Entrevista. Sofi Oksanen: “Nos países ocidentais, ainda não se compreende verdadeiramente o conceito de deportação”

Para a escritora Sofi Oksanen, de nacionalidade estónia e finlandesa e autora do livro “A Guerra de Putin contra as mulheres”, a Europa ocidental ainda tem muito a aprender com a experiência da Europa de leste no que concerne à Rússia, experiência que a seu ver é subvalorizada. Para si é inconcebível os Estados Unidos da América “estarem a eliminar provas de crimes de guerra” referentes à guerra na Ucrânia, e fala na necessidade premente de salvaguardar todas as provas desses crimes. No passado havia a desculpa do desconhecimento por falta dos dispositivos de comunicação que temos hoje, mas atualmente já não há essa desculpa e as provas abundam, sendo necessário salvaguardá-las: “Precisamos de encontrar fundos, recursos e pessoas para garantir que, na União Europeia, consigamos preservar esses dados em segurança. Acredito que nos iremos preparar para isso.“
A autora acrescenta que “talvez muitos europeus ainda pensem que a guerra na Ucrânia é algo distante, mas não é. A Rússia considera-se em guerra com o Ocidente, isso significa que não se trata de uma escolha nossa, eles decidiram“. E salienta que “tudo depende da Europa. (…) Durante décadas, a nossa defesa baseou-se na ideia de que podíamos contar com os EUA. Agora vemos que talvez já não possamos. A autossuficiência é necessária, mas é um projeto de décadas. Neste momento, a Ucrânia é uma superpotência militar, tem a maior experiência no combate à Rússia e a melhor experiência com drones. Vamos depender dessa experiência.” A escritora revela ainda que escreveu o recente ensaio “por sentir que as vozes das mulheres estavam a desaparecer do discurso público sobre a guerra“, e explica que “se apagarmos a perspetiva das mulheres e das suas experiências da narrativa pública da guerra, então ficamos com uma compreensão distorcida das consequências gerais da guerra e, sobretudo, como isso afeta o futuro.” Sofi Oksanen esteve em conversa com a Comunidade Cultura e Arte, no festival LeV [Literatura em Viagem], em Matosinhos.
Ao longo do seu livro, refere como as experiências dos europeus de leste não foram tidas como suficientemente importantes ou interessantes pela Europa Ocidental. Poderia falar um pouco sobre isso? Porque no final do prólogo do seu livro, escreve que essa lacuna se deve à indiferença, à ignorância e à negação de que o Leste Europeu conhece bem a Rússia, bem como ao dinheiro dos oligarcas que entrou nas economias ocidentais.
O conhecimento proveniente da Europa de Leste nunca foi tido como verdadeiro. É visto como uma reação emocional daqueles pequenos seres humanos oriundos dos países do Leste Europeu. Tem sido esse o tom constante quando os países ocidentais tentam analisar as questões russas: que o conhecimento ocidental é de alguma forma superior, mais atual e mais baseado em factos.
“Se pensarmos na forma como se fala de Putin nos países ocidentais, ele é retratado como um indivíduo, uma figura singular, quando na verdade seria mais correto falar do “coletivo Putin” ou do “regime de Putin”. Ele não é um ator isolado na Federação Russa.”
Mas quando falamos do Báltico em específico considera que ainda precisamos, verdadeiramente, de ouvir as histórias que têm para contar?
Obviamente. Tenho escrito, por exemplo, sobre deportações há mais de 20 anos, e é estranho ver que, em 2025, as pessoas ainda colocam perguntas do género “porquê?”, quando confrontadas com as deportações de crianças ucranianas. Parece que, nos países ocidentais, ainda não se compreende verdadeiramente o conceito de deportação. O ocidente claramente não entende o conceito de “deportação”. Não estou a dizer que em Portugal não se entende, mas se pensarmos nas conversas públicas, no discurso público, vemos que o termo correto em inglês é “deportation” (deportação), mas os ucranianos foram inteligentes ao adaptar o discurso e passaram a usar termos como “kidnapping” (rapto) ou “abduction” (sequestro), que são mais descritivos e explicativos o suficiente, o que é bom. Mas, historicamente, o termo correto é “deportação” e é uma tática antiga da Rússia.
Acha que falhámos na nossa análise de Putin, não o entendemos bem?
