Entrevista. Rui Cardoso Martins: “Não acredito em escritores sem sentido de humor, sei que os há mas os bons têm um sentido de humor muito apurado”

por Magda Cruz,    28 Julho, 2024
Entrevista. Rui Cardoso Martins: “Não acredito em escritores sem sentido de humor, sei que os há mas os bons têm um sentido de humor muito apurado”

Dez anos depois do último romance, Rui Cardoso Martins apresenta “As melhoras da morte”, um livro que se desenrola quando Cruzeta, personagem já conhecida dos leitores, vai ao funeral de um amigo que tinha tirado a própria vida.

Em entrevista a Magda Cruz, o escritor e argumentista fala dos amigos que inspiraram esta história, das viagens à Rússia e do papel do humor na sua escrita.

Magda Cruz: Publica agora “As melhoras da morte”, pela Tinta-da-China. Há dez anos que não publicava um romance. Tinha saudades do público leitor ou o público leitor é que tinha saudades do Rui?

Rui Cardoso Martins: É uma boa pergunta, mas não é para mim. Eu tinha saudades. Tenho encontrado as pessoas que começaram a ler este livro e, muito sucintamente, já ouvi várias pessoas dizerem “Ri e chorei”. Só mostra que o livro tem alguma força, tem uma força vital, que é o que se deseja. E foi um pouco o que eu senti ao escrevê-lo, finalmente, quando o acabei. Porque foram muitos anos à espera. Não foi à espera porque não foram parados. Não foi com angústias dessas porque estive, de facto, a fazer muita televisão, muito cinema, escrevi também um livro de contos. [“Passagem pelo Vazio e Outros Contos”, Filigrana Editora]

MC: É juntar contista, aqui à introdução.

RCM: Sim (risos). E já agora professor de Argumento de cinema e televisão, na Universidade Lusófona.

MC: Já dá duas matérias. Também é professor de Arte da Crónica na pós graduação de Artes da Escrita, na Universidade Nova de Lisboa. 

RCM: Dou duas coisas que faço, deste mister. Não vou dizer artesanato, mas neste mundo faço estas coisas tal como outros fazem sapatos ou arranjam aviões. 

MC: É assim que olha para a profissão?

RCM: É, é porque, ao contrário do às vezes algumas pessoas deixam passar, não encaro nada disto como uma coisa especial, diferente. Faz parte da nossa vida, sempre fez. É necessário porque a narrativa é essencial à vida, desde que nascemos. Por isso é que somos humanos. Imagino que os golfinhos e as orcas… E as orcas, porventura, têm mesmo uma narrativa. Porque acabámos de saber que há um grupo de orcas que aprende a destruir barcos que invadem o seu território (risos).

MC: Essa história contam umas às outras de certeza.

RCM: De certeza contam isto (risos). Todos os animais – e nós somos animais – o fazem. Nós fazemo-lo de uma forma bastante mais complexa e eu faço parte de um grupo de pessoas que tenta dar sentido à nossa Humanidade e àquilo que nos acontece. O que me acontece a mim, o que acontece aos meus amigos, o que acontece aos meus inimigos, o que acontece no mundo. E isso é essencial para percebermos a História. E a Ficção alimenta. É, de facto, um alimento da cabeça e do coração. E é necessária. Portanto, aquilo que eu faço é um trabalho.

Rui Cardoso Martins, que acaba de publicar “As melhoras da morte”, pela Tinta-da-China (Foto: Pedro Serpa)

MC: Deixe-me pegar já aí no mundo animal. À semelhança do seu último romance, o animal como personagem está presente neste livro. Em “O osso da borboleta” eram os pombos. Agora, as aranhas, também o peixe balão. É algo que lhe agrade: o mundo animal?

