior ligação ao humor negro? E concordas com esse rótulo? O Rui Cruz diz que é apenas uma maneira de o categorizar.
Sempre foi o meu tipo de humor. Mesmo quando fazia de Grozny ele era um personagem muito ingénuo mas as piadas que tentava meter no texto eram piadas mais agressivas, mais aquilo que eu gosto de fazer. Tal como o Cruz eu não gosto do rótulo, mas percebo que as pessoas queiram categorizar. Agora, eu acho que não é só isso que eu faço. Já tinhas isso nos outros espectáculos mais recentes. Já o era no “Ódio de Estimação” e agora ainda mais no “Karma”, é um espectáculo que é muito mais que de humor negro, mas percebo que as pessoas categorizem para se falar sobre isso, ou para dizer que se gosta ou não se gosta. Cada vez lido melhor com isso, mas tento mostrar às pessoas não dizendo “olha aquilo que eu faço não é humor negro” mas sim dizendo para virem aos espectáculos ao vivo e vejam por vocês próprios qual é o tipo de humor e de espectáculo que eu faço. Toco em vários temas, tenho piadas mais agressivas porque é com isso que me rio e é com isso que gosto de fazer rir os outros, mas não é “só” isso. Tem um pouco disso, mas é mais.

No início da tour do “Ódio de Estimação” disseste que era o teu grande espectáculo até ao momento. Em que momento depois te apercebeste que já tinhas material para o “Karma”?
Impus uma regra a mim mesmo: desde que seja possível e eu vá conseguindo fazê-lo, quero tentar ter um espectáculo novo todos os anos. Obriga-me a escrever e a não ser preguiçoso. Se quisermos temos sempre material todos os anos. Se calhar não vais ter sempre um espectáculo incrível, e eu tento que seja, obviamente, mas se trabalhares consegues ter uma hora e quinze, uma hora e meia todos os anos se deres o litro. O “Ódio de Estimação” tinha ali uma componente baseada nos vídeos que eu comecei a fazer na net, já o “Karma” partiu do momento em que eu no ano passado tive umas piadas que se tornaram mais virais, que me deram problemas nas redes sociais e tive muita gente a comentar e a mandar mensagem a dizer “um dia o karma vai apanhar-te”, “brincas com o karma e ele vai-te lixar”. A base do “Karma” é precisamente essa, parti dessa base e tento explicar como é que o Karma me apanhou, ou como é que ainda não me apanhou e me poderá apanhar.

O “Ódio de Estimação” tinha uma grande componente pessoal, o “Karma” também?
Parte daí, mas talvez seja ainda mais pessoal pois noventa por cento das histórias que eu conto no “Karma” aconteceram-me de facto. Uma das histórias que eu conto é do meu regresso a Amesterdão, dez anos depois de lá ter estado e de ter ficado proibido durante esses dez anos de lá voltar. Então eu conto porque é que eu estive dez anos proibido de lá voltar e no final, quando mostro as provas, tenho malta a meter as mãos na cabeça, a dizer “não!!”, outros a rebolar a rir, “é impossível isto ser verdade”. Esse mix é muito engraçado, para mim às vezes é melhor que uma gargalhada.

Já alguma vez deixaste de fazer uma piada nas redes ou os comentários negativos ainda te dão mais vontade de as fazer?
Nunca deixei, nem me dá mais vontade. Quando comecei, no início, sobretudo quando as redes sociais começaram a ganhar peso para a malta do humor expor o seu trabalho, eu acho que dava demasiada importância aos comentários negativos do tipo “não gosto de ti” ou “a tua piada foi uma merda”, e às vezes focava-me mais nesses do que à maioria, que eram positivos. Isso era dar força e importância aquela malta. Hoje em dia tento ignorar ao máximo. De vez em quando se vejo um comentário que pode gerar uma resposta engraçada da minha parte, talvez aproveite, mas tento evitar. A malta é livre de gostar ou não gostar, estou completamente à vontade. Agora, neste espectáculo isto exigiu um trabalho de casa para mim, que muito me custou, e é parte da componente deste novo espectáculo.

