Entrevista. Rui Cruz: “A comédia, em mim, vem muito da raiva”
Por ocasião do seu novo solo de stand up, tivemos a oportunidade de entrevistar Rui Cruz na Livraria-Bar Casa das Artes, em Cacilhas. Um local repleto de Cultura, tal como as referências de Rui Cruz. Por altura em que se fazia uma noite de quizz nas traseiras, ao lado das mesas de xadrez. Ao lado do bar bebemos uma cerveja e falámos um pouco sobre o que este novo solo trará, as referências na comédia (e não só), bem como todos os seus outros impulsos artísticos, da pintura à música, numa altura em que se prepara para lançar o seu primeiro trabalho musical num grupo composto por ele e Vasco Duarte (Homens da Luta).
Em vésperas de trazer o seu espectáculo “Como Todos Fazem” para uma sala do São Jorge já esgotada antes de terminar a tour por Coimbra, deixamos aqui um pedaço da longa conversa que nos levou de Woody Allen até Valete.
“O Cego, Surdo e Mudo” e “Homem Branco Privilegiado” eram espectáculos maioritariamente de observação sobre o caos que consideras que a sociedade se estava (e continua) a tornar. “Como Todos Fazem” continuará no mesmo registo a que nos habituaste com a mesma visão irónica e mordaz sobre a actualidade?
Este espectáculo tem um registo completamente diferente, é muito mais pessoal e o tema base sou eu. Ou seja, enquanto nos outros espectáculos era a sociedade e o meu ponto de vista sobre ela — com a mania que sabia como é que as pessoas deviam viver, sendo eu um idiota que não sabe nada — neste aqui decidi assumir que sou um idiota e vou falar de mim. Falo muito sobre coisas que descobri este verão — nomeadamente ser um idiota — e falo sobre algumas histórias minhas de infância e da adolescência, sobre o processo de ter tido uma depressão e estar a lidar com ela também. Ou seja, em vez de ser eu a observar o Mundo, sou eu a observar-me a mim próprio. É a grande diferença. Isto acaba por tornar o espectáculo, em relação aos outros, mais acessível intelectualmente. Sempre tive pessoal que dizia, quando ia ver os meus espectáculos, que quase tinha de estudar para os ver. Este não, este podes ir à vontade. É um espectáculo muito mais funny, muito mais pessoal, intimista, e ao mesmo tempo sendo intimista acaba por chegar a mais gente, que é um pouco um contra-senso que eu também continuo sem perceber. Vejo pessoal a ficar mais contente neste espectáculo do que nos outros, mesmo apesar de eu falar de depressão. Mas é um pouco isso, enquanto o objecto dos outros espectáculos era a sociedade neste espectáculo sou eu, as minhas experiências e as minhas histórias.
Achas que o facto de não ser sobre os outros mas sobre ti ajuda a que baixe algumas guardas nos outros?
É exactamente isso que eu tenho achado. Eu falei disso com o Rui Sinel e ele disse-me isso. As pessoas têm uma imagem minha um bocado baseada somente naquilo que eu escrevo e eu escrevo das coisas que vejo à minha volta. Neste espectáculo abro essa “portinha” para mim e acabo por deixar que as pessoas me conheçam mais, se sintam mais familiarizadas comigo neste espectáculo do que nos anteriores. No final dos espectáculos anteriores o pessoal vinha ter comigo no fina e era tipo “ya, aquela cena que disseste, muito bem” enquanto agora é mais “aquela história é verdadeira?”, “conta mais, quero saber mais coisas”, muito por aí. Sou mais abordado agora e de uma maneira diferente, mais familiar. Enquanto nos outros era mais uma espécie de — não direi admiração porque não é a palavra certa — reconhecimento intelectual por ter dito alguma coisa que eles também pensaram, ou que passaram a pensar quando ouviram. Neste sentem-me mais um deles. O pedestal onde me viam, agora vêem-me ao mesmo nível.
O Bill Hicks, num dos seus espectáculos, diz a certa altura que à saída de um deles foi abordado por desconhecidos que lhe disseram “hey, Mr funny man, we’re Christians, we didn’t like what you said”, ao que Bill Hicks respondeu “then forgive me”. É também esta a tua forma de estar na comédia?