RCM: Eu faço parte do mundo animal, tal como a nossa querida Magda. Este é o regresso de um alentejano problemático e eu tenho uma grande ligação com o Alto Alentejo, com o nordeste alentejano, em particular, e com o Alentejo todo. Mas também com o mundo. Andei pelo mundo, uma boa parte do mundo. E sem os animais fica tudo inóspito, impossível de habitar. Se tirarmos, por exemplo, as abelhas, as vespas, as próprias moscas… Às vezes interrogamo-nos: “Que sentido é que Deus dá a uma mosca?” Com certeza que servirá para alguma coisa. Embora me esteja a recordar de uma… Eu acho que foi o Christopher Hitchens ou algum dos seus amigos que disse, uma vez na televisão: “Para que é que Deus ia inventar uma mosca que crescia nos olhos das crianças de uma certa tribo africana”. Que sentido é que isso fazia, quando se diz que tudo tem um propósito? Mas eu gosto de animais. Eu acho que estão, de facto, em perigo. E os meus livros estão cheios de animais. Mas não sei explicar exatamente porquê. Partilhamos com todos os animais uma imensa carga genética. Os animais, com as suas características próprias, com a sua capacidade de evoluir, acho que são bons objetos literários. Eu uso “literário” sempre no melhor sentido. É preciso que se entenda. Nunca é o jogo floral, nunca é a ideia de que estamos a fazer poesiazinha. Nada disso. Eu sou um grande leitor de poesia, embora não a faça. 

MC: Nunca? Nem um versinho? Aliás, não tem de fazer uma modinha?

RCM: (Risos) Vou ter de fazer uma modinha. Olhe boa pergunta… Agora lembrou-me que tenho trabalho para final de agosto, no calor Baixo Alentejo. Mas, de facto, quando uso “literário” é no sentido nobre da palavra, que é uma coisa intrinsecamente humana, artística e necessária. E que faz com que a gente comece a ler ou a ouvir uma coisa e acabe diferente quando termina. E, para mim, essa força é que é o literário. 

MC: Neste novo livro, faz aqui um retrato também da decadência humana, através da pobreza, do suicídio, da luxúria. Tudo temas que existem no dia a dia aqui ilustrados pela vivência das personagens. A pergunta é: O mundo é uma peça de teatro à espera de ser escrita?

RCM: Não sei se está à espera. Acho que está sempre a escrever-se. Minuto a minuto, segundo a segundo. Só o facto de me obrigar a responder a essa pergunta complexa, já está a desencadear em mim – e agora em si, com a minha resposta evasiva porque ainda não sei bem o que vou dizer (risos) – mas já está a desencadear qualquer coisa que está a ser escrita. Tal como qualquer ação, o pensamento também é uma ação porque está a acontecer qualquer coisa. Está a acionar os meus pobres neurónios – bem cedo, de manhã. E claro, está sempre tudo a acontecer em todo o lado. E até, na minha opinião, em todos os tempos. Eu acredito nisso, na nossa capacidade para juntar, mesmo que misturados, mesmo que ficcionando (mais uma vez no bom sentido)… Está sempre a ser reescrita qualquer coisa. E a reescrita também é criação. Neste momento em que estamos aqui a falar, estamos a criar uma coisa que nunca aconteceu. Eu não conhecia a Magda e a Magda não me conhecia. E agora conhecemo-nos. E isto vai criar nas pessoas uma sensação: “Ah nunca tinha pensado que eu faço parte de uma criação geral, que é a própria história.”

MC: Ao pensar na sua escrita, que tem um elemento trágico-cómico, e que me faz lembrar teatro, comecei a pensar sobre se o Rui se acha um romancista diferentes de outros. Acha-se, por exemplo, contaminado pelo teatro, pelo cinema, pelas Artes?

