Entrevista. Ricardo Paes Mamede: “Há o risco de a Europa se tornar no museu do mundo. E isso é um problema”

Economista, professor universitário e atual diretor do ISCTE-Sintra, Ricardo Paes Mamede tem dedicado a vida a especializar-se em políticas públicas económicas. Foi coordenador do núcleo de estudos e avaliação do Observatório do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), diretor de serviços de análise económica e previsão do Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia e Inovação e integrou o Conselho Económico e Social.
Ao longo dos anos, tem também partilhado a sua vasta experiência de forma pública, como cronista nos jornais ou comentador nas televisões. É numa fase de transição da política portuguesa, com eleições legislativas marcadas para 18 de maio, que Ricardo Paes Mamede se senta para uma entrevista com a Comunidade Cultura e Arte que foi gravada no Goethe-Institut, em Lisboa.
Durante cerca de uma hora e meia, questionámos o economista de 51 anos sobre a sua visão económica para o país — os setores-chave que têm passado ao lado do Estado, o problema da dependência excessiva do turismo, a crise da habitação ou os padrões económicos dentro da União Europeia que se têm revelado negativos para países como Portugal.
Recentemente, numa entrevista ao Público, falou da questão de os mini ciclos da política muitas vezes contribuírem para uma certa desvalorização ou questionamento das pessoas em relação ao sistema político, às instituições e ao regime. De que forma é que os agentes políticos devem ter isso em conta na sua forma de agir para que exista uma certa estabilização, sendo mais ou menos consensual que as pessoas não querem estar em períodos de eleições de forma recorrente? No sentido lato, como olha para essa questão?
Para mim, a pergunta não é assim tão fácil. Eu não valorizo a estabilidade política por si só e ainda valorizo menos se tivermos no poder um governo que desenvolve políticas com as quais não concordo e que eu combato. Nesse sentido, não posso valorizar a continuidade dos governos e há momentos em que aquilo que devemos mais desejar é mesmo a interrupção de certas governações. O problema coloca-se sempre em saber quais são as alternativas que temos. No momento atual, é muito difícil aspirarmos a que se constitua uma maioria no Parlamento em condições de, não só pôr termo a algumas orientações que este governo tinha vindo a seguir e a implementar; mas ainda menos uma maioria que permita fazer alguma inversão substancial, alguma reorientação relevante das grandes opções de governação que têm sido seguidas no país nos anos mais recentes. Nesse cenário, parece-me preferível que a alternância não traga grandes modificações, parece-me preferível termos partidos que não ponham em causa essa continuidade, essa estabilidade, a não ser por razões de força maior. E não foi isso que aconteceu até agora. E valorizo, nesse sentido, que haja uma busca de algum entendimento, porque, efetivamente, a maior parte da população tem dificuldade em perceber porque é que é chamada a votar.
E acredita que essa deveria ser uma preocupação bastante presente neste momento, na classe política, tendo em conta tudo aquilo que se tem vindo a falar, da desvalorização dos sistemas políticos parlamentares democráticos, da ascensão dos populismos que os vêm questionar? É uma preocupação mais premente agora do que há 10, 20 ou 30 anos?
Acho que há motivos adicionais para se pensar duas vezes antes de se forçar a interrupção de uma legislatura. Agora, se houver um governo que queira impor uma ainda mais acelerada privatização do Serviço Nacional de Saúde, se tivermos um governo que queira destruir por completo o princípio da progressividade dos impostos, se tivermos um governo que queira levar o país para a guerra, sem qualquer perspetiva de resolver seja que problema for… Estes são exemplos de motivos que, para mim, mais do que justificam que se ponha em causa a continuidade de um governo.
“A maior parte da população tem dificuldade em perceber porque é que é chamada a votar.”
Claro, a estabilidade só é desejável até certo ponto, evidentemente.
Agora, se não estão em causa nenhuma destas coisas, acho que os partidos, quer quem governa, quer quem está na oposição, não defendendo no imediato nada de substancialmente distinto, devem procurar evitar estas instabilidades políticas que são efetivamente difíceis de explicar à generalidade da população. E isso tem custos na reputação da democracia, das instituições, na desmobilização das pessoas.
E é algo difícil de contrariar quando de facto está a acontecer.
Eu creio que neste caso não há muitas dúvidas de que o governo e o líder do PSD tiveram uma opção declarada de levar o país para eleições. Poderia ter acontecido com o maior partido da oposição e eu não teria uma posição diferente. Acho que, quando há bons motivos para que se ponha em causa a continuidade do governo, deve-se pôr em causa a continuidade do governo. Neste caso, quem fez sabendo que ia provocar uma crise política, fê-lo sem que haja nenhuma justificação substancial sobre orientações de política. Fê-lo essencialmente para lidar com uma polémica que fragiliza muito o chefe de governo e isso não me parece verdadeiramente razoável.
“A forma como se tem vindo a conduzir a política de desenvolvimento económico em Portugal nos últimos 25 anos ou 30 anos não é muito promissora”
Passando de um campo mais prático para um campo mais teórico. Ao longo dos anos tem vindo a partilhar a sua visão sobre uma série de temas, sobretudo relacionados com a economia. No seu entender, o que é que o próximo governo, seja qual for, até numa perspetiva mais sonhadora — utópica, se quiser — deveria fazer para desenvolver a economia portuguesa? Ou seja, quais são os setores-chave que, para si, não têm sido explorados, as apostas que não têm sido feitas? Acredita que o Estado deve ser um agente mais ativo no desenvolvimento da economia e definir uma direção dentro desse desenvolvimento? Qual é a sua visão?
Não sou uma pessoa muito dada a pensamentos utópicos. Não é que desvalorize a utopia, acho que ter pessoas que pensam sistematicamente em mundos que não são imediatamente alcançáveis, mas que devem guiar a nossa ação e os nossos valores, é muito enriquecedor da democracia e da vida em sociedade. Eu não tenho esse perfil. Tenho um perfil muito mais operacional, se quisermos. O meu pensamento tende a ir para encontrar soluções dentro dos constrangimentos em que vivemos a cada momento, sem perder de perspectiva o questionar desses constrangimentos e a possibilidade de os virmos a ultrapassar, mas nunca me fico apenas na ideia de quais são os constrangimentos que seriam bons, de forma utópica, ultrapassar. Prefiro pensar: ‘dentro desses constrangimentos o que é que se pode fazer?’. Desse ponto de vista, não tenho grandes dúvidas que se poderia estar, na esfera da economia, mas também em muitas outras esferas da governação, a fazer coisas que são substancialmente diferentes, sem deixar de ser muito pragmático. Acho que a forma como se tem vindo a conduzir a política de desenvolvimento económico em Portugal nos últimos 25 anos ou 30 anos não é muito promissora. Apesar de alguns resultados que tem vindo a produzir, condena o país a uma economia muito frágil, muito dependente e com perspetivas de desenvolvimento a prazo que são muito questionáveis.
