Entrevista. Silly: “Adoro quando me dizem que não sabem bem o que a minha música é”

por Davide Pinheiro,    13 Dezembro, 2021
Entrevista. Silly: “Adoro quando me dizem que não sabem bem o que a minha música é”
Frame do videoclipe “Vida a Mil”

Uma pequena maravilha. Em apenas treze minutos e 36 segundos, “Viver Sensivelmente” dá-nos a conhecer um pedaço de terra chã e pura, em fascinante processo de reconhecimento. Açoriana, Silly cresceu entre discos de Sérgio Godinho, José Mário Branco e MPB, e a algazarra de cinco irmãos. Depois, veio para o dourado de Serpa e ganhou uma colher de sotaque. O que não perdeu foi a calma de chegar e o gosto pelo belo. Ninguém é uma ilha mas Viver Sensivelmente pode muito bem sê-lo. Eis Silly, o peito cheio de palavras de uma leve Maria Bentes. A fábula de uma rapariga encantada pelo verbo que acabou a trabalhar com gente grande e a prometer feitos ainda maiores. Um daqueles casos que acontecem de tempos a tempos e anunciam longa vida como os iogurtes. 

Estudaste música. Qual é a pré-história do Viver Sensivelmente?
Cresci nos Açores a ouvir muita música. Com onze ou doze anos, comecei a estudar guitarra. Depois passei para o piano, no Secundário. Fiz provas para entrar no Conservatório, já um bocadinho tarde, mas consegui entrar. Fiz o ciclo básico de piano. Foi o período em que estudei mais música. Entretanto, vim para Lisboa. No ano passado, voltei a estudar, na ETIC. Tirei produção de hip-hop.

“A música preenche-me de uma forma estranhíssima. Seria um privilégio poder fazer isso 24 por 7 e viver desse prazer que é a música.”

Silly

O que é que foste à procura nesse curso?
Honestamente, da parte de mistura e masterização. A minha intenção era ganhar autonomia em todo o processo criativo. Ainda sentia muitas dificuldades em gravar-me a mim própria e trabalhar na pós-produção. Quis aprimorar essa parte e assumir o processo do início ao fim. Como também já tinha bases de teoria musical…

Já tinhas relação com o hip-hop?
Sim. A música esteve sempre presente, mas aí há coisa de dois ou três anos, comecei a escrever. A palavra também me enche. Aventurei-me a escrever e a musicar essas letras. Esse sim é um processo um pouco mais recente. O hip-hop é uma referência muito forte naquilo que faço até porque, apesar de odiar catalogar as coisas, era um dos géneros que mais ouvia. Nem que fosse pela forma como escrevo, em verso quase poema, encontrei no hip-hop esse espaço para me expressar.

Na tua cabeça, a Silly já existia?
Não, de todo. Aliás, todo este processo, a começar pelo nome, é muito pouco pensado. Sinto que estou numa bola de neve em que as coisas têm acontecido de forma super-cadente e orgânica, o que é bonito. Ainda não sabia e às vezes ainda nem sei o que é a Silly, ou o que pode ser. Neste momento, estou nesse ponto de encontro entre o que Maria gosta, que é a palavra, e a Silly, que lhe dá corpo e vida. 

Falaste em não-catalogação. O “Viver Sensivelmente” tem como ponto de partida a expressão de uma personalidade, mais do que um género musical?
Sim, sem dúvida. Adoro quando me dizem que não sabem bem o que a minha música é. Obviamente que vamos sempre buscar inspiração aquilo que ouvimos. Se não ouço gospel nem metal, muito dificilmente vou ter essas referências. Sendo o hip-hop, o jazz e a bossa nova os três géneros que mais ouço, acabei por me fundir neles e criar algo diferente, mas esse processo de criação é muito inconsciente. Não estou preocupada se vou fazer um som a rimar do início ao fim. Acaba por sair naturalmente. Para mim, é um bocadinho querer catalogar as coisas. É um alçapão em que podemos cair. 

Tem-se usado o termo “pós-género” para designar a música que não parte da ideia de género.
(ri-se) Sim, eu percebo. Até olhando para trás, consigo perceber isso. Cresci a ouvir José Mário Branco, Sérgio Godinho e Elis Regina.  De repente, na minha adolescência descubro uma coisa chamada hip-hop e começo a ouvir as maiores referências internacionais. Entretanto, encontrei o jazz algures e adoro. É natural que não me consiga prender a um só género. 

As tuas canções começam pela palavra ou pela música?
(pausa) Boa pergunta. Não sei. Às vezes, aponto ideias ou frases-chave e começo a desfiar tudo isso, mas normalmente, quando escrevo é no sentido de musicar isso e dar vida às palavras. Acho que neste momento, parte mais da música e a partir daí, escrevo. Tenho uma ideia instrumental e isso é que desprende o gatilho para começar a escrever. A música acaba por guiar e dizer o que estou a sentir. 

Num texto de apresentação a um concerto teu, era dito que as tuas fontes líricas não são a poesia ou os romances, mas a observação do real. É verdade?
Absolutamente. Ao contrário do que se possa pensar, não sou uma leitora assídua. Provavelmente, tenho que melhorar essa parte. Muita dessa inspiração vem de “observar e absorver”. O estarmos aqui, o café, os pássaros. Mais do que a escrita de outros, ou as palavras das histórias.

Apesar da tua ligação ao hip-hop, o “Viver Sensivelmente” não expõe uma preocupação formal de seguir uma cadência. 
Sim, não tenho essas preocupações. Nem na música, nem na escrita. Nem sequer com aquilo que digo. Não quer dizer que daqui a uns tempos não o faça, se vier com um flow rapidíssimo, mas se acontecer é porque senti essa necessidade. A minha cadência está mais próxima do spoken word do que do hip-hop, mas, por exemplo, no “Vida a Mil” os versos têm alguma rapidez. Mais pela urgência daquilo que estou a dizer, do que por querer um flow de rapper. Na forma como entregas a palavra, também reforças o texto. 

