Entrevista. Pedro Morgado: “Não faz sentido pensar que as pessoas que sofrem de burnout não melhoram porque não querem”

por Ana Monteiro Fernandes,    1 Dezembro, 2021
Entrevista. Pedro Morgado: “Não faz sentido pensar que as pessoas que sofrem de burnout não melhoram porque não querem”
Pedro Morgado / Fotografia de Hugo Delgado
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O modo como o mercado de trabalho evoluiu colocou a sociedade em confronto com a exaustão física e mental resultante dessa mesma evolução. Os mais jovens, começando pelo Millennials e, agora, passando pela geração Z, apanharam a curva dessa evolução e, não raras vezes, quando vemos estudos ou artigos de imprensa sobre burnout, “uma síndrome clínica caracterizada por exaustão física e mental relacionada com a vida profissional e/ou escolar do indivíduo”, tal como o psiquiatra Pedro Morgado descreveu, vemos essa síndrome aliada a essas gerações. Isso talvez ocorra porque, ao invés da cooperação, as universidades tenham ensinado a palavra competição como defesa para se enfrentar um mercado de trabalho em mudança e em crise. No entanto, claro que qualquer pessoa pode desenvolver a síndrome, se estiver exposta a uma situação continuada de exaustão. Sobre esta questão, Pedro Morgado explica que tal se deve a “uma realidade complexa e que está, seguramente, relacionada com vários fatores. Desde logo, os baixos salários, a instabilidade contratual e a maior preponderância de modalidades contratuais baseadas na prestação de serviços sem vínculo contratual.”

No entanto, a síndrome do burnout não surge ligada só à profissão. Segundo o psiquiatra, “o burnout pode estar com qualquer atividade que “ocupe” uma fração significativa da vida de uma pessoa, seja o trabalho, seja o estudo ou ainda outras atividades como, por exemplo, prestar cuidados informais a um familiar doente e/ou dependente.” Muito frequentemente, e como refere Pedro Morgado, “o burnout evolui para doenças psiquiátricas como a depressão e as perturbações de ansiedade”, daí a necessidade de atenção. Até porque, como veio a público no mês de Março deste ano, 2021, Portugal é o país da União Europeia com maior risco de burnout e, como salienta o psiquiatra, “não faz qualquer sentido continuarmos a pensar que as pessoas que sofrem de burnout ou de uma doença psiquiátrica “não melhoram porque não querem.” A Comunidade Cultura e Arte falou com o psiquiatra e professor da Universidade do Minho, Pedro Morgado, sobre burnout, na entrevista que se segue, e tentou perceber de que forma empresas e universidades podem actuar para a atenuação do problema.

Vamos começar pelo conceito de burnout, já enquadrado pela OMS como sendo resultante de uma actividade profissional — «uma síndrome resultante de stress crónico no trabalho que não foi gerido com êxito» Que visão tem desta designação e o que é, afinal, o burnout?
O burnout é uma síndrome clínica caracterizada por exaustão física e mental relacionada com a vida profissional e/ou escolar do indivíduo. Trata-se de uma situação de natureza multifatorial que se relaciona com a natureza e a organização do trabalho, com o contexto pessoal, familiar e social e, também, com os fatores de vulnerabilidade e resiliência de cada pessoa.

Que manifestações o burnout poderá ter dentro de um contexto de trabalho? De que forma poderá afectar a pessoa dentro do seu ambiente de trabalho e na forma como trabalha?
O burnout apresenta, tipicamente, três diferentes dimensões sintomáticas: a exaustão emocional que se manifesta por afetos e emoções negativas relacionadas com o trabalho, a descrença e ineficácia profissional que se manifesta pela diminuição da realização e eficácia no trabalho e o distanciamento afetivo que se manifesta por uma insensibilidade, despreocupação e alienação em relação ao trabalho e aos outros. Do ponto de vista de sintomas, é comum surgirem sintomas de exaustão física, fadiga, insónia, tensão muscular, cefaleias, emoções negativas (raiva, medo, ansiedade e frustração) e sentimentos de sobrecarga e de incapacidade.

Muitas vezes, o burnout evolui para doenças psiquiátricas como a depressão e as perturbações de ansiedade, o que reforça a necessidade de se prevenir e intervir precocemente.

Pedro Morgado / Fotografia de Hugo Delgado

E socialmente e nas relações com o outro?
Muitas vezes, o burnout começa por manifestar-se mais criticamente no contexto laboral e por afetar as relações com os colegas de trabalho e os utilizadores do serviço. Vem a afectar, depois, as relações interpessoais noutros contextos, nomeadamente na família e nos grupos de amigos.

As empresas estão ou não sensíveis para esta questão? 
Muitas empresas começam a estar mais sensíveis para esta questão. Em alguns casos, a sensibilidade para esta questão está relacionada com a responsabilidade social das empresas e, noutros, deriva dos custos diretos e indiretos que o burnout tem para as empresas. Os recursos humanos são um ativo muito valioso das empresas, pelo que promover a sua saúde mental e prevenir o burnout resulta em ganhos sociais e empresariais significativos.