Existem setores específicos que acha que deveriam ser prioritários para o Estado ou que pelo menos deveriam ser um foco muito maior do que na realidade são? No sentido de desenvolvimento da economia portuguesa. Existem coisas específicas que fariam diferença e nas quais não houve aposta nem visão para as concretizar nos últimos 25 ou 30 anos?
Houve uma visão. Ao contrário daquilo que algumas pessoas sugerem, tem havido uma estratégia de desenvolvimento económico. O problema não é a ausência de estratégia. O problema é não concordar com essa estratégia. A estratégia que tem vindo a ser seguida em Portugal baseia-se, essencialmente, em três eixos fundamentais. Há um primeiro que consiste na ideia de investir em inputs de conhecimento, ou seja, investir em qualificações, financiar muita atividade de investigação e desenvolvimento, seja nas universidades, nos centros tecnológicos, nas empresas, com a ideia de que se gerarmos estes conhecimentos, estas competências, irá emergir um processo de transformação económica. O segundo eixo é a estabilidade macroeconómica, que tem a ver com as obsessões do déficit e da dívida e com a regulação do sistema financeiro. E o terceiro eixo é a flexibilidade microeconómica, que se reflete essencialmente nas políticas de desregulação do mercado de trabalho, com o argumento de que precisamos de ter um mercado de trabalho muito flexível para responder às preocupações da procura, e as empresas têm de ter mecanismos para aumentar o nível de emprego para conseguirem reagir a essas flutuações e também na regulação dos mercados de produtos.
A expetativa é que esta estratégia, que nasceu com a famosa Estratégia de Lisboa na viragem do século, iria levar a que houvesse uma maior concentração do investimento em atividades de maior valor acrescentado. Mas não é a isso que assistimos. É verdade que houve e que tem estado a emergir muita atividade económica em Portugal de empresas que se dedicam a atividades tecnologicamente mais sofisticadas, seja no setor da indústria transformadora, seja nos serviços tecnológicos, e não tem comparação com o que era há 20 ou 30 anos. E isso deve-se, em larga medida, ao primeiro eixo desta estratégia de investimento nos inputs de conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, quando olhamos para os últimos 30 anos e percebemos quais foram as grandes transformações estruturais em termos de volume, vemos que há duas grandes alterações. Uma é uma queda abrupta na indústria transformadora e a outra é um aumento maior ainda do imobiliário. Isto quando olhamos para o peso das atividades no valor acrescentado e, no caso do turismo, quando olhamos para a mão de obra. Ora, estes setores, apesar de terem permitido na última década alguma recuperação face à crise que vivemos, são setores que prometem muito pouco a longo prazo. E, portanto, nós precisamos de encontrar atividades económicas que, na verdade, já existem em Portugal.

Quer dar alguns exemplos?
Já darei exemplos, mas acho que é importante percebermos de onde é que isto vem. Nós precisamos de encontrar algumas áreas de atividade económica em Portugal que reúnam três características — mais uma. São três características de competências que existem já em Portugal. Competências científicas, competências tecnológicas e competências empresariais. E que, ao mesmo tempo, correspondam a áreas de atividade económica que estão em crescente procura internacional. Temos vários casos que ainda são pouco conhecidos, porque não têm muito peso ainda na economia nacional. Apesar destas competências já existirem e serem bastante relevantes, o peso que têm, em termos de valor acrescentado, em termos de emprego, é pequeno. Não são setores, nós não podemos dizer que é o têxtil, que são os moldes, é a indústria agroalimentar, é o software. Tipicamente, são cruzamentos entre áreas científicas e tecnológicas onde o país tem desempenhos excecionais e algumas áreas de aplicação. Por exemplo, se pensarmos em construção, queremos um país especializado em construção? Imediatamente diríamos que não, construção não é um setor promissor. E, no entanto, temos aplicação de tecnologias de materiais na construção, que são das mais avançadas que existem a nível internacional. Até na cultura. Nós temos, por exemplo, empresas a trabalhar na área da insonorização de grandes salas de espetáculos, que vendem para as cidades mais exigentes, têm projetos em todo o mundo, nos Estados Unidos, na Austrália, na Inglaterra, na Alemanha, na Áustria e que são capazes de, através de técnicas de construção, utilizando ciências de materiais, tirar partido dos investimentos que fizemos em ciência e tecnologia, proporcionar respostas que são das mais avançadas a nível internacional. Poderia dar inúmeros outros exemplos. A aplicação da biotecnologia à agroindústria. A aplicação dos polímeros à área dos plásticos e à saúde. Não faltam exemplos de domínios onde as competências já existem.
Mas têm o potencial para aumentar significativamente o valor acrescentado e o emprego, para que se tornem setores robustos e motores da economia nacional?
A questão é que não há nenhuma política em Portugal que vise impulsionar estas atividades onde já existem capacidades para que tenham uma grande projeção a nível internacional. E por que não existe? Porque não houve nenhum governo, fosse ele do PSD ou do PS, que tivesse uma política ativa de identificar estes nichos de grande capacidade e fazer uma pergunta muito simples que é: o que é que falta a estas áreas em específico para elas conseguirem projetar-se a nível internacional? Portanto, isso significa que não há políticas específicas de qualificação de trabalhadores para estas áreas. Não há políticas específicas de ciência e tecnologia para estas áreas. Não há políticas específicas de infraestruturas tecnológicas para estas áreas. Não há políticas específicas de diplomacia económica e internacionalização para estas áreas. Portanto, é esta ausência de capacidade de selecionar e de concentrar esforços, não apenas recursos financeiros, mas acima de tudo a atenção de decisores políticos, que está a faltar. Isto não tem existido e eu creio que faria muita diferença. Não era para amanhã, não era para daqui a três anos, mas no desenvolvimento da economia portuguesa a prazo a história mostra que é assim que os países se desenvolvem.
“Objetivamente, não temos as condições do ponto de vista histórico e cultural para construir uma democracia federal de escala europeia.”