Sim. Importo-me muito pouco com o que as pessoas acham ou se ofendam com aquilo que eu digo. Não me interessa, porque eu sei a intenção com que o disse. A partir do momento em que a palavra sai da minha boca a responsabilidade já não é minha, é de quem a ouve. É a mesma coisa que um gajo do Porto dizer “c******” e “fo**-se” como vírgula. Para ele não é uma asneira, é quase a pontuação de uma frase. Quem a ouve é que transforma em asneira e a partir daí, em que a coisa sai, sai do teu domínio. Olha, a “Wonderwall” dos Oasis, por exemplo. Toda a gente considera uma música de amor, mas não é. Ele escreveu a música para um amigo, mas na imprensa começaram a dizer que era uma música para a ex-mulher, então ficou. “Fui casado, convém dizer que é.” A partir do momento em que lançou a música, ela deixou de ser dele. A interpretação que cada pessoa faz da arte é pessoal. Se uma pessoa se ofende com aquilo que eu digo e a minha intenção não foi ofendê-la, o que é que eu vou fazer? Não vou pedir desculpa por uma coisa que eu não quis fazer. Acho mesmo que na arte, seja ela qual for, não se deve pedir desculpa porque tu tens direito a falhar. Um pintor antes de fazer uma obra de arte fez vinte rascunhos ao lado e um comediante antes de fazer uma obra de arte de uma piada pode mandar vinte ao lado. Não tem de pedir desculpa por isso, está só no processo de tentar. Não me interessa muito se as pessoas que se ofendem ou que se chateiam ou não percebem a intenção com que o disse. É com elas, não é comigo.
Quando a música do Valete saiu, falou sobre se era boa ou não, mas sim sobre o videoclip e a sua interpretação do que lá constava.
O videoclip contraria o que as pessoas dizem. É um sonho. Um cliché super óbvio. Mas ele sonhou, não matou ninguém. E se vais analisar literalmente o videoclip, como aqueles que o criticaram fizeram, então, literalmente aquilo é um sonho. E ele mata o amigo, mas ninguém fala disso.
Na altura fez imensa confusão porque se viu pessoas que supostamente fazem qualquer espécie de arte, humor, e que caíram em cima do Valete.
A maior parte desse pessoal não pensa aquilo. Simplesmente aproveita ondas que navega para subir na carreira quando com talento não o consegue fazer. É só isso. Estás num ponto da sociedade em que mais vale caíres em graça do que seres engraçado, e então, pessoas com muito pouco talento ou que têm pouco para oferecer seja em que área for, aproveitam-se de pequenas coisas que são trampolins de fama. A indignação, numa altura em que a sociedade vive à volta das redes sociais, é a coisa que mais protagonismo te dá. Imagina, foste a um restaurante e foste mal atendido, e foste a outro restaurante e foste bem atendido. Tu, onde foste bem atendido falas a três pessoas e onde foste mal atendido falas a cinco pessoas. Isto está estudado. Nós falamos mais do mal do que no bem que nos fazem. Portanto, a partir do momento em que tens polémica, esta chega a mais gente. É mais fácil fazeres vinte posts irritados do que um post a dizer bem de alguém. Isto faz com que traga mais gente a ti e acabes por navegar esta onda de indignação onde vais sempre lá na crista porque muitas das vezes és tu que a crias e chegas a um ponto onde és famoso só pelas indignações e ninguém se lembra do teu talento, ou daquilo que estás a falar. Só que apareces, e a partir daí tens marcas e tens dinheiro e ao teres isso tens mais pessoas associadas a ti, tens jornais que querem estar associados a ti e é por aí, uma bola de neve em que de repente és conhecido não por teres feito algo bom mas por teres navegado uma polémica que realmente te levou lá para cima. É o que o pessoal faz. Seja as cronistas como as Fernandas Câncio, que se tu fores a ver, nos últimos cinco anos não fez uma crónica que não seja uma indignação sobre alguma coisa. Nunca é uma análise política. Gajos como o Faro, ou da música, que também criticaram o Valete. Eu recebi uma mensagem da Mariana Monteiro. Se não fosse o Valete era outra coisa qualquer. Há sempre alguma coisa que este pessoal aproveita para subir. O Valete, pronto, olha, aconteceu, foi ele.