O que é que as empresas podem fazer para minimizarem e evitarem os casos de burnout?  
Há vários estudos que têm abordado os determinantes do burnout e as formas de o prevenir e gerir. Do ponto de vista da organização das empresas e do trabalho, é importante considerar medidas que garantam um ambiente laboral saudável e uma organização adequada do trabalho. Isto inclui a previsibilidade dos horários de trabalho, a compensação adequada do trabalho por turnos, a duração dos tempos de descanso, a minimização dos tempos de deslocação entre casa e o trabalho e a justiça organizacional e remuneratória.

Do ponto de vista da atuação mais personalizada, as empresas devem promover ações de formação no âmbito da literacia em saúde mental e, também, em programas de deteção precoce de sintomas de sofrimento psicológico, bem como diagnóstico atempado de situações de doença psiquiátrica.

A avaliação dos fatores de risco psicossociais de cada empresa permite que se possam implementar medidas gerais e individuais adequadas.

Pedro Morgado / Fotografia de Hugo Delgado

É menos focado publicamente, mas o burnout também pode ser comum em estudantes? Que papel podem as universidades ter aqui?
O burnout pode estar com qualquer atividade que “ocupe” uma fração significativa da vida de uma pessoa, seja o trabalho, seja o estudo ou ainda outras atividades como, por exemplo, prestar cuidados informais a um familiar doente e/ou dependente.

No caso do Ensino Superior, o tema tem sido extensamente estudado e existem várias iniciativas dirigidas a prevenir e intervir nestas situações. Na Escola de Medicina da Universidade do Minho, monitorizamos os níveis de burnout, ansiedade e depressão, desde 2009, e temos informação sobre os principais fatores que lhe estão associados, promovendo atitudes preventivas e de intervenção desde essa data.

Penso que as universidades devem colocar este tema na ordem do dia e implementar medidas de monitorização, programas de prevenção e intervenções dirigidas a este problema.

Na comunicação social, quando se aborda o burnout, este surge, muitas vezes, aliado à experiência laboral dos Millennials. Não é que os Millennials tenham especificidades ou uma propensão latente para casos de burnout. Mas que impacto acha que teve a “uberização” do trabalho nesta geração? 
Existe uma tendência crescente nos níveis de burnout na nossa sociedade e esses níveis parecem ser, particularmente, relevantes entre os mais jovens. É uma realidade complexa e que está, seguramente, relacionada com vários fatores. Desde logo, os baixos salários, a instabilidade contratual e a maior preponderância de modalidades contratuais baseadas na prestação de serviços sem vínculo contratual — esta uberização da sociedade e do trabalho faz de cada trabalhador um patrão de si próprio, condenando-se a uma autorresponsabilização excessivamente negativa. Por outro lado, vivemos dominados pelas narrativas do empreendedorismo que reforçam essa mesma autorresponsabilização e que ajudam a deslaçar as relações de cooperação no trabalho. Todas estas alterações têm impactos negativos na saúde mental de um número muito considerável de pessoas e pode relacionar-se com a tendência crescente em termos de burnout.

Pedro Morgado / Fotografia de Hugo Delgado

Que factores sociais aponta para só agora, nos últimos anos, se começar a falar em burnout? Pessoalmente, concordará que a tendência do “só não consegues porque não queres” tem tido as suas consequências negativas? Nota que há uma tendência para a perpetuação de culpabilização própria?  É um problema social a equalizar?
Globalmente, falamos mais do que nunca sobre saúde mental. Este mediatismo é positivo e contribui para que as pessoas estejam mais atentas a estes fenómenos e os tragam com maior frequência para o espaço público.

Sabemos que todas as questões de saúde mental são ainda altamente estigmatizadas e, por isso, precisamos de aumentar a literacia em saúde mental na população.

Não faz qualquer sentido continuarmos a pensar que as pessoas que sofrem de burnout ou de uma doença psiquiátrica “não melhoram porque não querem” ou “são fracas e incapazes”. Não faz sentido porque é falso e, além disso, tem potencial para agravar a situação das pessoas que estão a experienciar uma situação de sofrimento ou doença.

O coaching está muito em voga para o dinamismo e ânimo no mercado de trabalho. De que forma encara a actuação do coaching laboral? Será parte da solução ou um problema?
Pode ser uma solução ou um problema. Existem várias técnicas de intervenção que não estão, cientificamente, validadas e que podem causar dano nas pessoas. A regulação destas atividades é incipiente e as estruturas que a poderiam regular também não parecem muito interessadas em fazê-lo.

O que sabemos, com segurança, que funciona são as intervenções organizacionais, as ações de promoção da literacia em saúde mental e as avaliações clínicas que detetam, precocemente, situações de doença psiquiátrica. Penso que devemos concentrar as nossas energias nestas intervenções.

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