Na entrevista ao Público que eu mencionava há pouco, falava dessa falta de pensamento a longo prazo, que muitas vezes existe, especialmente nestes casos de legislaturas tão curtas. Mencionou também o turismo e, nos últimos meses, quando o INE revelou os dados do setor de 2024, comentou a forma como o turismo é percepcionado enquanto parte integrante da economia portuguesa. Obviamente, os problemas e os efeitos negativos que o turismo traz estão mais do que explicados, da habitação ao tipo de emprego. Mas quais são os perigos, em termos económicos, de termos uma economia demasiado dependente deste tipo de setor?
Para não ser acusado de estar a querer destruir o turismo em Portugal, deixem-me começar por falar sobre os benefícios do turismo, sejam económicos, sejam de outra natureza, inclusive cultural. O turismo foi fundamental para a recuperação económica pós-Troika. Criou emprego e atividade económica, atraiu investimento, favoreceu a recuperação de edifícios, favoreceu até alguns investimentos em infraestruturas, garantiu a redução da dívida externa, porque é um contributo fundamental para as exportações, porque o turismo é essencialmente exportações. Portanto, tudo isto foram aspetos benéficos que o turismo trouxe a Portugal. Depois há outros que, neste momento, já nem é preciso discutir muito.
Como a crise da habitação?
Os efeitos do turismo sobre a habitação são múltiplos, não são só os hotéis e o alojamento local. É também o facto de ser um setor que exige muita mão de obra e, portanto, para funcionar, precisa de atrair muitas pessoas para os locais que são pontos turísticos, agravando a pressão sobre a habitação. E são também os efeitos que tem tido no investimento imobiliário. Começa a haver um investimento que é essencialmente especulativo, os preços começam a subir e atraem mais investidores, não porque querem construir mais, mas porque essencialmente têm expetativa de que os preços irão aumentar e, por isso, os preços aumentam. Outro dos efeitos que o turismo tem sobre o mercado da habitação é o facto de, havendo tanta visibilidade no país, isso também atrai mais pessoas que querem vir viver para Portugal. Por exemplo, explicar o aumento dos residentes norte-americanos em Portugal é indissociável do boom turístico que houve, da atração turística que houve junto desse mercado. O turismo tem impactos também ao nível do ambiente. E tem impacto ao nível das infraestruturas ambientais. Nós não tínhamos toda a infraestrutura de tratamento de resíduos ou tratamento de esgotos preparada para o aumento da população permanente que o turismo acarreta. O turismo tem impacto até sobre o tipo de atividades culturais que se desenvolvem. Mais standardizadas. Embora também crie algumas economias de escala que são positivas. Mas também tem problemas que estão muito associados à qualidade do emprego.
Perguntamos: o turismo cria emprego? Sem dúvida nenhuma. Olhemos para o emprego que o turismo cria: 40% dos trabalhadores do setor do turismo recebem o salário mínimo. Não há nenhum setor de atividade económica em Portugal em que isto aconteça. Mas não tem só a ver com o salário mínimo. É um dos setores mais afetados pela informalidade e pela sazonalidade. As pessoas só trabalham numa parte do ano. É um setor muito afetado por horários completamente atípicos. Pensem no funcionamento de um restaurante; as pessoas que lá trabalham vão trabalhar um bocado de manhã, vão trabalhar um bocado à noite, têm as vidas completamente desorganizadas. É um setor com muita precariedade laboral. E, portanto, nós devemos perguntar também se é este o tipo de emprego que queremos gerar. A resposta habitual que eu recebo quando tenho este discurso é que mais vale termos emprego, mesmo que precário e mal pago, do que não termos emprego de todo. E aí surgem os impactos que o turismo tem sobre o resto da atividade económica.
Quando temos uma atividade em expansão que está a consumir recursos, significa que há menos recursos disponíveis para outras atividades económicas. Desde logo espaço, as empresas que têm de atuar em zonas com muita pressão turística vão ter de pagar rendas muito mais altas. Vão também ter de pagar salários mais altos, porque as pessoas para viverem nessas cidades têm de ter salários mais elevados que compensem esses custos mais elevados. Os serviços públicos têm cada vez mais dificuldade em atrair profissionais. Hoje é muito difícil atrair professores para o centro de Lisboa ou para o centro do Porto devido aos preços da habitação. No Algarve também. Portanto, não é correto dizer que o turismo não causa impactos sobre outros setores da comunidade. Causa esses impactos e, portanto, nós estamos a caminhar para um país que já hoje é o mais dependente do turismo em toda a União Europeia e um dos mais dependentes do turismo, só estando atrás da Colômbia e do México, em toda a OCDE, exposto a este padrão de desenvolvimento e ainda mais exposto à vulnerabilidade brutal que um setor destes tem, como nós vimos na pandemia.
Quando se fala internacionalmente e até em termos mais teóricos de casos destes ligados ao turismo, é sempre apontado como um setor que pode ser importante, mas que tem sempre esses perigos associados, enquanto setor força motriz de um país?
Se formos ver os relatórios dos últimos anos da OCDE, que tem todo um departamento dedicado aos temas de turismo; ou da Organização Mundial de Turismo, que é uma agência das Nações Unidas; e já nem falo da Organização Internacional do Trabalho, que também tem feito relatórios sobre os impactos do turismo na qualidade do emprego; mesmo os mais otimistas em relação ao turismo enquanto atividade que traz vantagens para as economias e para as sociedades, todos eles chamam a atenção, primeiro, para os problemas que o turismo acarreta; segundo, para a importância crucial dos países que sofrem as pressões turísticas de terem medidas que minimizem os efeitos negativos e potenciem os efeitos mais positivos. E eu não vejo isso a acontecer em Portugal.
Que medidas específicas nesse sentido poderiam ser implementadas nesta fase?
As medidas mais consensuais passam essencialmente pela diversificação de destinos e pela diversificação de épocas do ano. Ou seja, procurar explorar nichos de mercado que não se concentrem todos na mesma altura e tentar promover destinos turísticos, e também ter atividades dentro dos mesmos que dispersem um pouco a presença dos turistas pelos territórios. Agora, no momento que vivemos em Portugal, creio que temos de encarar, de forma clara, medidas restritivas para o contínuo crescimento do turismo.
Tal como aconteceu nalgumas cidades da Europa que têm sido muito pressionadas pelo turismo.