Talvez o Valete já estivesse à espera, não?
Olha que não. A reacção do Valete é a de quem não está habituado a ter críticas. Se fosse comigo, com o [Paulo] Almeida, com o [Rui] Sinel, já estávamos habituados. Tu vês que foi um tipo bem visto no meio e que levou um backslash que não estava à espera. Aquele vídeo dele, é um veado encadeado com faróis, ele não estava à espera. Das primeiras vezes que nós [Rui Cruz, Paulo Almeida e Rui Sinel de Cordes] fomos atacados a sério na net é muito lixado, porque tu deitas-te, no dia a seguir, acordas, abres as redes sociais e és chamado de tudo e mais alguma coisa. Mas pior é chamarem-te de coisas que tu sabes que não és como racista, homofóbico, xenófobo, anti-semita, seja o que for. Tu ficas a remoer por dentro. Por mais que tentes deixar de lado isto é difícil, e não há nada mais difícil que lidar com a calúnia. Calúnia é o pior. Acusarem-te de algo que tu não fizeste é complicado. Quem está atrás do teclado e recebe os seus brownie points e volta à sua vida de m****, mas para quem sofre, aquilo não pára. Não tens trabalho, ninguém te contrata porque de repente está toda a gente a dizer mal de ti. Começam-te a apagar as páginas, a bloquear os perfis, a fazer boicote e de repente, o gajo que acordou não tem maneira de subsistir. Isso já nos aconteceu. A mim já aconteceu. Tive um período, há sete anos atrás, onde havia bares com algum medo de nos contratar porque havia grupos de Facebook que denunciavam as páginas dos bares que deixava de poder fazer publicidade. E tu, se não estás a fazer piadas, não estás a trabalhar e tens renda para pagar. Acho que o Valete respondeu mal a maior parte das vezes, mas percebo de onde aquilo vem. Vem da surpresa e de estares a ser atacado por todos os lados. É auto-defesa.
Referiste numa entrevista que quanto mais culto fores, mais fácil é fazer humor. Não achas irónico teres essa opinião ao mesmo tempo em que, na sociedade de hoje que se diz como a mais bem preparada, formada e conhecedora de sempre, ela é também uma sociedade super intolerante à opinião contrária e ao humor que toca nos seus credos?
Bem visto. Acho que é mais fácil fazer humor para quem o cria, não para quem o ouve. Mas atenção, acho que noventa por cento das indignações de hoje em dia não são verdadeiras. É só pessoal à procura de aceitação e de fama. Não estão realmente chateados, pois tu falas com esse pessoal e na mesa de café ou entre amigos dizem coisas bem piores que aquelas que criticam. Simplesmente, socialmente necessitam dessa aceitação. Agora, do ponto de vista do criador, acho que quanto mais culto és, mais fácil é criares arte. Para a escrita e para a comédia — a música precisa de um talento diferente —, quando estás com um bloqueio criativo, saberes que tens referências culturais e que as podes usar e brincar com elas é muito mais simples do que estares a forçar coisas. Se eu fizer uma piada com História, por eu ser Arqueólogo de formação, é muito fácil, porque eu sei os pontos ridículos da História. Fica fácil pegar nisso e fazer um texto funny sobre os descobrimentos ou sobre o império egípcio. Ajuda muito teres referências para a escrita. Até porque às vezes a própria inspiração pode ser encontrada em coisas que há na tua cabeça e já nem te lembravas. Há muitas vezes que estou com a folha em branco e lembro-me de cenas dos livros do Woody Allen que eu tenho gravadas na cabeça. Não as piadas mas a estrutura, a maneira como ele escreve. Acho realmente que quanto mais culto fores, mais referências tens e menos bloqueios acabas por ter. Sobretudo, acabas por ter outros ângulos, ângulos diferentes, porque sabes histórias que os outros não sabem. Imagina, olhas para o café e o ângulo de uma pessoa é de que o café está quente. O teu é o de quem sabe como é processado, que há grãos que vêm do sistema digestivo de animais, etc. Consegues ir buscar ângulos que uma pessoa normal não tem com a primeira observação. Tendo vários pontos de informação vais buscar os ângulos que quiseres.
