Entrevista. Ricardo Araújo Pereira: “É ótimo ouvirmos pessoas a dizerem coisas que vão contra aquilo que nós pensamos”

por Joana Lopes de Matos,    17 Abril, 2023
Entrevista. Ricardo Araújo Pereira: “É ótimo ouvirmos pessoas a dizerem coisas que vão contra aquilo que nós pensamos”
Ricardo Araújo Pereira / DR
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Esta entrevista foi realizada no âmbito de um trabalho para a unidade curricular de Produção Jornalística do curso de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH.

Quase que dispensa apresentações. Cronista na Revista E, do jornal Expresso, na Folha de São Paulo e com aparições televisivas no “Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer” (SIC Notícias) e no programa “Isto É Gozar Com Quem Trabalha” (SIC), Ricardo Araújo Pereira tornou-se uma das personalidades mais queridas pelos portugueses. 

Sentado numa sala de aula na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde atualmente também leciona Escrita de Comédia, Ricardo vai anotando ideias para piadas no seu caderno de apontamentos, conforme a conversa se desenrola. Com muitos risos à mistura, conta como foi passar do “pior jornalista do mundo”, como o próprio se designa, para um dos maiores nomes portugueses no panorama da comédia.

Do jornalismo para o humor

Estudou num colégio de freiras vicentinas, frades franciscanos e padres jesuítas e posteriormente seguiu Comunicação Social na Universidade Católica Portuguesa. O que o motivou a pôr de parte a área do jornalismo e focar-se no humor?
Não chegou a ser uma viragem, o jornalismo é que era uma viragem. E depois ofereceu-se aquela possibilidade de começar a escrever para os maiores humoristas portugueses, não é? Foi muito rápido: passar de nunca ter escrito um texto humorístico para começar a escrever para o Herman e a Rueff. Foi avassalador.

Certo, e como lidou com isso?
Com alguma dificuldade ao princípio porque quem quer fazer este tipo de trabalho não tem nenhum curso, não há nenhum sítio onde possamos dizer “Gostava de escrever textos humorísticos, vou-me inscrever”.

Daí até ter estudado Comunicação na Universidade Católica Portuguesa.
Exato! Embora as relações entre ambas as coisas sejam longínquas, têm talvez alguns pontos em comum. Mas como não é possível fazermos um curso, temos de fazer o nosso próprio: lendo e tentando estudar a razão pela qual algo tem graça ou não e como é que isso se consegue fazer. Claro que quando se tem 23 anos e se está a começar com uma responsabilidade daquele tipo era sempre muito duro pensar: “e agora, será que hoje vai sair alguma coisa?”

Se pudesse dar algum conselho ao Ricardo que estava na universidade a tirar Comunicação Social, qual seria?
Era… “vai mais para a biblioteca”. (risos) A sério! Tenho vários arrependimentos, mas um é não ter estudado mais. Isso está muito mal feito: agora apetece-me muito mais estudar do que quando tinha entre os 18 e os 23. Aliás, no outro dia inscrevi-me na faculdade, em Estudos Portugueses, tentei conciliar as duas coisas e fiz exames de Literatura Portuguesa Contemporânea e Introdução a Estudos Literários e tive 19 nas duas. Por isso tenho média de 19 no curso, só que faltam 70 cadeiras… Essa é a chatice!

“O humorista-ativista falha duas vezes: falha como humorista, porque está a pregar para convertidos, e falha como ativista, porque se é para fazer ativismo mais vale ir para o terreno fazê-lo. Estar a dizer coisas num palco sabe mesmo muito a pouco.”

Ricardo Araújo Pereira

O seu primeiro projeto na área do humor foi, então, com o Herman e com a Maria Rueff.
Exatamente! Escrevíamos o programa do Herman que tinha o texto de abertura, a rábula da Maria Rueff e talvez mais um ou dois sketchs. A seguir apareceu o Herman na rádio e era preciso fazer também um texto todos os dias. Fizemos uma crónica de uma personagem que a Maria Rueff tinha: um taxista que escrevia no jornal A Bola, fizemos o “Programa da Maria” também quando ela teve o seu próprio programa. E foi um treino muito importante. 

Às vezes vejo jovens humoristas que estão a começar agora e percebo que eles não tiveram a sorte que eu tive, porque eles estão a apresentar-se à frente das pessoas com os primeiros trabalhos que fizeram. Quando eu me apresentei pela primeira vez com a minha cara às pessoas eu já tinha bases. Já tinha mais de 10 anos de textos escritos para os maiores humoristas e, portanto, isso foi um treino. É indispensável.