Sim, o turismo vai continuar a crescer a nível mundial. Basta pensarmos que a China e a Índia, que juntos representam mais de um terço da humanidade, são sociedades que têm estado no processo de grande desenvolvimento económico, que estão a aumentar às dezenas ou centenas de milhões o número de pessoas que entram na classe média e onde as aspirações culturais, recreativas, de descobrir novos mundos, têm vindo a aumentar. Portanto, o turismo não vai parar de aumentar. Se acharmos que não há limites, como já ouvi importantes responsáveis políticos em Portugal a dizer, que não há limites para o crescimento do turismo…. Se, pelo contrário, percebermos que, a partir de certo nível, os custos são maiores do que os proveitos, temos de começar a criar algumas limitações e há formas de o fazer, além daquilo que eu já referi, nomeadamente, impondo ou aumentando as taxas turísticas, limitando a conversão de habitação em alojamento para turismo, restringindo a atividade do investimento imobiliário que não esteja associado à criação de novos alojamentos. Tudo isto são exemplos de medidas que podem ser tomadas e que têm vindo a ser tomadas, muitas delas em muitos países, nalguns de forma mais agressiva, noutros menos, mas há muita coisa ainda por fazer em Portugal.

Até porque não se chegou, como disse, à primeira fase de resolução do problema, que é aceitar que pode existir um problema e que é necessário tomar medidas.
É normal, vive-se em Portugal há vários anos uma ideia de que o país tem um problema muito sério de crescimento económico. Não me parece que o país tenha um problema muito sério de crescimento económico, parece-me que o país tem um problema muito sério de padrão de desenvolvimento económico. Mas, em qualquer caso, essa é a visão dominante, estamos a crescer a ritmos muito baixos e o turismo é um setor fundamental para evitar a diminuição da taxa de crescimento. Infelizmente, o poder que este tipo de indicadores têm na condução da política pública é tão grande que eu não estou a ver nenhum governo a tomar medidas muito decisivas sobre o assunto. Tenho alguma esperança que, apesar de tudo, se caminhe num sentido, não numa ruptura repentina, mas num processo gradual que vá limitando a expansão deste setor na economia nacional.
E aí também poderia haver responsabilidade das câmaras municipais, que têm certos poderes nesse sentido.
As câmaras municipais têm algum poder, mas o Estado Central aqui tem um efeito e um papel mesmo decisivo.
Pegando naquilo que estava a dizer da China e da Índia, existe o risco de a longo prazo a Europa se tornar cada vez mais uma estância turística cultural? Para essa classe média que vai crescendo aos milhões? Isso obviamente leva-nos à discussão sobre que Europa queremos e sobre a economia europeia.
Os países do Ocidente são responsáveis por dois terços das receitas do turismo na Europa. Ou seja, os países mais ricos do mundo são aqueles que mais turistas recebem e mais receitas fazem com o turismo. Não é um problema que o turismo exista nas sociedades. É um problema quando o turismo se torna predominante nas sociedades. Porque, além dos custos todos que nós já aqui referimos, o turismo tem pouco potencial de aumento da produtividade. E quando falo em aumento da produtividade, no fundo estou a falar do que fica depois de se fazer a atividade económica para se distribuir em forma de lucros e de salários, que é muito reduzido. A produtividade dos setores de turismo é muito, muito diminuta. Além disso, tem uma probabilidade de progressão ao longo dos anos que é também muito reduzida. Alguém que produz têxteis pode pensar em cruzar os têxteis com tecnologias dos materiais, com engenharia de produção, com novo design. O potencial de aumento da produtividade do turismo é muito mais limitado do que a generalidade dos setores. E, portanto, a sobrespecialização do turismo põe em causa o potencial de desenvolvimento económico a prazo. Se me perguntam se acho um risco ou um problema que a Europa se torne no museu do mundo… sim, acho que é um problema. Agora, isso não significa que o turismo não possa ter, como já tem, um papel muito relevante nas nossas sociedades. Acho que a Europa, de facto, tem uma história, uma cultura, uma paisagem natural, uma arquitetura que são valores fundamentais e que devemos partilhar com o resto do mundo. Não devemos ter problemas com isso. Mas devemos resistir à tentação de viver disso.
E o principal risco que identifica, quando olha para a possibilidade de a Europa se tornar no museu do mundo, tem a ver com a estrutura económica da União Europeia ou dos vários países que a compõem também ficar como a estrutura económica portuguesa de que falava há pouco?
Eu não me preocupo muito com a Europa como um todo. Porque a Europa tem economias muitíssimo industrializadas, muitíssimo avançadas do ponto de vista científico e tecnológico. França é um país que é a primeira ou a segunda potência turística mundial. Podemos pensar, bom, França está a correr um risco enorme de se tornar no museu do mundo. Não é verdade. O peso do turismo em França é metade do peso do turismo em Portugal. França é uma grande potência mundial de turismo, simplesmente porque é um país muito grande em relação a Portugal e, portanto, obviamente, atrai muito mais pessoas em volume, que deixam muito mais receitas em França. Mas, na verdade, França continua a ter uma base industrial com empresas multinacionais que têm uma importância muito relevante e nunca abdicou de o fazer. Deixando de lado a União Europeia, dentro da Europa temos um pentágono que é constituído por Londres, os Países Baixos, Paris, o sul da Alemanha e o norte de Itália, onde se concentra um volume de investigação e desenvolvimento de alta tecnologia que tem enormíssimas capacidades. E sim, estão-se a fazer pressões muito grandes da concorrência da China, os países da União Europeia não têm grandes empresas tecnológicas como os Estados Unidos, na verdade nunca tiveram, mas isso não impediu a União Europeia de se ter aproximado muito dos Estados Unidos, em termos de potencial tecnológico, desde a Segunda Guerra Mundial. O meu problema não é com a União Europeia como um todo, o meu problema é muito mais com as periferias, em particular com as periferias do sul da Europa e, em particular, dentro destas, com Portugal, porque é o país onde vivo e a que pertenço.
São esses países que estão mais em risco nesta questão de o turismo ser o grande setor económico?
O que se passou nos últimos anos foi um acentuar do padrão de divisão internacional do trabalho dentro da Europa, em que, basicamente, o que acontece é que os países de leste servem para ser a fábrica da Europa; os países do centro económico europeu servem para dar músculo financeiro às operações e servem para constituir os centros de investigação, desenvolvimento e engenharia, ou seja, onde está o grosso do valor acrescentado nas unidades económicas; e depois todos eles vêm passar férias ao sul da Europa, que teve todo o seu processo de crescimento nos últimos 10 anos dependente do turismo e do imobiliário. A mim preocupa-me muito este padrão de divisão internacional do trabalho, não entre a Europa, os Estados Unidos e a China; mas dentro da União Europeia, entre o centro, o leste e o sul.
Não é um padrão funcional? Pelo menos, visto de onde estamos.