Talvez a principal característica da insularidade seja a distância — a simbiose espaço-tempo. Consegues reconhecer os Açores naquilo que fazes?
Sem dúvida que fazem parte. Voltei ontem de lá. Passei cinco dias nos Açores e voltei renovada. Tentei trazê-los para o EP. Os primeiros segundos que se ouvem fui eu que gravei o som do mar nos Açores. A natureza e o que a rodeia é uma influência muito grande em mim. É um espelho daquilo que sinto e vivi. A mistura acaba também por se notar em termos musicais e líricos. O verde, a força da natureza, a energia vulcânica. Essas metáforas todas.

Uma mistura de paz e tensão?
Exacto. Os Açores são o principal culpado disto.

Mais do que o Sandro G?
(Gargalhada)

É possível alguém como tu singrar a partir dos Açores, ou a distância continua a ser demasiado grande?
Não sei. Acho que não seria limitativo. Hoje em dia, fazes música onde quer que estejas e consegues partilhá-la com alguém do outro lado do mundo. Nunca imaginaria que alguém na Tailândia me pudesse ouvir, e isso acontece. Claro que depois facilita estares perto do “acontecimento”. Mesmo em Portugal continental, artistas do norte ou do interior sentem-no, mas não é isso que vai bloquear. 

Como é que alguém no começo consegue ter um naipe de produtores reconhecidos como o Pedro da Linha e o Charlie Beats, além do Eu.Clides e dos Deekapz?
Há muito tempo que tinha em mente fazer um EP e esse processo foi muito solitário. Entretanto, essas pessoas foram surgindo. Conheci o Eu.Clides e criámos uma relação muito próxima. No início deste ano, ele partilhou comigo o instrumental do Vida a Mil. O Charlie Beats conheci na ETIC quando ele nos deu algumas aulas. Depois convidei-o e ele aceitou. E o Pedro da Linha também. São pessoas que se cruzaram comigo, perceberam o que estava a fazer e quiseram também agarrar este barco. Para um primeiro projecto, nunca imaginei…sempre pensei que fosse uma coisa só minha, e provavelmente já estaria cá fora há muito mais tempo. Para mim, foi incrível não ter pressa nenhuma e eles terem entrado. Alongou o processo mas tornou esta história muito mais bonita, e a música é que tem que prevalecer. Não é a pressa.

Ainda assim, o EP tem um som doméstico, de quarto. Foi deliberado?
Sim, acho que essa sujidade se mantém porque as canções partiram sempre de mim. O Pedro só veio mais tarde. Não foi uma coisa de raiz. Ele compreendeu a minha linguagem e respeitou-a. Acho que consegui manter a minha “identidade”, ainda que para mim seja um bocadinho difícil reconhecê-la porque estou muito dentro do processo. 

Quiseste conservar a autenticidade?
Acho que sim. Acima de tudo, foi o respeito pela minha linguagem que o Pedro conseguiu perceber.

O “Viver a Mil” começa assim: “No fundo, estou num planeta mas queria estar noutro/Ainda nem estragaram este, já estão a pisar outro”. Estas palavras remetem para o problema ambiental. Revês-te na geração das causas?
Não sei. Não tenho essa intenção, mas é inevitável. Escrevi esse verso numa viagem de autocarro de Serpa para Lisboa. Passas nas planícies do Alentejo e vês uma paisagem completamente destruída com olivais intensivos. É inevitável não te fazer confusão e não te questionares. Mas no fundo, todos esses versos são metáforas para coisas minhas. Não tenho a preocupação de ser ultra-reivindicativa mas é inevitável não sê-lo. O que fiz foi usar isso para me compreender. Esses versos abordam a questão ambiental, de olhar para o planeta, ver como ele está e, de repente, estamos a aterrar em Marte para ver se há água, mas em mim é também a inquietação de nunca estar fixe no mesmo sítio. Essa pressa que eu não tenho, reconheço-a à minha volta. Faz-me alguma confusão. 

Ainda te sentes num processo de auto-reconhecimento?
Sim. Eu achava que ia chegar a essa bóia salva-vidas mas não. Eu sou um bebé e tudo isto é muito recente. Ainda me é difícil perceber o que é que é isto que faço, o que é que vou fazer, quem sou e qual é o caminho. Já estive mais preocupada em encontrar-me e agora estou só a deixar fluir. É isso que vai ditar um caminho ou vários. Pode não haver um caminho e ser eu desbravá-lo. É normal. Quando estás dentro do processo, é difícil distanciares-te. Fiquei muito feliz quando me dizem que tenho uma identidade própria, mas às vezes é-me difícil reconhecê-la.

Quem ouça a Silly fica a conhecer a Maria?
Sem dúvida. Quem ouvir o EP, e não me conhecer, vai aproximar-se muito de mim. Quem me ouvir e me ler, vai perceber, através das letras, como é que sou e o que penso. A Silly acaba por ser a Maria com coragem de se assumir artisticamente. 

Viver só da música é uma ambição?
É, sem dúvida. A música preenche-me de uma forma estranhíssima. Seria um privilégio poder fazer isso 24 por 7 e viver desse prazer que é a música. Acho que ainda estou longe de lá chegar mas até lá vou criando música. O EP prendeu-me muito, não conseguia avançar para outras ideias, mas agora estou outra vez numa maré de inspiração. Já voltei a escrever e a criar de novo. 

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