Achas que o mercado do humor está a ficar saturado com tanta gente a aparecer agora? Ou que há muita gente a tentar fazer piadas e a tentar passar por humorista?
Acho que é mais essa parte final. O humor tem sempre espaço. Se quiséssemos começar um canal de humor como já houve com a SIC Comédia tu conseguias fazê-lo, mas dando oportunidade a pessoas diferentes. Há muita gente nova com talento e com coisas para apresentar. O problema é nos canais generalistas jogarem sempre pelo seguro e acaba por ser sempre as mesmas pessoas, os mesmos conceitos. O “Desliga a Televisão” parece-me um conceito novo e eu gosto muito da escrita do Roberto [Pereira], do Henrique [Dias] e do [Frederico] Pombares, mas não te posso dizer a minha opinião pois não vi o programa ainda. A saturação acho que há um bocado no stand up, mas não é bem isso pois se forem bons há espaço para todos. É a uniformatização, mais do que saturação. Como nos anos 80 e 90 onde a música era a moda e todo o adulto queria ser músico por era “fixe”, estás em palco e tens o poder. A partir de 2010 a comédia tornou-se uma moda a nível mundial e os adolescentes que antigamente queriam ter bandas agora querem fazer stand ups. Primeiro porque estás sozinho e é muito mais fácil e acabas por ter a atenção para ti, porque estás em palco sozinho. Então, acabas por ir para o stand up não por amor à arte mas simplesmente porque queres ter protagonismo. Antigamente trocavas CD’s de música e hoje especiais de Netflix. Isto faz com que venha gente com pouca qualidade, poucas referências, pouco estudo e pouca vontade de melhorar. Se este pessoal viesse todo por amor à arte não havia sobrelotação porque acabam por se puxar uns aos outros e tornarem-se melhores. Estilo Ronaldo-Messi. O problema é que vem muita gente igual, que sabe que “aquilo” resultou. Então é tudo igual. Podes querer ser os Bon Jovi e andar quarenta anos a tocar as mesmas canções, mas não me identifico com essa forma de estar. Identifico-me com comediantes, músicos e escritores que tentam sempre fazer coisas diferentes. Por isso é que gosto muito do Bruno Nogueira. Ele para mim é o protótipo do artista português na comédia. É um gajo que faz sempre cenas diferentes. O “Último a Sair” resultou, e ele podia fazer vinte desses pois ainda continuam as Casas dos Segredos. Mas ele não. Quis fazer outra coisa. Fez o “Som de Cristal”, o “Odisseia”. Tentativa e erro; falha e acerta. Mas o que lhe interessa é que vai fazendo cenas diferentes e que lhe apetece fazer e tenho pena que na comédia não haja mais gente assim. Tenho pena que haja muito resultadismo. Nas tv’s generalistas há sempre espaço para o humor. Percebo o ponto da segurança, de jogar pelo seguro, pois é um negócio e se algo resultou vão continuar até deixar de resultar. Agora, sinto falta da Radical que nos inícios dos anos 2000 apostava em coisas diferentes. Esse espaço está a haver no Youtube. As generalistas só não apostam mais no humor pela polémica. O humor, de todas as artes, é a mais escrutinada. Consegues ter mais gente a dizer mal do comediante que faz uma piada sobre um discurso político do que do político que fez o discurso.
Achas que um comediante tem responsabilidade política, enquanto opinion maker?
Depende da tua forma de estar e de como te posicionas. Há pessoal que só o faz por agenda, mas não podes dizer que todos os comediantes têm de ter responsabilidade. O que é que o Nilton tem de responsabilidade social? As piadas dele são óbvias, mesmo as políticas. Ele não vai mudar a opinião de ninguém. Agora, se fores tipo o [George] Carlin ou o Bill Hicks, que estudam o assunto e que querem passar uma mensagem, aí sim, mas foste tu que escolheste tê-la.
Quais são as tuas maiores influências? Já falámos sobre o Bill Hicks e Woody Allen.