A forma mais fácil de percebermos em que é que isto pode resultar é visitarmos países que têm uma grande divisão interna entre zonas turísticas e zonas financeiras e industriais. Eu vivi em Itália e tenho o exemplo italiano muito marcado. As regiões do sul da Itália estão condenadas a viver de atividades, e é assim há décadas, de muito baixo valor acrescentado. Sendo que as regiões do norte de Itália são das mais ricas da Europa. A Lombardia está entre as cinco regiões mais ricas da Europa. Muitas regiões do sul de Itália estão entre as regiões mais pobres da Europa. Portanto, a falta de atenção e preocupação com o padrão da distribuição das capacidades produtivas condena países e regiões a funcionarem como reservas de sol e mar. E isso não é muito promissor. Se não gostamos da ideia de ter muita emigração qualificada e de as pessoas encontrarem aqui poucas oportunidades para se desenvolverem pessoal e profissionalmente, não devemos viver confortavelmente com este padrão da União Europeia.
Dentro da União Europeia existem muitos outros desafios, mas no caso de um país como Itália, pegando nesse exemplo, deve haver uma preocupação interna para, de alguma forma, equilibrar essas desigualdades que existem ao nível dos setores económicos…
Pois, em Itália o problema é um bocadinho mais grave e eu não estou a pensar nos problemas do crime organizado e da fragilidade das instituições, até porque estas coisas fazem parte, elas não são causa, são causa e consequência ao mesmo tempo. Agora, o facto de estarmos a falar de um país com alguma homogeneidade cultural, apesar das diferenças entre regiões, o facto de termos um país que tem uma língua comum, que tem leis que são unificadas a nível nacional, etc., facilitou muito o processo de saída em massa das populações do sul para a norte de Itália e, portanto, quando a partir dos anos 60 as regiões do norte de Itália começaram a crescer de forma muito acelerada, era impossível acompanhar esse crescimento económico com medidas de política pública para que as regiões do sul crescessem também. E o resultado foi uma saída em massa, principalmente das pessoas mais qualificadas no sul de Itália para as regiões do norte. Houve uma desertificação ao nível das competências. E, de facto, foram regiões que se tornaram completamente dependentes do turismo e, de uma forma geral, de atividades de muito baixo valor acrescentado. E o risco disso acontecer no conjunto da União Europeia é real. Não estou a dizer que estamos a caminhar aceleradamente para isso, para todos os efeitos, o ponto de partida é diferente, existe alguma margem para que políticas públicas tentem contrariar isso, mas a trajetória que estamos a seguir neste momento vai muito neste sentido.
E, quando temos tantos portugueses qualificados e emigrados nos países do norte e centro da Europa, é o mesmo fenómeno.
Sim, mas tenhamos em conta que não há receitas mágicas para evitar essa emigração, porque estamos a falar de países e regiões que têm níveis de desenvolvimento económico muito diferenciados e que esses níveis de desenvolvimento económico implicam necessariamente níveis de produtividade muito diferentes. E produtividade aqui não tem nada a ver com as pessoas trabalharem muito ou pouco. Tem a ver com o facto de terem muito investimento de capital, muito investimento acumulado em investigação e desenvolvimento, e não é de um momento para o outro que nós vamos conseguir tornar a economia portuguesa numa economia avançada. Agora, se não tomarmos a devida atenção a isto e a única coisa que fazemos é gastar muito dinheiro em qualificações, mas não gastarmos nem dinheiro nem dermos atenção a apoiar o desenvolvimento de uma estrutura produtiva que seja capaz de absorver essas competências… É inevitável que a fuga de cérebros ocorra.
Claro. Como temos estado a falar da União Europeia, recentemente também defendeu que a UE deveria aproveitar a sua diversidade cultural — porque, ao contrário dos EUA ou da China, não é um país homogéneo, mesmo que existam pontos em comum — e as formas de cooperação entre os diferentes países para se fortalecer enquanto organização em vez de fazer um caminho rumo ao federalismo e à homogeneização que muitas vezes não é eficaz ou desejável. De que forma é que se pode aproveitar essa diversidade neste contexto? Como é que isso se traduz em termos económicos?
Agora vou fazer ao contrário e vou começar por falar nas dificuldades. Eu sou muito cético em relação às perspetivas federalistas. Quando uma pessoa diz isso, é imediatamente catalogada de soberanista ou de nacionalista. Eu, na verdade, vivi já em outros dois países europeus; dentro do meu círculo de amigos mais curto, provavelmente metade deles são pessoas que vivem em outros países europeus, com quem eu tenho uma proximidade enorme, e não tenho dúvida nenhuma de que o facto de sermos europeus contribui para a facilidade de comunicação que temos. Nesse sentido, não deixamos de ter…
Uma certa identidade continental partilhada.
Sim, podemos dizer que sim, mas com alguns limites. O meu problema com as ideias federalistas tem a ver com dois aspetos. O primeiro é — não obstante alguns elementos de proximidade na história e na cultura — que a língua conta muito na comunicação, na socialização. Eu fui para a Itália e aprendi a falar italiano, fui para a Holanda e não aprendi a falar holandês, e não estou verdadeiramente a ver como é que conseguimos construir uma democracia equivalente às democracias nacionais sem termos uma língua comum.
Mesmo com o inglês a ser tão falado?
O inglês é muito falado dentro de uma elite. Um inglês funcional. Uma coisa é dizer very nice, good price. Outra coisa é sermos capazes de debater os nossos interesses mais profundos e os problemas complexos do mundo. Nós não somos bilíngues e há muito poucos povos bilíngues na Europa.

E quando há, costumam ser línguas mais locais.
Sim, e isto não é um problema apenas de língua, é um problema também de referências. Eu vivi em Itália, vou a Itália com muita frequência há 30 anos. Quando sigo os meus amigos italianos no Facebook, mesmo quando eles não estão a falar da espuma dos dias e estão a falar de coisas mais profundas, para metade das coisas não tenho as referências que eles têm. Portanto, há de facto a história, há referências, há identidades, há valores, há momentos felizes e momentos trágicos que foram vividos, muito impulsionados pela comunicação mais formal, menos formal, que depende sempre da língua, que torna as realidades nacionais algo extremamente específicas — mesmo que sem prejuízo de podermos construir aqui algumas dimensões de democracia europeia.
Existem também muitas vontades e ideologias diferentes consoante os momentos, porque os governos dos vários países vão sempre mudando e raramente estarão todos alinhados. Também é difícil haver sempre um consenso.
