Entrevista. Susana Peralta: “As pessoas vivem num mundo tão centrado na sua própria maneira de viver que cada um acha que é a classe média”

por Ricardo Farinha,    1 Agosto, 2023
Entrevista. Susana Peralta: “As pessoas vivem num mundo tão centrado na sua própria maneira de viver que cada um acha que é a classe média”
Susana Peralta / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Esta entrevista teve também o contributo do Rui André Soares.

Especializada em economia pública e política, com foco para a fiscalidade, Susana Peralta é uma das académicas mais presentes no espaço público em Portugal. Professora da Nova SBE, escreve no jornal Público, faz comentário regular na RTP e integra o programa “Fora do Baralho”, da rádio Observador, além de ir expressando as suas visões nas redes sociais, para os muitos milhares que a seguem.

Embora advenha de um contexto social e educativo privilegiado, e pertença a uma elite mediática, Susana Peralta demonstra ter uma forte consciência de classe e escreve frequentemente sobre os problemas que mais assolam as pessoas comuns, ou pelo menos aborda os grandes temas tendo em conta esse prisma — o que não é comum para quem vive distante dessas realidades.

Frontal, crítica, progressista, europeísta e independente, a Comunidade Cultura e Arte entrevistou a economista sobre uma série de temas, desde a forma como Portugal lida com o seu passado até aos problemas do setor da cultura, passando pela crise da inflação, as perceções erradas de quem ocupa os lugares de decisão ou a falta de representatividade dos jovens na política nacional.

Escreves no Público, fazes rádio no Observador, comentas na RTP. Sendo especialista em economia, uma ciência que se relaciona com quase todas as áreas da sociedade, é fácil perceber até onde, em termos temáticos, faz sentido escreveres sobre determinado assunto ou abordá-lo num comentário público?

Não, há coisas sobre as quais não escrevo. Por exemplo, sei lá, esta coisa da guerra. Escrevi poucas vezes sobre o tema da guerra, mas quando escrevi foi sobre os oligarcas, as sanções, offshores… Aí tenho opinião. Agora, escrever sobre estratégia militar… Disso não percebo nada, não sei. E depois há coisas mesmo de economia sobre o qual não escrevo. Como não sou macroeconomista… Posso falar, por exemplo, da inflação — e falo bastante, aliás — mas sob o ponto de vista daquilo na vida das pessoas. Agora, sobre as expetativas da inflação do Banco Central Europeu… Não sou capaz, não tenho capacidade. Quer dizer, sou capaz de dizer uma frase sobre isso na rádio, de explicar que há pensamento sobre isso e que alguns especialistas dizem assim e outros assado, agora escrever duas páginas sobre isso seria incapaz. Também não tenho jeito nenhum na análise dos atores políticos. “Ah, o sujeito está a fazer assim para se posicionar assado…”

A politiquice?

Não sei se é politiquice, mas não tenho jeito nenhum para isso nem o faço. E deve haver outros. Portanto, há imensas coisas sobre as quais não escrevo. Agora, é verdade que a economia é uma ciência social e vai a muita coisa — à saúde, à educação, às desigualdades, à discriminação. Tudo isto são temas que a economia estuda e, aí, em princípio, não tenho medo. Temas de accountability, transparência, corrupção… Esses não me assustam. Depois, há semanas mais inspiradas do que outras. Também há semanas em que aquilo me dá uma trabalheira, por vezes nem sei como me meto naquilo. Há umas semanas escrevi um sobre os salários no setor público e aquilo foi horrível, passei a tarde toda naquilo. Como é que eu me meti nesta empreitada? Porque às tantas começo a puxar o fio à meada…

E esse texto, em particular, talvez fosse mais técnico do que a maior parte. 

Sim, deu-me imenso trabalho para ir buscar exemplos e ter aquilo bem documentado. Também porque estava a criticar o Ricardo Arroja, que depois também me criticou educadamente, e bem — portanto tinha que ter cuidado, porque é uma pessoa pela qual tenho bastante respeito, não iria pôr-me assim a atacá-lo sem saber o que estava a dizer. Atacá-lo do ponto de vista intelectual, claro. Portanto, aquilo deu-me uma trabalheira, foram horas. E lembro-me de chegar ao fim do dia e pensar: why?! [risos]. Aí é um bocado louco. Porque planeio a minha tarde de uma maneira e depois a minha tarde foi-se. 

E o interesse pela microeconomia, até face à macro, tem a ver com a ligação direta à vida das pessoas?