Não tenho só referências no stand up. Por exemplo, o Luiz Pacheco é uma das grandes referências que tenho porque o transponho para a comédia. Bill Hicks, George Carlin, Dave Chappelle, Tig Notaro, Bill Bailey, Dylan Moran, Woody Allen, Bruno Nogueira, o Sinel. Gosto muito do Dan Harmon, do “Community” e “Rick and Morty”. Acho que a cabeça dele é incrível. Toda a Liga de Cavalheiros. Acho que o meu humor mais negro vem da Liga de Cavalheiros. É difícil, porque me lembro desde criança de ver muita comédia como a “Pantera Cor de Rosa”, do Peter Sellers, onde me diziam as legendas e eu começava a rir. Woody Allen foi aos 9 anos que comecei a ler e eu comecei a escrever comédia aos 11 anos. Fawlty Towers e Monthy Python, obviamente. A maior referência de todas é o Bill Hicks, não só como comediante mas como artista. O protótipo do que gostaria de ser. A parte intelectual, musical e por dizer aquilo que lhe apetecia dizer. Um artista deve dizer aquilo que quer e não aquilo que querem que ele diga, pois isso é um entertainer.
Alguém da tua família foi o grande introdutor da comédia na tua vida?
O meu pai. O meu pai porque tinha um grande problema. Tinha e tem, que é não perceber bem a idade dos filhos que tem. É capaz de te tratar como se tivesses cinquenta e dois anos quando tens cinco e capaz de te tratar como se tivesses cinco aos cinquenta e dois. Eu comecei a ler cedo, aos cinco anos, então o meu pai aos oito por exemplo deu-me a “Metamorfose”, do Kafka, e tu de repente não queres ir dormir por teres medo de acordar uma barata. Também li o “Cândido, ou o Optimismo”, do Voltaire, aos nove, e o “Sem Penas”, do Woody Allen, aos nove anos. Foi o primeiro livro em que eu ao ler me comecei a rir. Isso também me mudou no gosto e na busca pela cultura. O Woody Allen fazia-me rir, daquilo que eu percebia, mas eu tinha nove anos e havia carradas de referências filosóficas e musicais que eu não tinha. Eu achava que se me estava a rir com o resto e se não ria com aquilo por não saber o que era, se eu souber o que é também começaria a achar piada. Então comecei à procura. Heidegger e jazz dos anos 40 enquanto os meus colegas ouviam Onda Choc. Lembro-me perfeitamente, na minha festa de seis ou sete anos, a minha mãe teve que ir comprar uma cassete de Onda Choc porque eu só queria ouvir The Doors. Era horrível. Mas sim, o meu pai deu-me esse livro do Woody Allen e eu fiquei vidrado, tanto que depois só descansei quando encontrei na Biblioteca de Arganil o “Para Acabar de Vez com a Cultura”, para aí um ano depois e obriguei o meu pai a comprar outros. O Woody Allen é o único escritor de comédia que conheço que consegue ter piada a cada linha. O “Viva Vargas” continua a ser dos meus contos favoritos. É hilariante. O “Midnight In Paris” foi aquele filme que acabei e voltei a meter de início três vezes seguidas. “Zelig” é um filme brilhante. Um falso documentário brilhante, mesmo. Woody Allen não só me deu essa abertura na comédia como abriu a porta para o resto. Ele abriu as portas para o resto. Consegue fazer uma coisa aborrecida como Kant ter piada. É um dos maiores génios de sempre. O Ricardo Araújo Pereira também tem um vocabulário tão extenso, por ler muito, que para ele é fácil às vezes fazer uma piada só com uma palavra no meio de uma frase. Um orgulho que eu tenho desde que faço comédia é ver pessoal dizer que foi conhecer alguns livros depois de ler espectáculos meus, porque não apanhavam as referências. E isso foi o que o Woody Allen me fez a mim.
Faz sentido haver uma sub-classificação como a do “humor negro”?
Como qualquer classificação. Faz sentido haver death metal? É tudo metal, meu. Mas eu percebo que seja preciso catalogar até certo ponto; percebo isso. Imagina, vou a uma loja de CD’s e não sei o que é que está ali à frente, mas ali está a dizer metal e aqui está a dizer pop e eu já sei o que é que é. Ajuda esta parte de catalogar. Agora acaba por ser limitador ou castrador quando ficas só conotado com aquele estilo. Por exemplo, dizem que sou “o gajo do humor negro” quando não sou.
