Entrevista. Ricardo Cardoso e Rui Conceição: “Há aqui um equilíbrio entre o caos e a ordem e entre o caos e a ordem a arte nasce”

por João Estróia Vieira,    15 Abril, 2021
Entrevista. Ricardo Cardoso e Rui Conceição: “Há aqui um equilíbrio entre o caos e a ordem e entre o caos e a ordem a arte nasce”
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“Insultos de Pessoas Bem Educadas” é o espectáculo de Ricardo Cardoso e Rui Conceição que vem agora a palco no Porto, dia 12 de Maio no Hard Club e dia 25 de Maio no Teatro Villaret, em Lisboa (bilhetes aqui). Interrompida a possibilidade de estrear durante um ano, devido à pandemia da covid-19, os comediantes vão a palco para um momento a solo, cada um, e um momento final onde prometem insultar-se sem qualquer prurido.

Falámos com os dois e tentámos saber o que os levou a fazer este espectáculo em conjunto, o seu método, como se adaptaram às circunstâncias e sobre a evolução de um comediante.

Como é que surgiu esta parceria entre vocês e como é que chegaram ao conceito do espectáculo?

Ricardo: Isto começou há dois anos. Queríamos fazer espectáculos de comédia e isso era o ponto fulcral da questão. Já nos tínhamos cruzado várias vezes em palco e surgiu a ideia de fazer uma coisa em conjunto. Demo-nos bem e surgiu a ideia de começarmos uma tour de comédia. Inicialmente seria mais por bares e teatros mais pequenos onde pudéssemos fazer stand-up comedy. Devido à pandemia da covid-19 tivemos de mudar para teatros. O conceito do espectáculo surgiu de estarmos constantemente a mandar bocas um ao outro então, já agora, porque não tornarmos isso num espectáculo de comédia? Também temos alguns comediantes favoritos em comum como o Jeff Ross e o Dave Attell que fazem os Bumping Mics. Neste nosso espectáculo fazemos um bocadinho de stand-up os dois, um segmento normal, e no final temos uma troca de insultos entre os dois. Uma espécie de roast battle.

Rui: A mecânica do roast battle transformado numa espécie de diálogo agressivo. O roast é muito assente num one liner e resposta e nós, no nosso espectáculo, apesar de haver momentos desses, conseguimos incorporar outros elementos.

Ricardo: Sim, apesar de teres momentos com punchline consegues incorporar momentos onde se conta uma história hilariante, para não ser tão repetitivo.

Rui: Tanto eu como o Ricardo somos pessoas opostas em tudo e neste género de humor resulta muito bem. Eu sou um alvo fácil mas tu olhas para o Ricardo e é mais complicado. Agarrando em duas pessoas opostas neste tipo de espectáculo resulta sempre em algo fixe.

Mudaram algo no espectáculo por entretanto o mesmo ter sido adiado um ano devido à pandemia?

Rui: Houve mudanças. Eu emagreci 22 quilos (risos). Posso dizer que as piadas iniciais do Ricardo eram “o Rui é gordo”.

Ricardo: Vou-me defender. O Rui tem o ego de uma criança, então basta duas ou três piadas e ele “pronto, tenho que mudar de vida” (risos). Sentiu “oh meu Deus, estou de facto gordo”.

Rui: Foi aí que eu percebi que estava de facto gordo e quis dificultar a vida ao Ricardo. Um gajo que é gago, que já teve problemas com álcool e droga é um alvo fácil então tive de dificultar a tarefa.

Ricardo: Há muito para pegar. Seja um alvo fácil ou difícil o exercício é andares à procura das pequenas características ou coisas que a pessoa fez. Acho que não perdemos nada com isso.

Rui: Acho que a arte aqui é pegares em algo que o público não vê e expor. Isso é que é o difícil.

O exercício foi diferente para ti, Rui, do que foi para o Ricardo tendo em conta as vossas características?

Rui: Para mim, ao início, foi difícil. O mais instintivo é agarrar no que se vê. O Ricardo olhou para mim e viu alguém com a cabeça grande, dentes grandes, a gaguez e a gordura e é tudo muito óbvio. Olhando para o Ricardo não há nada. É um poço de nada. Um vazio. [Ricardo agradece o “elogio] (risos) Foi difícil para mim explorar outras avenidas, mas acho que o trabalho feito é óptimo.