Já recebeste ameaças na rua por piadas que fizeste?
Pessoalmente, na rua, nunca. Só através da internet, de malta que me manda fotos da minha morada. Tive um problema a dada altura com um ex-presidente de um clube de futebol que pode a breve trecho voltar a ser presidente de um clube de futebol que me tentou arranjar alguns problemas, não directamente mas através de intermediários que me queriam conhecer. Fora isso é o normal, são redes sociais.

O que é que te motiva a escrever? Notícias, situações?
Tem de ser algo que me faça rir, ou a que ache piada, depois vou tentar escrever sobre ela para lhe adicionar um lado mais cómico. Não pode ser uma notícia sobre lenços de papel. Tenho de ver ali algum potencial. Posso tentar escrever sobre algo mas depois até posso deixar de lado. Ainda agora no processo de escrita deste último solo deixei de lado várias páginas de Word. Tinha para aí umas quarenta e fiquei com umas vinte e sete.

Obrigas-te a escrever diariamente ou semanalmente? Tens algum tipo de disciplina?
Não tenho essa obrigação. Eu vou anotando tópicos, não notícias porque os solos actualmente não têm tanto essa componente de notícias ou one liners porque perdem facilmente a validade. Pode ficar mais datado, então tento criar conteúdo que possa perdurar mais no tempo. Vou escrevendo essas notas e seis meses antes da data começo-me a sentar e a escrever essas histórias já em formato stand up até ter um bloco de texto de uma hora ou hora e quinze.

Sentes que às vezes forças ligação entre as histórias ou tens por norma facilidade em juntá-las?
Quando as escrevo tento logo arranjar maneira na minha cabeça de as juntar. Neste espectáculo não acontece em todos os momentos. Há porventura ali um momento mais forçado de ligação mas para mim acaba por ser mais fácil tudo estruturado logo para preparar o espectáculo. Não é tipo Jimmy Carr com hora e tal de piadas soltas. Eu não conseguia decorar isso.

O Sinel disse há tempos numa entrevista que vai para espectáculo com o texto sem necessidade de o levar a bares para o testar. Fazes o mesmo? Já vais a espectáculo com confiança absoluta no teu produto sem o testar antes? Ou até em tour vais trabalhando o texto?
Mesmo o Rui tendo confiança no trabalho dele, é impossível ter cem por cento de confiança de que aquilo vai correr bem. Ele tem aquele método quase único em Portugal de não testar absolutamente nada. Eu tento não testar tudo, até porque há blocos que acho que só resultam em espectáculos longos e não quero estar a levar aos bares esses blocos. Neste espectáculo que eu tenha levado aos bares para testar, se calhar tenho uns vinte e cinco minutos que foram testados quatro vezes no máximo. Mas o espectáculo que começou em Guimarães não exactamente o mesmo que vai acabar em Lisboa. Da primeira para a segunda data já vou limar ligeiramente, ou tentar encurtá-las, mudar de sítio.

Sentes necessidade de mudar isso com a percepção do público ou pela forma como te saem quando estás em palco?
Um mix das duas coisas. Tenho um problema pois eu acabo um espectáculo e vou para o camarim e apercebo-me as coisas que correram logo. Anoto o que achei que correu mal e tomo nota para melhorar no próximo espectáculo. Paro ali uns dez minutos depois do espectáculo só a tirar notas do que correu bem e correu mal. Não quer dizer que vá apagar esses momentos. Não é por um público numa sala não ter aderido tão bem aquele texto ou aquela piada que quer dizer que outro noutra sala não vá gostar daquilo. Não corto logo à primeira. Tento trabalhar aquilo. O solo é um processo de evolução, sempre.

Tu adaptas de alguma forma o texto à localidade onde vais, ou a tua entrada?
A única coisa que tento fazer sempre, pois acho que é um miminho, se eu tiver referências locais tento fazê-las referente aquela cidade. Tento ter referências locais.