Se pensarmos na forma como se fala de Putin nos países ocidentais, ele é retratado como um indivíduo, uma figura singular, quando na verdade seria mais correto falar do “coletivo Putin” ou do “regime de Putin”. Ele não é um ator isolado na Federação Russa, representa um tipo específico de regime. Outra coisa que me incomoda é que, quando se fala de cidadãos da Federação Russa ou do chamado “mundo russo”, há uma tendência para se usar simplesmente o termo “russos”. Mas isso é tão errado como chamar “ingleses” a todos os falantes de inglês do mundo — como se os australianos ou os americanos fossem ingleses só porque falam a mesma língua — ou como se todos os países que falam espanhol fossem uma única entidade, “os espanhóis”, e não o são. Este é um dos problemas centrais na compreensão da Federação Russa: aceitar esse termo colonial, “russos”, para referir todos os povos do mundo russófono. Estamos a falar de quase 200 grupos étnicos diferentes, com línguas e culturas próprias.

O crime de violação é uma das principais formas de violência cometidas contra civis em guerra. Muitas vezes é retratado como resultado dos impulsos dos homens ou soldados, mas no seu livro descreve-o como uma forma de genocídio e humilhação. O que torna a violação e a subjugação das mulheres uma ferramenta de guerra tão poderosa?
Porque é uma prática extremamente eficaz e barata. É a forma mais eficiente, em termos económicos, com consequências psicológicas e físicas devastadoras.
No seu livro fala, também, sobre as mulheres na educação. Se estes regimes subjugam as mulheres, isso parece afetar todos os sistemas, incluindo o da educação, por exemplo.
Sim, é um paradigma, afeta todos os níveis da vida. A razão pela qual escrevi este livro foi precisamente por sentir que as vozes das mulheres estavam a desaparecer do discurso público sobre a guerra, mesmo que a guerra seja, sempre, marcada por questões de género. Se apagarmos a perspetiva das mulheres e das suas experiências da narrativa pública da guerra, então ficamos com uma compreensão distorcida das consequências gerais da guerra e, sobretudo, como isso afeta o futuro.
Quando falamos, por exemplo, em “acordos de paz” — agora os títulos dos jornais falam sobre “negociações de paz” —, raramente ouvimos a voz das mulheres. Mas se pensarmos numa paz duradoura, sabemos pela história mundial que quanto maior a participação das mulheres nestas negociações, maiores as hipóteses de uma paz verdadeira e duradoura. É, por isso mesmo, crucial incluir as mulheres nesse processo.
“Se apagarmos a perspetiva das mulheres e das suas experiências da narrativa pública da guerra, então ficamos com uma compreensão distorcida das consequências gerais da guerra e, sobretudo, como isso afeta o futuro.”
Putin representa um regime misógino. No ocidente temos agora Trump, que também não demonstra simpatia pelas mulheres. Parece haver um ressurgimento de ideias conservadoras sobre o papel das mulheres não só vindo da Rússia, mas também no ocidente. Como olha para esta questão?
Não é exatamente algo novo. Em relação aos direitos das mulheres, estamos sempre num ciclo: dois passos em frente, um passo atrás. Isso aplica-se aos direitos humanos em geral e, agora, vivemos uma fase de retrocesso. É um padrão, algo que talvez até devêssemos ter previsto.
Aqui em Portugal, por exemplo, fala-se muito sobre como as redes sociais contribuem para a disseminação de ideias misóginas e até de ideologias extremistas entre os mais jovens. Parece que as redes sociais estão a ser usadas para amplificar essas ideias.
Sim, são amplificadoras. Deveríamos exigir mais responsabilidade às empresas que gerem as redes sociais. Nenhuma empresa assume responsabilidade voluntariamente, por isso temos de pressioná-las. Talvez devêssemos ter pensado nisso mais cedo, mas as redes sociais ainda são algo muito novo na escala da história humana. No entanto, é tempo de agir.

No seu livro fala sobre a experiência da ocupação russa no Báltico e o que se passa agora na Ucrânia. Vê paralelismos entre o que aconteceu na Estónia e nos outros países ocupados, e o que está a acontecer agora?
Talvez não paralelismos diretos, mas a Rússia está claramente a repetir o mesmo guião — só que em contexto moderno. Nada disto é novo.
Também diz no seu livro que, no caso de violações, o que importa não são os números.