Sim, acho que são um bocado acasos da vida. Na vida, muitas das coisas que te acontecem são por acaso. E esta aqui certamente que também. Já na faculdade, gostava mais de micro do que de macroeconomia, e depois é um bocado por onde entras, quando começas o doutoramento e assim. Hoje em dia, provavelmente a resposta a essa pergunta é um sim. Mas, do ponto de vista da minha formação académica, não tenho a certeza de que seja a ligação à vida das pessoas. Acho que é um exercício intelectual que na altura me pareceu mais lógico ou coerente, do ponto de vista da infraestrutura científica. A macroeconomia também evoluiu imenso nos últimos anos, mas lembro-me de que na altura a micro era mais intuitiva, eu achava mais interessante. E hoje em dia também tem esse aspeto da vida das pessoas.

Também porque, enquanto comentadora ou colunista, escreves e falas muito sobre a vida das pessoas, relacionado com conceitos económicos.

Sim, sim. Mas acho que sou microeconomista por causa do exercício intelectual. Acho que foi por aí o caminho. Não vale a pena dizer que estava na faculdade, aos 22 anos, até porque nem sequer trabalhava com dados empíricos, sabia lá o que é que eu iria ser na vida… Agora, aquilo divertia-me e ainda me diverte. Agora, hoje esta ligação é super importante para mim. Fui treinada como microeconomista teórica, de teoria aplicada. Mas acho que, hoje, trabalhar com dados e desta enorme heterogeneidade — de as pessoas estarem em posições tão diferentes perante a sociedade e a economia de uma maneira geral — é algo que acho fascinante. E que vem dessa infraestrutura teórica, está tudo ligado. 

Susana Peralta / Fotografia de Rui André Soares – CCA

E tens comentado bastante sobre vários assuntos, mas muitas vezes com esse prisma, até a criticar a abordagem que existe da parte do Estado ou dos governantes em relação aos problemas comuns das pessoas, que muitas vezes estão relacionados com a economia.

É, porque acho — não, tenho a certeza — que a maior parte de nós vive em bolhas sociais razoavelmente fechadas. Acho que isso faz parte da natureza do ser humano. Portanto, as elites políticas e até mediáticas têm muita dificuldade em perceber como é que vivem as pessoas normais. Que estão muito, muito longe de serem iguais a nós. Desse ponto de vista, é verdade que no meu trabalho com dados sobre as famílias portuguesas me permite ter um cheirinho sobre isso e uma sensibilidade que muitas pessoas neste círculo não têm. As pessoas vivem num mundo tão centrado na sua própria maneira de viver, todos os nossos amigos são parecidos connosco, no fundo é aquele viés de que cada um de nós acha que é a classe média… Porque, de facto, todos temos amigos que vivem um bocadinho melhor, alguns que vivem um bocadinho pior, mas nós estamos no centro. Então, a maior parte das pessoas acha que é classe média. O que é uma coisa fora de série… Quando a maior parte das pessoas que fala nos jornais, e os políticos, estão para aí no top 10% ou 20%.

E se calhar não existe propriamente essa perceção do lado das elites políticas e mediáticas.

É uma baixíssima perceção. Há pessoas que a têm, mas são raras. A maior parte das pessoas não tem essa perceção. Isso, durante a Covid-19, foi gritante, a um ponto perverso.

Em relação às medidas que foram implementadas?

Sim, aquela loucura do “todos para casa, todos para casa”. No auge do teletrabalho, havia 40% dos trabalhadores em casa. No auge dos auges, dos mega lockdowns, quando andava tudo com medo de morrer. Portanto, a maioria continuava a trabalhar fora de casa. E, no entanto, quando víamos a televisão, era como se estivéssemos todos em casa… 

“Fui treinada como microeconomista teórica, de teoria aplicada. Mas acho que, hoje, trabalhar com dados e desta enorme heterogeneidade — de as pessoas estarem em posições tão diferentes perante a sociedade e a economia de uma maneira geral — é algo que acho fascinante. E que vem dessa infraestrutura teórica, está tudo ligado.”

Vai haver sempre as tais maiorias silenciosas. Mas a ideia não poderia ser a de incentivar a que as pessoas que de facto pudessem ficassem em casa?