RCM: Eu acho-me contaminado por tudo. (risos) Tudo o que me acontece. E a verdade é que aconteceu, um pouco puxado pelas circunstâncias… Isto é… Eu faço uma reportagem num bairro social em Setúbal. Isso sai num jornal. Há um produtor de cinema que gosto muito da reportagem, da maneira como eu falei com os miúdos reais, os próprios miúdos reconheceram-se naquilo que eu escrevi, e acaba a escrever “Zona J”. Indo para outra realidade parecida, mas noutra escala, que é a Zona J de Chelas. Estamos a falar de há quase 30 anos. Com isso eu aprendo, por exemplo, a ouvir falas verdadeiras que podem passar diretamente como sendo ficção. Muitos dos diálogos que aparecem no filme “Zona J”, que infelizmente podia ter sido bastante melhor.

MC: Já tem essa ideia. 

RCM: Sim. (…) As coisas que fui fazendo, até por convite. Como dizia o Cole Porter: “A inspiração é um telefonema do meu agente” (risos). 

MC: Tal como os telefonemas da Tinta-da-China, para que o Rui escrevesse este romance, “As melhoras da morte”.

RCM: Sim, sim. Às vezes é assim. Porque temos de sair de um certo ativismo em que vamos caindo, muitas vezes por excesso de trabalhos. A família também influencia. Tenho uma família grande e umas coisas foram alimentando outras. Faço uma peça de teatro, no Teatro Dona Maria II, “Última Hora”, usando muito a minha experiência como jornalista e aquilo que fui vendo de muitos jornalistas. Mas esse convite vem do Tiago Rodrigues, com quem já tinha feito uma peça de teatro pequenina, em termos quase amadores. 

MC: Como é que se chamava?

RCM: Chamava-se “Duas estrelas” e era baseado num casal que ganha o Euromilhões. E a peça são dez minutos em que é amalgamada a semana em que o casal não consegue dormir e lhes acontece de tudo: os amigos falsos que aparecem, as propostas dos bancos, tudo isso. Isto surge num momento de um acontecimento real com um amigo meu. E, portanto, tudo se alimenta. Uma coisa que sempre tentei fazer foi não ficar cristalizado numa linguagem. Porque se aprende muito a escrever diálogos e os diálogos também vão, principalmente os de teatro, muito buscar à boa Literatura, à Poesia. Há personagens que falam de uma maneira que, obviamente, não vamos dizer que as pessoas falam assim. Mas a verdade é que, quando nós pensamos que estamos a ouvir uma peça de teatro, ou um filme, e que as pessoas falam mesmo assim, não é assim. Há ali uma depuração, uma reviravolta, um toque autoral, há ali qualquer coisa que faz com que as personagens falem de forma muito mais interessante do que as pessoas na realidade. 

MC: Mas o Rui chega até a apontar frases que ouve de amigos, que depois usa nos livros. E aí é a realidade a provar que pode ser boa ficção. 

RCM: Claro, é evidente. (risos) Quando estou numa conversa com um amigo, por exemplo com o Alexandre Melo e nos sai, a certa altura da noite ou do dia, umas frases como “Ninguém nos pode acusar de não nos acontecer nada” ou então, sobre a mentira, quando às vezes somos obrigados… Porque essa história de que temos de dizer sempre a verdade… Eu acredito que devemos pôr sempre verdade naquilo que fazemos, mesmo na ficção.

MC: O próprio Zeca, personagem de “As melhoras da morte”, diz: “Inventar não é mentir”. 

RCM: Não, claro que não. Muito menos num romance. Mas quando me sai a frase: “Mas se não lhes mentires, como queres que acreditem em ti?”. E ficamos os dois paralisados e eu percebo imediatamente que alguém poderá dizer isto, algures. O exercício da escrita também é um exercício de fala e de escuta. E eu estou permanentemente nisso – até de uma forma quase viciante. O Miguel Guilherme diz-me que eu sou viciado em ir aos tribunais.

MC: É viciado em escutar?

RCM: Sou, sou porque as pessoas dizem coisas magníficas e estão a repetir, ano após ano, dia após dia, os mitos gregos. Os ciúmes, as traições… Estão sempre a acontecer numa escala maior ou menor. E eu assisto a isso diretamente. 

Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”:

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