Em que medida é que o Quarentena Show foi a vossa forma de ir testando o mesmo ou assumem o material que escrevem a priori como definitivo?

Ricardo: O Quarentena Show permitiu perceber que eu e o Rui temos uma química de trabalho fixe por sermos opostos. Aquilo acabava por funcionar e era eu e ele uma hora a falarmos. Tinha piada porque o Rui toma todas as más decisões que um ser humano é capaz de tomar e eu tomo todas as boas decisões. [Rui confirma].

Rui: Há aqui um equilíbrio entre o caos e a ordem e entre o caos e a ordem a arte nasce. [Rui interrompe a sua própria resposta para pedir ao entrevistador para anotar esta frase] Posso dizer que o Quarentena Show é isso que o Ricardo diz. Foi uma maneira de levarmos a palco aquilo que estávamos a pensar. Foi um penso rápido pois o nosso ego e a nossa alegria foi completamente abaixo. Já tínhamos o espectáculo todo planeado. Aliás, os bilhetes para o espectáculo foram lançados no dia antes de fechar tudo no primeiro confinamento.

Ricardo: Em relação ao material testado para o espectáculo, tu num teatro vais ver um stand-up de bar, por assim dizer. Tínhamos uma ou outra parte já experimentada num bar, em que vimos que isso tinha potencial e era divertido para nós e para o público. De repente tudo mudou e deixámos de poder ir a um bar ver se as coisas funcionavam. Acho que para o público vai sempre resultar, porque mesmo que uma piada nossa caia mal o outro vai-se rir desse falhanço e o público vai ceder e rir da desgraça do outro.

Ricardo, abordaste numa entrevista essa proximidade que deve haver com o público durante os espectáculos. Em que medida é que a pandemia também veio mudar isso?

Ricardo: Acho que a intimidade conta muito para o espectáculo, para o riso, para a pressão que existe nesse espaço mais intimista. Em teatro também tens isso, e da experiência que tive em fazer actuações em teatros já em plena época de covid também resulta, especialmente naqueles teatros mais acolhedores. É óptimo para o riso. Um pouco como no cinema. Se fores ver um filme cómico e estiveres numa sala cheia vais-te rir muito mais do que se estiveres numa vazia. Numa sala cheia, às escuras, as pessoas libertam-se muito mais e isso torna o espectáculo melhor.

Rui: Concordo com o que o Ricardo disse. Eu e o Ricardo idealizámos isto em teatros, depois, por força de circunstâncias tivemos de mudar para bares e eu achei que se calhar até seria melhor em bar. É uma vibe mais intimista. O riso aparece de forma mais unânime.

O stand-up era algo em que vocês sempre pensaram ou surgiu de forma natural em relação aos conteúdos humorísticos em que vocês trabalharam antes?

Rui: A necessidade de actuar nasceu a partir do momento em que realizei um dos meus objectivos que era editar um livro. Atinges o topo, o teu topo [Ricardo interrompe a entrevista para se rir desta consideração do Rui] A partir daí começas a pensar no que pode vir a seguir mas eu tinha muito o complexo da gaguez e de estar em palco, mas que hoje são algo que eu uso. Foi algo que cresceu de forma orgânica e hoje em dia até gosto mais de estar em palco que escrever online. Isso já é quase um part-time. O palco oferece-me prazer, adrenalina, nervos, ansiedade.

Ricardo: Eu sempre gostei muito de stand-up mas só havia duas ou três pessoas que eu gostava muito de ver. Quando comecei a ver o que se fazia cá em alguns bares vi coisas que não gostei tanto e dei uns passos atrás. Os espaços não ofereciam grandes condições a quem estava a actuar, os comediantes, naquelas condições não conseguiam oferecer um bom espectáculo. Lá fora actuas em imensos sítios e cá tinhas de actuar em sítios de guerra, onde havia pessoas que vão lá para estar com os amigos a falar e se estão a borrifar para o espectáculo. Hoje em dia já mudou bastante. Já tens sítios com algum nível de qualidade e páginas como o Humor Hiena que mostra onde isso acontece. Lá fora pude ir a Nova Iorque, ao Comedy Cellar e vi um nível totalmente diferente.