Acho que não. Claro que havia pessoas com essa estratégia deliberada, mas a maior parte estava mesmo convencida de que estava tudo em casa. E a maior parte das pessoas não se apercebeu, por exemplo, da desgraça que estávamos a fazer à escola, porque imaginava um ambiente em casa, com meios tecnológicos, financeiros e académicos semelhantes ao seu. Todas as pessoas que falam na televisão, ou os responsáveis de saúde pública que tomaram medidas ou que sugeriram medidas relativamente a isso, são pessoas com um nível de rendimento e de qualificações que realmente permitem implementar um sistema de escola em casa. Os meus filhos estiveram ótimos, aprenderam tudo o que tinham para aprender e se calhar os mais velhos até aprenderam mais, porque aprenderam competências de organização do tempo, que não tinham na escola… Acho que foi bom. Claro que também perderam muita coisa, mas obviamente que tinham meios tecnológicos, a ajuda de duas pessoas com doutoramentos, tinham impressora, Internet que não falhava… Tinham tanta coisa que a maior parte das pessoas não têm. E a maior parte das pessoas que opinava sobre este assunto era como a minha família. Que, na verdade, corresponde para aí a 10% do país. E isso acho que é dramático. Essa falta de consciência levou à tomada de decisões parvas, perversas, coisas horríveis mesmo. A parte de fechar os espaços públicos… Se vives numa casa sobrelotada, ir ao espaço público e ao ar livre é uma coisa super importante para a saúde mental. E acho que, mais uma vez, as pessoas que tomam essas decisões vivem em casas que não estão sobrelotadas. Enfim, para mim isso foi gritante. Mas é muito comum em muitas dimensões da vida. É um viés natural, isso está estudado pelos psicólogos…

Mas é um dos principais problemas das sociedades como a nossa, no sentido em que quem está num lugar de decisão está muito distante da vida da maior parte das pessoas?

Bem, é melhor nas democracias do que nas ditaduras.

Naturalmente.

Todas as sociedades têm mecanismos de decisões públicas ou coletivas que são tomadas de uma minoria para a maioria. E isso pode ser mais ou menos perverso, nas ditaduras é o cúmulo da perversidade. Temos uma minoria que se apodera de tudo e que não tem qualquer espécie de accountability… Não têm qualquer tipo de incentivo sem ser em limites extremos, como no caso de um golpe de estado. Nas democracias, apesar de tudo, as pessoas têm maneira de se exprimir. É óbvio que os decisores políticos refletem de forma menos enviesada as preferências ou preocupações do cidadão comum. Agora, continua a ser uma elite, portanto também tem as suas perversões — não tão graves, obviamente. É o melhor sistema que temos. Ora, temos é que lutar por este sistema se tornar mais inclusivo e isso implica, sei lá, esta coisa agora da Conferência sobre o Futuro da Europa… Eles vão fazer uma seleção aleatória de cidadãos para irem falar com os decisores políticos, porque é sabido que as pessoas mais pobres têm muito menos voz. Não só votam menos como participam menos, como não são entrevistadas nem vão espernear para a televisão… Por isso, ir buscar maneiras dessas ou ter processos de audição de grupos mais desfavorecidos, que muitas vezes têm organizações locais… A democracia tem de ser complementada com esses mecanismos de ir ouvir as pessoas que estão mais excluídas dos processos de decisão. Desde logo, porque votam menos, mas não só, estão excluídas em todas as formas de participação política e cívica. As democracias são um sistema super imperfeito e temos que lutar para ele ser melhor, sem nunca cair… O outro é muito pior, não é?

“As pessoas vivem num mundo tão centrado na sua própria maneira de viver, todos os nossos amigos são parecidos connosco, no fundo é aquele viés de que cada um de nós acha que é a classe média.”

Obviamente. Mas muitas vezes até pode passar a ideia de que as próprias elites políticas das democracias não estão interessadas em que haja esses tais mecanismos mais participativos da população.

Sim, acho que muitos não estão. Há muitos que estão despertos para isso, mais preocupados, têm mais consciência. E há muitos que não. Desde o puro self-interest, as pessoas que estão lá só para verem mesmo o que sacam para eles próprios, até a uma certa indiferença e falta de noção destes vieses naturais da representação política, acho que há de tudo. Agora, acho que não há assim uma grande solução. Acho que vamos sempre viver com este problema nas democracias: da falta de representação dos interesses das pessoas mais desfavorecidas.

Mesmo que possa ser reduzido, é sempre inevitável, em certa medida?

Acho que é bastante inevitável, tanto que — nem sendo eu assim tão competente para falar sobre isto —, os lugares de representação política são lugares que recrutam pessoas com níveis de educação superior, porque aquilo é difícil. É um emprego bastante qualificado, na verdade. 

Estando bastante presente no espaço mediático, acreditas que estamos muitas vezes, enquanto sociedade, preocupados com casos políticos que muitas vezes não são assim tão importantes comparado com outras questões que abordas nos textos ou nos trabalhos que fazes, e que dizem, na verdade, muito mais à vida das pessoas? Existe uma bolha mediática que alimenta em demasia certos problemas que na verdade não são assim tão importantes para a maior parte das pessoas?