Sim, porque não é possível quantificar os efeitos desse tipo de violência. Podemos contar quantas pernas amputadas, quantas vidas perdidas e pessoas fora do mercado de trabalho, mas os efeitos da violência sexual são mais difíceis de quantificar. Há tantas formas diferentes de violência sexual, e as próprias vítimas, muitas vezes, não conseguem contar o número de vezes ou o número de agressores.
“Deveríamos exigir mais responsabilidade às empresas que gerem as redes sociais. Nenhuma empresa assume responsabilidade voluntariamente, por isso temos de pressioná-las.”
Achei interessante a forma como descreve o choque cultural sentido pelos soldados russos ao entrarem em territórios ocupados — ao confrontarem-se com um nível de desenvolvimento que nunca tinham testemunhado. Tendemos a ver a Rússia como um país vasto, com armas nucleares, uma potência quase imbatível. Mas esquecemo-nos de como vive a sua população. Acha que este choque cultural aumentou o ressentimento?
Não sei se é ressentimento, talvez aumente a agressividade. A maioria dos soldados russos nunca saiu da Rússia, nem tem passaporte internacional. Então, ao chegarem à Ucrânia e verem que o nível de vida de lá é melhor — e estamos a falar de um dos países mais pobres da Europa —, isso pode causar frustração. Mas, em vez de dirigirem essa frustração para o Kremlin, direcionam-na contra os civis ucranianos. Isso é uma explicação psicológica possível para a brutalidade, não a justifica, mas ajuda a compreendê-la.
Com o regresso de Trump à presidência dos EUA, e considerando como Zelensky foi recebido na Casa Branca, ou a demissão do embaixador dos EUA na Ucrânia — como interpreta tudo isto? Que impacto poderá ter a política externa de Trump na guerra na Ucrânia?
Tudo depende da Europa. Conseguiremos manter-nos unidos? Durante décadas, a nossa defesa baseou-se na ideia de que podíamos contar com os EUA. Agora vemos que talvez já não possamos. A autossuficiência é necessária, mas é um projeto de décadas. Neste momento, a Ucrânia é uma superpotência militar, tem a maior experiência no combate à Rússia e a melhor experiência com drones. Vamos depender dessa experiência.
Acha que a União Europeia está a aprender a lidar com esta situação?
Talvez muitos europeus ainda pensem que a guerra na Ucrânia é algo distante, mas não é. A Rússia considera-se em guerra com o Ocidente, isso significa que não se trata de uma escolha nossa, eles decidiram. Podemos não querer estar envolvidos, mas estamos. Isso não depende da nossa vontade.
No seu livro, refere que uma das defesas de Putin é dizer que quer acabar com o fascismo na Ucrânia e em outros países que antes faziam parte da URSS. Mas ele próprio é um dos grandes impulsionadores da extrema-direita que tem emergido nos últimos tempos.
A Rússia é um país de extrema-direita.
Mas é uma contradição, não é?
Talvez não. A União Soviética também era uma ditadura que se dizia democrática e igualitária. A propaganda nunca reflete a realidade — é esse o seu propósito. É para branquear e justificar ações ilegais. Segundo a lei russa, invadir outro país assim é ilegal. A propaganda serve para tornar isso “legal”, ou aceitável, aos olhos do povo.
Mas por vezes parece que nos esquecemos, quando Putin fala frequentemente sobre a necessidade de acabar com o fascismo e o nazismo, que a Rússia de hoje já não é a mesma da antiga União Soviética.
Isto é verdade e voltamos à questão da linguagem, uma linguagem que molda a realidade. Quando se fala da União Soviética, muitas vezes diz-se “Rússia”, mesmo que tecnicamente se esteja a referir à União Soviética. Isso já acontecia durante os anos soviéticos: falava-se da Rússia, mesmo tratando-se da URSS.
Uma das grandes diferenças é a estrutura da sociedade. Na União Soviética, era o Partido Comunista que detinha o poder supremo. Agora, isso não existe mais. O país é atualmente governado por órgãos de segurança.
Os crimes de guerra, como as violações e a subjugação das mulheres, serão hoje ainda piores na Ucrânia do que eram antes?