Esse era o segundo ponto a que eu ia. O meu primeiro ponto é que, objetivamente, não temos as condições do ponto de vista histórico e cultural para construir uma democracia federal de escala europeia. Mas há um outro fator de que eu estou profundamente convicto, que é de que as principais nações europeias não estão minimamente interessadas na criação de uma federação onde naturalmente iriam diluir o seu poder político face ao que têm atualmente. Eu não tenho dúvidas nenhumas de que a França tem a sua visão, uma visão sobre o seu papel no mundo. Não tenho dúvidas nenhumas de que a Alemanha tem uma visão, ou um conjunto de visões, sobre o seu papel no mundo. A mesma coisa para outros países. O Reino Unido também era assim, mas entretanto já saiu. Portanto, o que esses países vão procurar sempre fazer na União Europeia não é garantir que haja uma visão comum para a Europa. Nunca vão verdadeiramente abdicar dos recursos e dos seus interesses nacionais que não são apenas de honra e de patriotismo, são por vezes interesses ligados ao vil metal. Esses governos são particularmente vulneráveis aos grupos de interesse que existem em cada um dos países e a visão que têm para a União Europeia não é aquela que nós, enquanto voluntaristas e idealistas, possamos ter de uma Europa unida por uma pessoa, um voto e uma região, uma voz. Portanto, acho que o discurso sobre o federalismo e sobre graus superiores da integração europeia são mesmo muito ingénuos, são pouco refletivos.
E, então, como é que podemos aproveitar a nossa diversidade em termos económicos?
Bom, com os atuais tratados europeus há algumas dificuldades, porque os atuais tratados europeus têm uma visão para a Europa como um todo que consiste na ideia de pôr todos a competir com todos.
Cooperar e a competir ao mesmo tempo, não é?
Vamos lá ver. A parte da cooperação do ponto de vista económico na Europa restringe-se fundamentalmente à política de coesão. O orçamento federal americano vale 20% do PIB americano. O orçamento da União Europeia vale 1% do PIB da União Europeia. A política de coesão vale um terço do orçamento europeu. Portanto, isto permite-nos perceber do que é que estamos a falar. O nível de solidariedade europeia do ponto de vista económico ou do ponto de vista social ocorre em momentos pontuais, e no caso da pandemia houve efetivamente uma preocupação que tem muito a ver com a fragilidade política com que a Europa saiu do período de austeridade e que tirou muita legitimidade ao projeto de liderança europeia. Mas houve um momento de, efetivamente, cooperação. Mas essa não é a regra. A regra é criar um espaço de integração de mercado e que vençam os mais fortes. E eu não creio que haja necessidade de a União Europeia ser isto.
Acho que a União Europeia, nas suas origens, não era isto. Acho que a União Europeia, nas suas origens, teve dimensões muito mais fortes de cooperação, preservando espaços de decisão nacional que permitiam algum desenvolvimento autónomo de cada um dos países. Portanto, quando digo que a Europa deveria aproveitar a sua diversidade, isso passa por termos um enquadramento das regras europeias que não pensam a União Europeia como um mercado completamente unificado em que uns se especializam em produzir capacidade financeira, marketing e engenharia e, os outros, mão de obra desqualificada. Isso não está a acontecer. As oportunidades para a Europa não ser isto e ser uma Europa de maior cooperação e de tirar partido da sua diversidade estão em muitas outras coisas que acontecem também na União Europeia. Nem tudo é mau. A União Europeia tem algumas iniciativas de caráter cultural, tem iniciativas importantes na direção científica e na cooperação científica internacional. Tem tido, vamos ver quanto tempo dura, uma política de promoção da mobilidade e da aprendizagem institucional entre países que é muitíssimo importante. Quando falamos dos fundos europeus, por exemplo, a parte a que dou mais valor não é tanto ao dinheiro, é à aprendizagem institucional que vem com os fundos europeus porque são espaços onde diferentes países dialogam muito sobre como é que se fazem políticas. E isso são aquelas áreas onde a União Europeia tem dado contributos reais para valorizar as diferentes experiências e para impulsionar a aprendizagem das pessoas.
Com as recentes alterações nas relações internacionais, que estão a ser muito rápidas e intensas, desde a eleição de Donald Trump, este é um momento para a União Europeia repensar qual é o seu projeto, para que direção seguir? Ainda que existam circunstâncias políticas internas que dificultem esse processo?
Não estou absolutamente nada confiante.
Mas é um bom pretexto nesse sentido, para repensar a necessidade de se mudar a União Europeia?
Não é preciso ser um radical de esquerda para olhar para a evolução da União Europeia nos últimos anos e perceber que algumas das regras em vigor têm levado à degradação das condições, não apenas sociais, mas também económicas. Eu estou a pensar no relatório de Draghi, que chama a atenção para a depressão brutal do investimento público, que tem sido generalizada na União Europeia nos últimos anos. E foi isso que levou à proposta que Draghi fez de criar um fundo de 800 mil milhões de euros para fomentar o investimento em várias áreas. Porque há uma perceção de que as regras orçamentais europeias e a política monetária têm de ser seguidas, e não têm proporcionado condições para investimento público e para desenvolvimento tecnológico. Nós podíamos dizer: bom, se calhar chegou a altura em percebemos que as coisas não estão a funcionar tão bem. A proposta de Draghi foi imediatamente enfiada na gaveta. Ninguém pôs em causa as regras orçamentais a não ser para dizer que as despesas militares não vão contribuir para o déficit.
Foi feita essa exceção.
O que nos deixa a pensar é que não existe o problema de agravamento da dívida se as despesas forem militares, mas já é um problema de agravamento da dívida se as despesas forem infraestruturas que são fundamentais não apenas para o desenvolvimento social, mas até para o desenvolvimento económico. Em Portugal temos infraestruturas de transportes — por exemplo, portos, aeroportos, algumas estradas, ferrovias — que já deviam estar feitas há muitos anos e que não estão devido a pressões brutais do ponto de vista orçamental. Isto passa-se um pouco por toda a Europa, não é só em Portugal. Mas nós não vimos nenhuma resposta neste sentido. E, pior, vimos uma resposta numa área que me parece extremamente problemática.
A questão militar.