A rotulagem para ti não é prejudicial?
Para mim [a rotulagem] é completamente prejudicial porque, por exemplo, às vezes ainda me continuam a anunciar em bares como “a noite do humor negro”, depois o pessoal chega e não é humor negro. Não é. Neste momento o meu humor é ácido e irá sempre ser ácido porque eu sou uma pessoa ácida, mas eu não faço humor negro tradicional, já. Fiz quando comecei com aqueles temas: o cancro, a SIDA, doenças, mortes, etc. Hoje em dia é uma coisa diferente. É ácida, mas não é negra. E nesse caso a conotação é um bocado chata, sim.
Já dá para viver da comédia em Portugal?
Sim. Há quem viva muito bem, há quem viva muito mal e há quem sobreviva, mas dá. Eu por exemplo há 8 anos que só faço comédia e escrita para a TV. Também faço guiões para programas. Já fiz desde programas de culinária até VT’s do “Dança Comigo”. Já fiz um bocado de tudo a escrever. Mas sim, dá, como estava a dizer, há 8 anos que eu vivo só disto e conheço pessoal que vive muito bem só disto, conheço pessoal que faz isto e tem que ter outro trabalho, mas por exemplo eu consigo viver da comédia, mas também não tenho filhos, tenho um gato! Se tivesse um filho se calhar não conseguia viver só da comédia. Mas espero algum dia chegar a metade de alguns dos meus amigos. Tenho amigos meus que ganham 200 mil euros por ano. (Pausa) É bom. Tens muita gente a viver da comédia em Portugal neste momento, assim de cabeça mais de 50 pessoas.
Humoristas à base do stand up ou que escrevem como tu?
Stand up, TV…. Tens para ai 50 só a viver disso.
Pegando um bocadinho na pergunta de há pouco da lotação do mercado, achas que está a haver uma expansão, ainda?
Acho que não crescer nem muito mais nem diminuir muito mais, acho que se vai manter agora durante uns anos. Acho, no entanto, que o que interessa é subir a qualidade e a exigência acima de tudo, a exigência pessoal. Não estarem tão focados no sucesso, mas mais na qualidade do que apresentam porque depois o sucesso vem atrás. Não o sucesso em si como o objetivo, mas a qualidade que traz o sucesso. Mas acho que de expansão não vai crescer muito mais, tens um número de miúdos que está a entrar também se calhar vai coincidir com o número de gajos que vão desistir porque nem toda a gente fica, há alguns que só fazem isto por brincadeira durante uns anos e bazam. Mas acho que não vai aumentar muito mais do que isso, a não ser que de repente, e aí eu acredito que haja um bocadinho mais de expansão, abra um Comedy Club a sério em Portugal, que é uma coisa que ainda não há.
O Maxíme é o mais que se aproxima…
Mas não é um Comedy Club. Tivemos aquele em Lisboa que depois faliu, mas é incrível porque tu no Irão tens um Comedy Club. No Irão! Tu não tens um Comedy Club em Portugal. Lisboa deve ser a única capital europeia que não tem um Comedy Club e Portugal deve ser dos poucos países que não tem um Comedy Club.
Achas que isso vai mudar agora?
Vamos ver…
O Maxime está a tentar, o Ferroviário também…
Estou a falar de um Comedy Club sete dias por semana. Só de comédia. Não é só de stand up, estou a falar de comédia. Podes ter teatro, podes ter sketch comedy, podes ter burlesco. Isto é uma coisa também muito portuguesa que é: nós metemos na cabeça que um Comedy Club só tem que ter stand up, quando não. Há muitas formas de se ter comédia em palco. Muitas formas!
Até música.
Exatamente, mas nós cá temos stand up e música. Eu não me lembro de uma sketch comedy desde os “Alcoólicos Anónimos”.
Para o “Tão real que dói” sentiste a necessidade de, havendo tanta gente neste “mercado da comédia” agora, reactivar o teu programa e dar-lhe uma imagem renovada? Sentiste que tinhas que abraçar as redes sociais que foste tantas vezes crítico?