Consegue reconhecer algum momento chave que o tenha feito perceber que o humor era a sua paixão?
Sim, acho que esses momentos foram evidentes ao longo da minha vida e até na infância. 
Foi-se tornando claro que tinha, e mantenho, um fascínio pela possiblidade de, ordenando as palavras numa frase de determinada maneira, elas no fim produzirem uma gargalhada noutra pessoa.

Foi algo natural, portanto. 
Não diria que é natural porque acho que não se nasce assim. É uma mania: assim como outras pessoas dizem “eu gosto muito de surf, por isso vou-me dedicar ao surf”. Eu gostava muito de ver o que acontecia à cara de uma pessoa quando ela se ria e por isso resolvi prestar atenção a este tipo de fenómeno. E de tentar perceber quando ele ocorria. 

No geral, qual foi o seu projeto preferido e de que se orgulha mais?
Talvez o Gato Fedorento seja o mais impactante porque quando o começámos a fazer ninguém nos conhecia. E, num espaço de 6 meses, as pessoas começaram a abordar-nos imenso na rua. Esse impacto foi bastante bruto. Fixavam frases dos nossos sketchs e depois gritavam-nas na rua: “15 a 0!”, “O que tu queres sei eu!” ou “Falam, falam!”. E isso foi muito divertido. Se, à partida, alguém me tivesse dito antes de começarmos a fazer o Gato Fedorento: “Olha, 4 rapazes desconhecidos vão fazer uns sketchs com muito pouco orçamento, sem qualquer jeito para representar e isso vai ser um êxito nacional” eu não teria acreditado. Foi basicamente como acertar na lotaria: é algo que ninguém consegue explicar exatamente por que é que acontece.

“Apesar de aparecer nos jornais, aquilo que eu faço não é jornalismo. Continuo a escrever textos humorísticos e não tenho nenhuma pretensão em estar a fazer outra coisa que não seja essa.”

Ricardo Araújo Pereira

E qual foi o seu sketch preferido?
Acho que os meus preferidos eram aqueles em que não conseguíamos filmá-los até ao fim porque começávamo-nos a rir, principalmente quando eram feitos ao vivo. Por exemplo, num dos primeiros em que eu interpretava o papel de um senhor que tinha sido violado por um urso, o Zé Diogo estava a fazer o sketch comigo e a rir-se, mas não havia maneira de parar. Já noutra fase, fizemos outro sketch chamado “O Gajo de Alfama” e há planos em que se nota que os meus amigos se estão a rir. Esses eram os que me agradavam mais, era divertido fazer isso quando aconteciam coisas dessas.

Desafios do Infotainment e da comédia na atualidade

Foi cronista na revista Visão e, atualmente, passou a sê-lo no Expresso. Sente que é possível conciliar o mundo do jornalismo com o mundo do humor?
Na verdade, não estou a participar no mundo do jornalismo. Apesar de aparecer nos jornais, aquilo que eu faço não é jornalismo. Continuo a escrever textos humorísticos e não tenho nenhuma pretensão em estar a fazer outra coisa que não seja essa.

Então não se considera jornalista.
De modo algum! Ainda assim, há alguns pontos de contacto. Por exemplo, o nosso programa parece um noticiário: dá a seguir ao noticiário “sério”, eu também estou sentado a uma mesa, também estou de gravata, também estou a falar de notícias ou de coisas que aconteceram. Mas é muito diferente de um noticiário: 15 minutos antes o Rodrigo Guedes de Carvalho diz “Esta semana, o Presidente da República…” e eu digo “o Marcelo” ou “o Costa”. Ou seja, percebe-se pela linguagem que é algo diferente. Mas há alguns pontos de contacto! Assim como no Jornal da Noite dedicam muito mais atenção àquilo que é mais importante, ou seja, ao Primeiro-Ministro, ao Presidente da República, etc., nós também! Não por razões jornalísticas de proeminência, mas por razões humorísticas.
É mais engraçado um palhaço atirar uma maçã podre à cara do Primeiro-Ministro do que à testa de um desgraçado que ninguém conhece.