Mas isto não tem sequer a ver com o facto de eu achar que a Europa se tem ou não de proteger contra a Rússia. Tem a ver com uma questão diferente. Formalmente, o Tratado da União Europeia não atribui à União Europeia competências na área da defesa, a não ser em circunstâncias muito específicas de missões humanitárias, de intervenções para a manutenção de paz. O discurso que vemos dos dirigentes europeus e, em particular, da Presidente da Comissão Europeia [Ursula von der Leyen], vão no sentido de se assumir como líder de uma potência bélica. Ora, a União Europeia não só não tem essas competências, como não tem esse espaço institucional. E, pior ainda, se é difícil criar consenso entre a União Europeia sobre regras financeiras e orçamentais, será sempre muitíssimo mais difícil criar consenso na União Europeia sobre posicionamentos geoestratégicos e militares.
Porque há muitos mais interesses de cada país.
Porque a diversidade de interesses, de riscos, de capacidades, é muito diferente. Eu acho que faz sentido as nações europeias repensarem, à luz das circunstâncias atuais, o seu padrão de cooperação na área da defesa, não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Acho é que a União Europeia não é o espaço institucional para isso e há um risco brutal da preservação da União Europeia como a conhecemos, para o bem e para o mal, com a introdução desta dimensão bélica. Eu não tenho dúvidas nenhuma de que se houvesse, efetivamente, um conflito armado com a Rússia, os 27 países não estariam todos na mesma posição, não teriam todos a mesma atitude. Porquê estar a trazer a União Europeia para um domínio que não é seu e onde a possibilidade de ter posições comuns é muito reduzida?

É irrealista a União Europeia querer posicionar-se como um mercado competitivo a nível mundial, lado a lado com os EUA e a China, tendo em conta que é composta por diferentes países com essas dinâmicas de competição e cooperação em simultâneo?
O que eu digo é que não precisamos de ter o modelo que temos atualmente na Europa para isso acontecer. A União Europeia, antes de haver o Tratado de Maastricht, já era um mercado comum. E é um mercado comum que, precisamente por ter fronteiras únicas face ao exterior, se constituía como um espaço de investimento internacional muito mais alargado. E não vejo como negativo os esforços que foram feitos para alguma harmonização das regras do mercado. Mas, com o Tratado de Maastricht, demos um salto para outra dimensão, para um contexto em que a margem de manobra das políticas nacionais foi reduzida de forma dramática, sem se terem instituído quaisquer mecanismos que pudessem compensar verdadeiramente essa perda da capacidade nacional. E isso necessariamente cria enormes tensões, porque a economia portuguesa não é a economia alemã. O seu poder económico e a sua capacidade financeira, a sua estrutura produtiva, o seu tecido empresarial não são os mesmos.
Nem nunca vão ser.
Nem nunca vão ser. E a União Europeia não tem mecanismos para lidar com estas diferenças, como, por exemplo, têm os Estados Unidos ou a Itália, de que falávamos. Em Itália, na região da Lombardia, 30% dos impostos são destinados às regiões do sul. Nós não temos nem um décimo disto a acontecer na União Europeia.
É um modelo muito rígido nesse sentido e pouco flexível para as questões particulares de cada nação.
Não é só pouco flexível, eu diria que a uma série de níveis é relativamente pouco solidário. Ficamos todos contentes por recebermos dinheiros do PRR e da política de coesão, mas a verdade é que eles são muito insuficientes para compensar a ausência de instrumentos de política económica dos quais abdicámos; como a política monetária, a política orçamental, o controlo sobre a taxa de câmbio, a política de concorrência e a política comercial comum. E isso vai condenar a Europa a viver situações cíclicas de tensão política entre os países, como aconteceu há 12 anos.
Estava a falar da política monetária, desse instrumento que pode ser um mecanismo importante para um país, poder controlar a própria moeda. Foi há quase 25 anos que Portugal aderiu ao Euro. Como é que olha, em retrospetiva, para a adesão à moeda europeia?
Houve uma promessa do Euro que se concretizou para mal dos nossos pecados. Quando lemos os textos que foram escritos pelos maiores defensores da integração na altura, o que diziam é que o Euro iria permitir um acesso a financiamento a custos muito mais baixos. Para simplificar, diziam que as taxas de juros iam baixar muito se entrássemos no Euro. E é verdade, isso aconteceu. Só que quando temos uma economia que perde todos os seus instrumentos principais para impulsionar uma modernização da sua estrutura produtiva, o aumento das taxas de juro só vai servir para aumentar aquelas atividades económicas que estão menos expostas à concorrência internacional. E isso aconteceu até à grande crise internacional e até ao período da austeridade com a área da construção e com o sistema de financiamento fiscal, que foram os grandes beneficiários desse novo quadro macroeconómico que é o Euro em Portugal. Agora, quando temos muita atividade não exposta à concorrência internacional a expandir-se no país, isto significa, na prática, que estamos cada vez a produzir menos para exportar e cada vez mais a produzir em atividades que só geram endividamento face ao exterior e não geram nenhum rendimento a partir do exterior. E foi por isso que, em meados dos anos 90, não tínhamos praticamente dívida externa e chegamos às vésperas da crise no Euro como um dos países mais endividados a nível europeu e até a nível mundial. Portanto, o problema da adesão ao Euro não é apenas aquilo que habitualmente se diz, de que perdemos competitividade e que não podemos desvalorizar a moeda. Isso é relevante em determinados momentos, isso pode ajudar a suavizar períodos de instabilidade e transição económica. Mas, mais do que isso, a adesão ao Euro vem no quadro de integração financeira, de mobilidade internacional dos capitais financeiros, que teve efeitos estruturais sobre a economia portuguesa. Eu não consigo dissociar a crise pela qual nós passamos…
Da adesão ao Euro?
Sim, de todo o processo da adesão ao Euro, que na verdade não é só passarmos a ter uma moeda única. Passámos a ter todo um sistema financeiro completamente integral, muito desregulamentado, com uma enorme facilidade de fluxos capitais a nível internacional, que se revelou verdadeiramente pernicioso para o nosso poder de desenvolvimento.
Para terminar, falemos da crise da habitação. Escreveu no Público há algum tempo que não só era preciso aumentar a oferta, que parece ser o foco, mas também limitar a procura. Isso faz-se com medidas que outros países já aplicaram, de aumentar taxas turísticas, limitar o alojamento local, acabar com os vistos gold?
Sim, há uma parte que tem a ver com o turismo, não é só o alojamento local, mas a disputa do espaço das cidades pelas unidades hoteleiras. Há uma parte que tem a ver com o efeito dos residentes não locais, de termos uma quantidade muito grande de estrangeiros que compram casas em Portugal, entre um misto de investimento e de casas de férias. Isso são fatores do lado da procura. Nós devemos perceber que Portugal está mesmo muito na moda.
E parece que isso não vai mudar.