Rui: Eu fui o oposto. Eu tive ano e meio onde actuei em todo o sítio. Eu tenho gosto em ver algo que eu sei que vai correr mal. Eu estou a ver no público um bébé a correr, ou um cão, pessoas aos gritos, um gajo a fumar ganza e penso: “estou ansioso por ir a palco”. Mas isto é um bocado a maneira de ser. Nas noites em que correu mal aprendi muito. Aprendi sobre o que era necessário para captares a atenção das pessoas. Eu adoro um desafio.

De que forma é que o à vontade em palco que vocês vão ganhando é também um processo de ganho de confiança que vos fará abordar histórias cada vez mais pessoais?

Ricardo: Muito. Tenho muitas histórias que ainda não contei. Algumas já começo a contar por esse à vontade que vou ganhando. Algumas histórias são mais pesadas e ao início ainda não tens qualidade suficiente para pegar nessas histórias. Eu já começo a pegar em coisas muito pessoais e ainda tenho outras, para a frente, que estou à espera de ganhar essa maturidade para pegar nelas. Acho que ao início podes estar a desperdiçar histórias interessantes, que te aconteceram, porque ainda não tens a maneira certa de as colocar. Quero garantir que o vou fazer com a melhor técnica possível e sem o medo de expor. Faz parte dessa evolução. Cada vez vou tentando mais despir o meu ego.

Rui: Eu caí num erro ao início. A tendência que eu tinha era fazer piadas com assuntos mais acessíveis e simples e à medida que fui ganhando experiência fui trazendo isso que o Ricardo diz a palco. Eu não tinha receio de me expor, queria era achar uma maneira engraçada me expor. Hoje em dia já me sinto à vontade para isso.

Consideram isso um pouco de cinismo (não num mau sentido) da vossa parte para ganhar público? Isso de irem pelos temas mais seguros de fazer rir?

Rui: Não é para ganhar público, é para ter a certeza que vou a palco e oiço risos. É ter a certeza que vou a palco e as pessoas se vão rir do que eu digo.

Ricardo: É uma questão interessante. Há uma ou outra piada que eu não gosto tanto porque acho que é demasiado fácil e funciona muito bem. Tu aí ficas um bocado na dúvida se devias ou não tirar isso se é o que o público quer. Às vezes tiras porque te sentes mesmo barato e tu queres criar algo que nunca ninguém pensou e é aí que está a arte e o desafio. Depende do sítio, da localidade e essas coisas atormentam-me.

O stand-up para vocês é também um processo contínuo de ganho de confiança?

Rui: Eu não sou a pessoa que era há ano e meio, nem vou ser a mesma pessoa daqui a quinze anos que sou agora. Posso dizer que hoje em dia já abordo em palco a saúde, emagrecer e brócolos, que é uma coisa que eu nunca abordaria. É um processo de evolução enquanto adulto e o stand-up acompanha. Se fazes o mesmo stand-up que fazias há dez anos então és uma merda. Há pessoas que fazem disso o seu acto porque resulta, o problema é que o público aceita.

Ricardo: Acho que depende do público e do local o que o Rui diz. Imagina que vais fazer um espectáculo num casamento e sabes que isso funciona. Acho que não é por aí. Vais amadurecendo, vais despindo um bocado os teus preconceitos e o teu material vai acompanhando. Acho que antigamente as pessoas tinham o que o Rui estava a dizer, o seu material fixo, a receita de sempre e não muda. Acho que hoje em dia vês alguém o ano passado e queres ver como evoluiu para este ano.

De que forma é que uma pessoa não fazer vida da comédia também permite esse desprendimento de que falam?

Rui: Não te consigo dizer. Não te consigo dizer que não o faria. Provavelmente assim que visse a conta da EDP e da água…

Ricardo: Se vivesses disso acho que mesmo assim ias tentar meter coisas novas. Vais a um sítio, ou tens uma zanga com a namorada ou ex-namorada e de repente tu só pensas em passar aquilo para palco, tens aquele “músculo” do comediante.

Rui: Às vezes isso acontece-me. Às vezes estou a discutir e já me estou a rir. A minha namorada fica a olhar para mim e pergunta “o que é que se passa?” e eu “nada, nada. Eu disse o quê? E tu disseste o quê?”.

O que é que vos motivou a começar a treinar esse “músculo”?