Vivemos num mundo diferente, atualmente sabemos mais. Hoje, sabemos mesmo que estes crimes estão a acontecer neste preciso momento. E a grande questão ética é: o que fazemos com esta informação? Há 50 ou 100 anos, quando ocorriam coisas como genocídios, as pessoas, noutros países, muitas vezes nem sabiam. Simplesmente porque não havia meios de comunicação modernos: não existiam iPhones, não se podiam gravar provas no momento em que os crimes estavam a ser cometidos.
Hoje vivemos num mundo completamente diferente. Até nas guerras dos Balcãs não havia telemóveis. Agora, pela primeira vez, enfrentamos uma situação destas com acesso imediato a provas.
Portanto, a grande questão ética é: o que fazemos com esta informação? Antes, a desculpa era “não sabíamos”. E era uma desculpa legítima, porque de facto não se sabia. Mas agora sabemos. Temos provas e temos conhecimento. E o que vamos fazer com isso?
Há imensas provas sobre o que se passa na Ucrânia. O que vamos fazer com esse material? Para que fim será usado? Ao mesmo tempo, a recolha e conservação das provas pode ser uma forma de respeitar as vítimas. Por isso é importante garantir que essa informação é guardada em segurança.
Esta é uma questão crucial. Por exemplo, a administração Trump nos EUA começou a destruir a base de dados sobre crianças deportadas. O tribunal deu agora um prazo de seis semanas para que essa informação seja restaurada em segurança, provavelmente na Europa.
Só o facto de os Estados Unidos estarem a eliminar provas de crimes de guerra já é, por si só, algo impressionante. Chocante, até. O simples facto de o quererem fazer já é grave. Estavam prontos para isso e o acto em si é revelador.
Consegue-se imaginar o Reino Unido a destruir uma base de dados sobre o Holocausto? Seria impensável. Mas os Estados Unidos estão numa posição em que estavam preparados para eliminar provas de crimes de guerra cometidos pela Rússia.
Eticamente, isto levanta uma questão enorme. Significa que não há respeito pelas vítimas. Não há respeito pelos factos. E, numa altura em que temos provas legítimas que permitem constituir processos legais, enfrentamos uma situação em que uma democracia liberal está disposta a destruir essas provas. Isso é profundamente perturbador.
Mais uma vez: estamos preparados para manter esta informação em segurança? Essa é uma tarefa imensa. Pode parecer um detalhe, mas não é. É essencial garantir a segurança da informação e proteger a identidade das vítimas.
Quando os governos falham, os meios de comunicação têm a responsabilidade de não deixar que estes casos morram no esquecimento? Se algo desta gravidade está a acontecer, não podemos ignorar.
O que me perturba profundamente é o facto de um Estado estar pronto para destruir provas de crimes de guerra cometidos pela Rússia. Enquanto isso, os meios de comunicação focam-se nas questões económicas ou fiscais, mas não neste tema.
O que podem fazer as organizações internacionais?
Precisamos de encontrar fundos, recursos e pessoas para garantir que, na União Europeia, consigamos preservar esses dados em segurança. Acredito que nos iremos preparar para isso.
Outro problema é o financiamento dos meios de comunicação independentes, como a Radio Free Europe e outras instituições de investigação. Estes meios, muitos deles apoiados pelos EUA, estão agora a perder apoios financeiros. Não estávamos preparados para isso. Temos de encontrar financiamento porque, se não apoiarmos os meios independentes — tanto da oposição russa como os que operam fora da Rússia — estaremos claramente a dar vantagem ao Kremlin. No mundo ideal, poderíamos fazer tudo isto sem dinheiro. Mas, na realidade, não é possível. Tudo isto exige recursos.
Tem tido contacto com mulheres ucranianas fora da Ucrânia?
Sim, tenho contacto com mulheres ucranianas que vivem fora da Ucrânia. Tenho amigas ucranianas que estão no estrangeiro. O estado de espírito delas depende da vida que levam — do que fazem, de onde estão.
Mas estes crimes de guerra podem destruir o nosso próprio sentido de identidade enquanto mulheres. Esse é um dos efeitos a longo prazo da violência sexual e destes crimes, e é algo que ainda está a ser estudado.
O que acontece às vítimas na Ucrânia é devastador e, também, é importante perceber que estes crimes ocorrem em vários contextos: em campos, prisões, com civis, com prisioneiros de guerra. Basta saber que estas coisas podem acontecer para que isso já tenha um impacto. Funcionam como uma ameaça: um exemplo do que “vos podemos fazer”.