Nos seus projetos na área da rádio e da televisão, informa a audiência relativamente aos temas da atualidade sempre de mãos dadas com o humor. Considera que este possa servir como uma fuga da audiência ao jornalismo convencional, de forma a continuar informado mas, ao mesmo tempo, entretido?
Se há pessoas que fazem isso eu desaconselho, porque nós não só não temos a missão de informar como não temos essa intenção. O máximo que fazemos é, por vezes, contextualizar algo por razões de eficácia para as pessoas perceberem a piada. Mas o nosso programa apresenta um olhar sobre as coisas que é bastante diferente do olhar jornalístico e não deve ser confundido com ele. Se as pessoas esperam ser informadas pelo nosso programa vão ter uma desilusão. 

Entre o olhar jornalístico acontece o seguinte: por exemplo, quando acontece uma comissão parlamentar de inquérito, aquilo dura 3 horas e no Jornal aparece uma peça de 1.30 min. com o essencial. É aquilo que o jornalista faz. Nós também podemos olhar para o essencial, mas o que é absolutamente supérfluo também nos interessa. Ou seja, não é tão importante para o jornalista se aquela pessoa repetiu várias vezes a mesma palavra, mas nós fazemos uma festa com aquilo. E acho que é possível argumentar que arranjamos maneira daquilo que parece supérfluo ser importante. Às vezes, a linguagem das pessoas não é apenas um pormenor: a linguagem também consegue ser conteúdo. 

Qual foi a maior crítica que ouviu relativamente ao seu trabalho? Como gere esse tipo de críticas?
Tenho a impressão de que as pessoas são sempre muito generosas connosco e de que somos nós que fazemos as maiores críticas. Aliás, nós no final de cada programa reunimos só para ver como tudo correu, para trocar algumas impressões sobre o assunto, e, portanto, nós temos uma consciência muito aguda do que é que falhou. A comédia tem uma componente de eficácia e é muito fácil percebermos se uma piada funcionou ou não, que é: se as pessoas riram. Muito, pouco ou nada.

Quando se inventa uma música eu não sei qual é a medida do sucesso. Se calhar, tem de se esperar e ver se ela vai para os tops ou que passe muitas vezes na rádio. No nosso caso, dizemos aquilo que temos para dizer: se isso provoca uma gargalhada percebemos pela sua dimensão se a piada funcionou ou não.

Dito isto, a minha amiga Joana Marques manda-me várias coisas que lhe dizem sobre ela e eu nem lhes chamaria críticas, são apenas insultos e coisas assim. Devo dizer que não tenho redes sociais. Mas estou muito obcecado com o que lhe está a acontecer: haver gente a dizer que o que ela faz é ilegítimo. Isso tudo tem me deixado muito interessado no fenómeno: ver que uma menina de 1.50m que fala na Rádio Renascença às vezes é considerada quase criminosa. Parece-me ser o reflexo do modo como as pessoas olham para a comédia hoje em dia: acham que é equiparável a uma agressão. E é por isso que, no palco dos Óscares, se uma pessoa faz uma piada e outra vai lá dar-lhe uma chapada as pessoas acham que a situação ficou equilibrada. Não põem o agressor na rua e passado uma hora estão a aplaudi-lo de pé. Parece que “ele foi primeiro agredido e depois agrediu-o”. Mas isto não é verdade. Comédia não é violência. 

“A coisa mais perigosa que pode acontecer a uma piada é ela não ter graça. Por que é que isso há de ter um limite?”

Ricardo Araújo Pereira

Acha que há limites para o humor?
(risos) Não, não acho. E acho que quem se dedicar à tarefa de os encontrar nunca mais vai parar. Aliás, isso é uma das coisas engraçadas que está a acontecer com a Joana Marques: todas as semanas ela descobre um limite novo para o humor. “Sobre isto não, sobre este tema não, sobre esta pessoa não”. É muito simples: se nós quisermos definir um limite e tentarmos estabelecer uma “ética do humor” vamos definir que “com ISTO não pode ser”. Por exemplo, um primeiro impulso poderia ser “o que é sagrado” e, por isso, os crentes têm direito a que o olhar humorístico não pouse na religião dele. Mas a questão é: então e para as pessoas para quem os deuses não são sagrados, mas o seu clube é? Há pessoas para quem Maomé não diz nada, mas o Sporting é importantíssimo, e eu compreendo. E quem sou eu para dizer que o Sporting não é assim tão importante? Para aquela pessoa é. Eu acho que, no fim, vamos descobrir que há sempre algo que é sagrado para alguém e isso não deve ser um pretexto para que o olhar humorístico deixe de pousar seja onde for.