Ricardo: As histórias que vais tendo durante a tua vida vão-te ajudar a fazer isso, a usar a comédia quase como mecanismo de defesa para aguentar a vida em si. Só mais à frente é que começas a pensar que isto é mesmo uma “coisa” e que há pessoas que usam este mecanismo para fazer espectáculo. Depois corre mal e queres experimentar a ver se corre bem da próxima vez e vais evoluindo, lentamente. Acho que é isso.

Rui: A partir do momento em que vi que fazia as pessoas rir e isso me dava atenção. Eu sempre fui um puto isolado e a partir desses momentos comecei a ver os olhos na minha direcção e a ver que tinha algum valor. Comecei a procurar isso como meio de valorizar aos olhos alheios. Hoje em dia, infelizmente ainda é assim, ainda sinto necessidade de aprovação. Foi algo que desenvolvi ao longo destes últimos anos e sinceramente até tenho dificuldade em não agir assim.

Querem continuar a explorar o stand-up ou outro tipo de conteúdos?

Ricardo: Adorava explorar outro tipo de conteúdos mas e financiamento para o fazer? Acho que é a principal razão de eu não estar todos os anos a fazer coisas. Fazer algo com qualidade requer um financiamento alto. Às vezes aparecem coisas e podes pegar nesse projecto. O stand-up vai sempre existir porque é a arte mais pura de fazer humor. Podes ter apoio audiovisual mas nada substitui essa energia. Temos algumas ideias em gaveta para outras coisas que talvez um dia possam acontecer.

Rui: O que o Ricardo disse. Eu e o Ricardo já temos uma certa exposição que nos impede de lançar algo amador. Quando queres lançar algo com qualidade é necessário um grande investimento. Já temos algumas ideias, mas são basicamente isso.

Não sentem que têm de estar sempre à tona? Que há uma pressão constante para te manteres relevante?

Ricardo: É verdade, infelizmente. Por mim apagava o instagram e nunca o utilizava, para nada, mas tenho pressão das pessoas para meter stories, fazer publicações, etc. Já consigo fazer isso de forma a que me dê algum prazer. Depende também do público. Podemos estar a falar de um público mais evoluído, que tenha uma boa memória e para esse não precisas de estar sempre a aparecer, como na música onde não tens o teu cantor favorito todos os meses a dizer que lançou uma música nova. Lança de dois em dois anos ou mais e tu vais logo a correr. A verdade é que esse tipo de público cá em Portugal é quase um nicho e isso obriga-te a aparecer mais vezes. É a minha perspectiva.

Rui: A questão aqui é como o público o está habituado a ver. O público do Ricardo habituou-se a vê-lo em vídeos, por exemplo. Existe aí maior “responsabilidade”. Eu apareci a escrever e enquanto me mantiver a fazer mantenho-me relevante. A questão é que assim não terei a exposição que o Ricardo tem, obviamente, mas também não é algo que ambicione. Eu vou andando a fazer isto à medida que me sentir bem. A partir do momento em que sentir isto que o Ricardo diz e hoje em dia já estou a sentir, a pressão em eu aparecer, isso começa a irritar-me um bocadinho e eu não tenho esse know how em saber aparecer, nem vontade.

Essa pressão não é contraproducente?

Ricardo: É, eu por exemplo já não meto nada no canal há mais de um ano. Sinto que tenho de aparecer, mas se sinto que não tenho algo de relevante para aparecer. Respeito demasiado o público que me segue para só estar a “aparecer porque sim”. Farei vídeos quando achar que o conteúdo tem piada e precisa ser falado, ponto. Aparecer porque assim tem de ser todas as semanas não faz sentido para mim. Uma coisa é quando tens um contrato com alguma entidade e tens de ter um programa semanal ou diário é outra história. Quando não tens essa obrigatoriedade não tens de o fazer. Tento ter esse cuidado.

Rui: É uma pescadinha, às tantas, porque o facto de criares algo novo gera conteúdo que te alimenta.

Porquê “Insultos de Pessoas Bem Educadas”?

Ricardo: É um espectáculo de insultos. Inicialmente pensei que ia ser mais bem educado. Vai haver asneiras? É capaz. É muito provável que haja.

Rui: Haviam bué nomes. Alguns giros, outros não. Queríamos escolher algo que mostrasse o conceito e queríamos também colocar ali algo que fosse um bocado de gimmick, mas se querem perceber então vão ao espectáculo ver se são realmente insultos de pessoas bem educadas ou não. Vão perceber o nome no final.

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