Guimarães foi privilegiada com um roast [risos].
[Risos] sim, vou tentar fazer um mini roast a todas as localidades onde for. Nem sempre vou conseguir mas vou tentar. Mas só mudo essas pequenas referências locais. Nenhuma das datas do solo será exactamente igual à outra, é essa a magia do stand up. É como um concerto de uma banda. Podes estar habituado a ouvir mas de repente vais ver um concerto e pode haver um solo de guitarra ali pelo meio, ou mudança de alinhamento. Mas nunca adapto consoante a localidade. A comédia está a ter um boom, aqueles artistas que dantes só iam a certas cidades agora já vão a mais, e isso também vai educando o público da mesma forma que lhe dá possibilidade de escolha.

Achas que se vive a melhor fase do stand up em Portugal?
Sem dúvida que sim. Basta o que acabei de referir. Tens cada vez mais tours de stand up esgotadas com cada vez mais antecedência, o Bruno a encher a Altice Arena, o Rocha com o Pi100pé com tantas salas esgotadas, e isso obriga-te a melhorar, isso é óptimo, não vejo como concorrência, se há mais oferta o público tem mais liberdade para escolher e saber aquilo de que realmente gosta.

Como é que vês o facto de alguns famosos que não estavam ligados a esta área juntarem-se agora nesta fase boa e fazerem também eles espectáculos de stand up? Achas que é um fenómeno que vai estagnar?
Estou-me completamente a borrifar. Se acham que conseguem, façam. Tenho plena noção de que o stand up ainda é visto como uma arte menor de entretenimento. A ideia que passa é de que fazer stand up é uma coisa super fácil, de que alguém ia a passar na rua, entrou naquele teatro, pegou naquele microfone e decidiu contar umas histórias sobre a minha vida. Se for bem feito é essa a ideia que tem de passar. Se for bem feito não pode dar ideia de que demorou um mês a ser escrito a outro mês a ser ensaiado. Tem de sair da forma mais natural possível. Então é normal que pessoas que nunca fizeram stand up possam achar que tendo experiência noutras artes performativas, também o podem fazer. “Eu até conto piadas aos meus amigos e eles estão-se sempre a rir daquilo que eu digo então deixa-me experimentar.” Experimentem. Se forem bons tanto melhor, se não, voltam ao que faziam dantes. Tranquilo.

Que filmes gostavas mais quando eram mais novo e te inspiraram no humor?
Adorava filmes tipo “Aeroplano”, esse tipo de humor mais non sense. Gostava daquilo, mas sem ideia de que seria algo que queria fazer. Vivi em Londres e portanto tenho uma ligação diferente ao humor britânico, mas não sou daqueles que dizem “a primeira vez que vi um sketch de Monty Python soube logo que era isto que queria fazer da vida.” Não tenho um momento desses.

Hobbies dos tempos livres?
Confesso que gostava de ler muito mais do que aquilo que tenho feito, mas tenho estado mais a ver séries e a ouvir música. Agora ando sempre de fones. Ando outra vez viciado em Oasis por causa do [Rui] Cruz. É das minhas bandas favoritas. Cheguei a vê-los duas vezes em Portugal. No Sudoeste, onde os fãs de Guano Apes começaram a mandar pedras e Oasis tocaram vinte minutos, e antes de acabarem, aqui no Altice.

Restantes datas da tour disponíveis no seu Facebook:

  • 3 de Setembro, Cascais
  • 9 de Setembro, Coimbra
  • 10 de Setembro, Porto
  • 11 de Setembro, Viseu
  • 12 de Setembro, Leiria
  • 15 de Setembro, Lisboa
  • 18 de Setembro, Aveiro
  • 25 de Setembro, Ovar
  • 30 de Setembro, Portalegre

Os bilhetes estão disponíveis na Ticketline e locais habituais

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