Às vezes, há pessoas que pensam: “Ok, vamos estabelecer o seguinte: se tiver graça, a piada é válida”. O problema é: quem define o que tem graça? Eu acho graça a coisas, outra pessoa acha graça a outras e qual de nós está certo? Mesmo que inventemos um “comité de sábios” com pessoas que definem o que é legítimo ter graça, acho que não devia ser proibido fazer uma piada que não tem graça. O que é que acontece? Qual é o problema? 
A coisa mais perigosa que pode acontecer a uma piada é ela não ter graça. Por que é que isso há de ter um limite?

Sente que os programas de humor e entretenimento e, ao mesmo tempo, informativos (Infotainment) têm um papel importante no paradigma político? 
Acho que a importância, a ter alguma, é muito sobrevalorizada. Até há livros sobre isso, eu tenho alguns em casa, uma compilação de estudos sobre a influência que este tipo de programa tem nas pessoas. Há um conceito a que os estudiosos chamam “discounting cue” com o qual acho fácil simpatizar: as pessoas que me ouvem atribuem àquilo que eu digo um peso muito diferente daquele que atribuem ao que diz o Marques Mendes, por exemplo, porque o Marques Mendes é uma pessoa séria que está a falar “a sério”. Eu não sou uma pessoa séria que está a falar a sério e, portanto, aquilo que eu digo, por muito que as pessoas digam ser “muito bem-visto”, “muito acertado” ou “ter muita graça” não produz o mesmo efeito.

Outros estudos indicam o seguinte: mesmo quando estes programas têm um impacto nas pessoas, é muito difícil ou até impossível dizer que esse impacto gera uma mobilização ao ponto de se manifestarem ou de votarem de determinado modo. Por exemplo, nos Estados Unidos, quando o Jon Stewart apresentava o The Daily Show, o programa tinha algum impacto. Embora, e isto é curioso, tivesse no Estados Unidos mais ou menos a mesma audiência que o meu tem cá. Só que o meu é num país com 10 milhões de habitantes e o do Jon Stewart é num país de 350 milhões. O impacto que ele tinha não se devia à audiência, muito reduzida para os Estados Unidos, mas era por causa do que depois acontecia na Internet, da sua reprodução no Youtube, etc. Os estudiosos concluem que o impacto não é tão grande como pensamos porque as pessoas que veem o Jon Stewart já tendem a concordar com ele. Ou seja, não está a fazer proselitismo. Mesmo que a intenção dele fosse essa, e eu creio que naquela altura não era, ele não está a converter as pessoas, antes pelo contrário: ele está a falar para pessoas que já estão convertidas. 

É por isso que o humorista-ativista falha duas vezes: falha como humorista, porque está a pregar para convertidos, e falha como ativista, porque se é para fazer ativismo mais vale ir para o terreno fazê-lo. Estar a dizer coisas num palco sabe mesmo muito a pouco.

Num mundo em que as redes sociais, o online e a polarização da opinião pública são um tema de grande debate, como acha que será o futuro da comunicação, do jornalismo e do humor nos dias de hoje?
Tenho alguns receios nesse capítulo e acho que todos temos. Esta ideia de que de repente há um algoritmo. Eu entro no Youtube e este mostra-me conteúdo que sabe ser aquele que mais ou menos me interessa. Por exemplo, aparecem-me imensos vídeos de partidos políticos no computador que nós temos na SIC porque vemos imensas coisas de partidos políticos. E isso gera uma espécie de afunilamento do nosso olhar só para aquelas coisas, parece que só nos damos com as pessoas que acham o mesmo que nós, só vemos as coisas que reforçam as nossas convicções. 

Isso é bastante prejudicial e eu acho que um dos argumentos a favor da liberdade de expressão é esse: é ótimo ouvirmos pessoas a dizerem coisas que vão contra aquilo que nós pensamos e sobre as quais não gostamos. Vamos supor que alguém começa a defender que a terra é plana: sabemos que não é, mas eu acho que é possível ver alguma utilidade nisso. Porque nós vamos ter de nos esforçar — e às vezes é um esforço — para justificar esta nossa opinião, para demonstrar que nós sabemos argumentar naquele sentido. 
A partir do momento em que uma questão se torna um dogma deixamos de saber defendê-la com argumentos racionais. É perigoso.

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