Não há motivos para isso mudar. Nós temos pessoas com maiores rendimentos, na China, que fazem a sua vida a trabalhar muito durante 10, 15 ou 20 anos em setores tecnológicos e que depois, a certa altura, querem ter uma vida mais tranquila e procurar um país que, apesar de tudo, não seja tão caro quanto a Alemanha, a França ou os Estados Unidos. Quantos mais vêm, mais há pessoas que se dedicam a atrair outros. Nós temos hoje muitos cidadãos chineses que vivem em Portugal do negócio imobiliário, cativando investidores chineses e famílias chinesas para virem.
Fazendo a ponte.
E acontece o mesmo com os americanos. E Portugal é, de facto, um país muito apetecível e ainda bem. Nós também gostamos de viver neste país e gostaríamos de o partilhar com os outros, mas não podemos esquecer-nos de que isso tem efeitos significativos na procura de habitação. E estamos num momento em que a construção que conseguimos fazer nas grandes cidades será sempre insuficiente para dar resposta a uma procura que se auto alimenta. Portanto, ou somos capazes de pôr algum travão nessa procura, ou vai ser um esforço inglório tentar aumentar a construção.

Até porque parece não haver condições para conseguir aumentar de facto a oferta de forma significativa.
O esforço ainda é mais inglório se nós não temos um agente que seja guiado fundamentalmente por perspetivas não de realização de mais-valias imobiliárias, mas por um esforço de satisfação de necessidades básicas. Portanto, não é apenas uma questão de procura, também é uma questão de oferta. Nós precisamos de ter mais oferta pública, Portugal tem os níveis mais baixos de oferta pública de habitação a nível europeu. E também mais oferta condicionada, ou seja, garantir que agentes privados que queiram investir em habitação aceitam fazê-lo com preços controlados. E isso não é uma coisa muito apetecível, porque existe muita gente com muito mais dinheiro do que a maioria dos portugueses a nível internacional, com desejos de vir viver para Portugal e disponível para pagar preços muito mais elevados. Portanto, sim, é preciso restringir a procura, mas também é preciso aumentar a oferta de forma criteriosa.
E em relação a medidas, como algumas cidades europeias implementaram, de controlo de rendas? Em Portugal isso parece estar ainda muito longe de sequer poder ser discutido seriamente, no sentido de estar muito distante de ser aplicado.
Sim, eu sou muito favorável a controlos sobre a utilização da habitação para fins que não são permanentes. Sou muito favorável a restrições, à abolição de todos os incentivos tipo vistos gold, residentes não habituais, etc. Sou muito favorável a medidas que limitem os incentivos para o investimento imobiliário que não sejam com o objetivo de construção ou, quanto muito, de recuperação de edifícios que não estão em condições de ser habitados, que é isso que pode criar oferta habitacional para a classe média. Tenho mais dúvidas sobre a aplicação de medidas muito severas no mercado para limitar os preços do arrendamento. Nós já tivemos essa experiência em Portugal e sabemos que há, efetivamente, um efeito perverso de fazer restrições muito severas nos preços do arrendamento, que no limite podem levar a duas das seguintes coisas, que é a retirada de casas do mercado de arrendamento, porque deixa de ser compensador; ou então há uma falta de investimento na preservação, na manutenção dos edifícios. Portanto, aí é preciso ter uma política que seja mais cuidada, que seja mais criteriosa. Dito isto, nós estamos, efetivamente, a assistir a aumentos dos preços do arrendamento em Portugal que não têm par. E, portanto, eu acho que é mesmo importante pensarmos como podemos também aí colocar alguns travões, mas ser muito cuidadosos na forma de o fazer.
Portugal tem muito pouca habitação pública até comparado com países que têm modelos económicos liberais, com menos intervenção do Estado — mas aqui são muitos os defensores desses modelos que se opõem a esse tipo de medida. É uma questão ideológica que, ao longo da história da nossa democracia, ficou mal vista? O facto de haver habitação pública considerável? Ou simplesmente não foi uma prioridade dos governos, tendo em conta que havia outras dimensões do Estado Social para construir?
São várias coisas. Efetivamente, nos anos 90, com a liberalização financeira e com a disponibilidade da mão de obra que também existia na altura — fruto do abandono da agricultura — houve condições para haver muita atividade de construção, com uma redução muito substancial de preços, que permitiram que se aumentasse muito o parque habitacional em Portugal. Isso respondia às aspirações e às necessidades, e os governos não se sentiram muito pressionados naquele período para utilizar as políticas públicas através da construção de um parque habitacional. O problema é que, quando começou a haver problemas de acesso à habitação, os níveis de disponibilidade financeira no Estado tinham-se reduzido muito, e o aumento da população num curto espaço de tempo, e a sua concentração nas zonas urbanas, tornou basicamente impossível conseguir responder ao problema, mesmo que houvesse dinheiro. E hoje confrontamo-nos com uma dificuldade, porque até há bastante dinheiro, mas, como foi tudo concentrado num curto espaço de tempo, começa a haver muita dificuldade do lado da oferta em responder. Há alguns programas de construção de habitação social e de habitação pública, que não se encontram empresas disponíveis para realizar essas obras. Há tanta obra a acontecer que elas desviam-se para as coisas que são mais urgentes. Isto é um problema que era antecipável com o PRR, mas, não sei, alguém acreditou que se resolveria por si.
E a construção também ficou mais cara.
Sim, mas isso também tem a ver com o facto de a Europa toda ter tido um pacote de investimento em que a construção aconteceu toda ao mesmo tempo. A contradição entre os liberais e aquilo que acontece em alguns países também tem uma natureza histórica. Estou a pensar na Holanda, que foi o outro país onde eu vivi, onde cidades como Amesterdão têm 40% de parque habitacional nas mãos do Estado. Isso não tem a ver com a Holanda atual, tem a ver com uma Holanda que já existiu muito mais próxima do socialismo dos países nórdicos, e onde havia a crença na importância de o Estado ter um papel interventivo forte em muitas áreas, chamemos-lhes sociais. O que houve foi a perceção de que reverter essa herança, no caso das cidades como Amsterdam, iria ser um desastre.
Ia desfigurar a cidade, além do que já pode ter sido desfigurado.
Eles tomaram algumas medidas, tipicamente liberais ou neoliberais, concessionaram alguma dessa propriedade pública a empresas privadas, que têm relações extremamente agressivas com os inquilinos, há algumas lógicas de mercado nesse funcionamento. Mas só o facto de aquela propriedade ser pública permite pôr um travão nas dinâmicas especulativas — e isso faz muita diferença.