Foi um bocado fazer como todos fazem, deu-me um certo gozo fazer como todos fazem, fazer vídeos outra vez. Basicamente aquilo acaba por ser um bocado irónico… Eu quis fazer aqueles vídeos para dar publicidade a este espetáculo novo, mas ao mesmo tempo quis mesmo fazer como todos fazem, ou seja, aquele vídeo clássico onde estás a falar e corta para sketch e depois meto sempre o meu estilo de escrita, não é? Mas senti a necessidade? Não é que eu sinta a necessidade, mas eu sinto que neste momento és quase obrigado a entrar todos os dias nas pessoas, há tanta coisa que se tu não entrares as pessoas se esquecem que existes, o que é chato. Porque acabas por estar a dar conteúdo de borla à espera de uma remuneração daqui a uns tempos. Mas eu depois acabo por gostar de fazer aquilo. Mas também tenho ideias para outras coisas novas agora, estou a pensar explorar a Twitch TV, que é uma cena de stream. Estou a pensar fazer aí umas coisas, coisas diferentes, porque o “Tão real que dói” já está feito, vai acabar agora e não sei se pego tão cedo nisto mas tenho outros conceitos diferentes para redes sociais que também vou pegar. Acaba por ser uma necessidade mas ao mesmo tempo também acaba por ser como as televisões como estávamos a falar há bocado, não apostam na cena diferente, apostam no mais do mesmo com as mesmas pessoas. Acho que a Internet acaba por ser o único sítio onde podes ter a liberdade total para ser experimentalista. E eu gosto de experimentar coisas.
Mas se colar tem qualidade.
Às vezes não. Às vezes há coisas com qualidade que passam ao lado e há coisas que… Aliás, “Fawlty Towers” quando apareceu teve péssimas audiências. O “The Office” britânico foi o pior piloto de sempre da BBC e é a série mais rentável de sempre da BBC. Passou aí por duas pessoas. Duas pessoas tinham votado “não” e aquilo é 50/50 e foi tipo 51% por 49%. E é a série mais rentável de sempre… Às vezes não é tão linear quanto isso. Mas o Youtube ou as outras redes permitem-me experimentar coisas diferentes e eu gosto de fazer isso. Agora tenho aqui alguns projetos e vamos ver se arranjo financiamento porque isso acaba por sair um bocado do bolso para os levar a cabo sendo que o Twitch é capaz de ser aquele que vai ser o primeira a arrancar, isso ou o podcast e depois tenho outras cenas.
Na música também estás a preparar material.
Sim, vou lançar um álbum de um projecto onde sou vocalista e sou compositor, com o Vasco Duarte. Às vezes parece pedante dizer isto, mas eu não consigo fazer só uma coisa. Não consigo ser só comediante, não consigo ser só músico. Ou faço tudo ou não faço nada. Se eu fizer só comédia vou-me irritar. Às vezes prefiro ficar no sofá a fazer só uma coisa. A música é um sonho que tenho desde criança. Tentei ter algumas bandas mas não correu bem. Há um ano deu-me outra vez muita vontade de cantar e falei com o Vasco para gravar. Tem estado a correr bem e espero acabar até final deste ano ou início do próximo. Depois queria ir para a estrada, gravar mais álbuns. Tenho três na cabeça e todos diferentes. Tal como na comédia não vou estar sempre a fazer o mesmo. Depois estou a escrever um livro de contos e um romance. Também comecei a pintar. Preciso fazer várias coisas de vários tipos diferentes senão fico irritadiço. Na pintura mostro uma parte de mim que nunca tinha mostrado. Na música sou muito doce, ao contrário da comédia, que é mais agressiva. A pintura é mais surrealista e a escritura muito crua, muito bukowskiana. Cada uma dessas áreas vai buscar uma coisa diferente de mim.
Quais são os teus triggers criativos?
A comédia, em mim, vem muito da raiva. Quando não vem da raiva vem da estupefacção por observação de imbecilidades. A música vem da tristeza. Canto a tristeza. A pintura vem da sinestesia, muitas cores, de confusão da cabeça. Quando estou acordado e fecho os olhos vejo formas e misturas de cores e isso é o meu trigger para a pintura. Os meus triggers são muito diferentes consoante a coisa que faça. Para a comédia o mais importante é a raiva, de longe. Na música tive muitos problemas criativos pois estava em bandas de metal e eles queriam tocar trash e a mim só soava algo ao estilo de Leonard Cohen ou Tom Waits. A música é o meu lado mais triste e melancólico.
Falaste em entrevistas passadas que a Bang tinha um conceito?
Sim, todas as pessoas com quem tive na altura falaram-me da estrutura do curso e parecia-me uma coisa muito caixa. Tens que fazer isto, isto, isto e isto. Não tens. Na minha opinião não tens. Quando crias arte podes ter guidelines mas depois podes variar se não és um sapateiro. Estás a fazer uma coisa num modelo estritamente fixo. Eu acho que não é assim. Eu não gostava muito da estrutura, pelo menos do que me diziam da estrutura dos cursos da Bang, nunca achei que fosse o certo. E de facto se pensares bem a Bang vai no sexagésimo curso? E não tens muita gente da Bang que tenha rebentado de sucesso. Pode estar interligado.
Também é uma questão de conceitos. Tens vários estilos. O Carr, por exemplo, está constantemente a disparar.
Sim, o [Jimmy] Carr é formulático, mas por exemplo, do Carr, que foi das minhas grandes referências quando comecei a fazer stand up mais de humor negro, já não consigo ver um espectáculo dele até ao final. Porque já vi tantos que os últimos dois não trazem surpresa nenhuma. Os temas são os mesmos, as piadas são derivações de outras que ele já tinha dito porque chega a um ponto que já estás há tanto tempo a falar do mesmo tema que os ângulos vão soar sempre ao mesmo. Não há novidade. A mim, pelo menos. Eu continuo a achar aquilo tecnicamente perfeito e se ouvir uma piada isolada, uma ou duas, faz me rir muito. Se ouvir um espectáculo todo a meio já estou “então e agora que vai haver de diferente?”. A fórmula tem essa coisa.
Influências de comediantes actualmente? Já falaste do Dave Chappelle.
Gosto do [Anthony] Jeselnik. É formulático mas é diferente. Tenta sempre surpreender-te na punchline e nunca é a punchline óbvia. Tu estás a ver o set up e estás a ir para ali mas a punchline vai para outro lado. E isso é diferente. Gosto muito da Tig Notaro. Muito boa, muito diferente também. Do que eu vi mais recentemente, também foi Bill Burr, obviamente.
Também muita raiva.
Muita raiva (risos). Aliás este último especial estava a ver com um amigo meu, o Manuel Moura Marques, e eu estava-lhe a dizer “f***-se isto é igual”. Eu agora estou muito mais zen, mas eu andava sempre e por isso é que eu também escrevia tanto, mas eu andava sempre no ponto de pré-ebulição. Por exemplo, vou pedir um café e 90% das vezes quando bebo café nunca o tomo com açúcar, só o primeiro do dia. Mas se me dessem o café e não me dessem o açúcar, ou seja, se não me dessem a opção, eu ficava logo a efervescer. Estragava-me o dia. Guardava para dentro mas ficava. E o Bill Burr faz-me identificar muito com ele, há uma raiva dentro dele muito grande. Por isso é que estou em terapia e por isso é que ele vai estar também.
E em Portugal?
Bruno Nogueira, Rui Sinel de Cordes… Eu gosto de mais gente. Eu posso gostar de alguém e não ser uma influência directa para mim. O Sinel é uma influência mais do que no material mas da ambição que ele tem. Identifico-me muito no querer ser melhor. Ele está sempre a procurar ser melhor. Às vezes falha, outras vezes não falha e identifico-me com isso. No Bruno Nogueira identifico-me muito com o explorar de tudo o que quisermos explorar. Independentemente de correr bem, correr mal ou ser o que as pessoas esperam ou não. Nesses aspetos, eles os dois influenciam-me muito.
E é um ator extraordinário.
É um actor extraordinário. Mesmo que não fosse, só a cena dele tentar coisas novas é uma coisa que eu gosto e que admiro. Tal como ambição do Rui, esta experimentação do Bruno. E acabam por ser nesses pontos os dois que actualmente mais me influenciam em Portugal e não tanto pelo material em si. É mesmo pela postura.
Entrevista de João Estróia Vieira e Pedro Piedade.