A resposta a essa pergunta é sim, obviamente. Há muitos assuntos que ocupam uma atenção desmesurada no espaço público e que são muito pouco importantes para a vida das pessoas normais. Mas eu também acho que nem todos os casos são isso. Por exemplo, acho que o tema do SIS é fundamental para o nosso estado de direito. Devíamos perder muito mais tempo com aquilo até o governo se vir explicar. E não tenho a certeza de que aquilo toque no cidadão comum… Quem tem mais voz também devia tentar fazer um pouco essa pedagogia da importância destas garantias. Obviamente que perdemos imenso tempo com futebol, que é uma coisa absurda, mas acho que claramente a nossa sociedade preocupa-se com muita coisa com que se devia preocupar menos. Mas também acho que, muitas vezes, esta maneira de dizer “ah, não, nós andamos é preocupados com casos e casinhos, mas as pessoas querem é saber se a economia está a crescer” também é muitas vezes usado pelos responsáveis políticos para sacudir a água do capote. E às vezes esses casos e casinhos configuram violações importantes do estado de direito ou do dever de integridade na condução da coisa pública e aí não acho que seja um caso ou um casinho. Aliás, acho que pode sê-lo, mas reflete uma forma de funcionamento que é uma verdadeira perversão do sistema democrático, portanto temos que ir atrás deles, não é? Eles têm que nos explicar.

Claro, existe a necessidade de escrutínio. Outra coisa sobre a qual comentaste há algum tempo foi sobre a falta de pensamento a longo prazo que existe na política em Portugal, ou por parte das pessoas que ocupam os lugares de decisão. Também é um problema crónico da nossa sociedade?

É um problema gravíssimo deste país. Aliás, é um problema que a democracia não consegue resolver — porque, no fundo, como os representantes políticos têm sempre um tempo de vida curto, a democracia não é um sistema bom a projetar o longo prazo e a dar representação às pessoas que ainda não nasceram. Dá uma representação muito limitada aos jovens, por isso é que aquela proposta do PSD, do Livre, do PAN, para dar o direito de voto aos 16 anos, é super importante. São só dois anos, mas é uma maneira de tratar um bocadinho melhor os jovens no futuro. Acho que Portugal vive particularmente mal com isso. Quando comparo com outros países, acho que há muitas dimensões críticas da nossa forma de viver, da nossa sociedade e economia, que de alguma forma o nosso sistema político não consegue abarcar. Esta coisa das alterações climáticas da água, um país que vai ter problemas com água a vários níveis, com a seca de um lado e a subida do nível das águas do outro… Os especialistas dizem que estamos permanentemente a viver no curto prazo, que os planos estratégicos deveriam estar desenhados há não sei quantos anos e não estão, ou então estão desenhados e não são respeitados… A gestão da floresta também é uma coisa louca, num país que está no mapa vermelho dos incêndios, da Agência Europeia do Ambiente. Depois também temos um problema demográfico, da pirâmide etária. E a questão da infraestrutura dos transportes: não apanhámos o comboio dos comboios. E a infraestrutura digital, há imensos sítios do país que ainda não têm cobertura de Internet. Como é que isto é possível?

“Todas as sociedades têm mecanismos de decisões públicas ou coletivas que são tomadas de uma minoria para a maioria. E isso pode ser mais ou menos perverso, nas ditaduras é o cúmulo da perversidade.”

E vai-se falando destes problemas, mas…

Nunca ninguém pega neles a sério. E as democracias têm de corrigir estes vieses. Têm de se proteger as minorias, não podem ser as maiorias a mandar nas minorias. Há muitos limites à representatividade democrática que permitem, no fundo, dar alguns mínimos de representatividade a grupos ou a territórios que não existiriam de outra forma. 

Poderia haver uma quota para jovens no parlamento? Para que os jovens estejam melhor representados nos lugares de decisão?

Bem, não é só no parlamento, é em todos os lugares de decisão. No governo, no Conselho de Estado, onde são só homens brancos de idade… Há pessoas que estão lá por inerência, mas há outras que estão a convite. E aí poderia contrariar-se a vantagem dada às outras pessoas que estão lá por inerência e que chegam lá no final da vida, como os ex-presidentes. E longe de mim questionar o facto de se ouvir essas pessoas no Conselho de Estado. Mas, lá está, há outras que são por convite. Nunca pensei especificamente em relação às quotas dos jovens, mas, genericamente, acho que as quotas são uma excelente política. E há muita investigação que mostra que elas são benéficas a vários níveis. Obviamente eu não gostava de ter uma sociedade partida em gavetas… Tem de haver um limite para que é que são as quotas. Agora, sou a favor, obviamente, das quotas por género, e para minorias étnicas também. Portanto, por que não também para os jovens? Acho que os jovens em Portugal são super mal tratados. E, mais uma vez, isso viu-se durante a pandemia. A forma como este país maltratou os jovens, os espezinhou… A maneira como fechou todos os locais de diversão…

Susana Peralta / Fotografia de Rui André Soares – CCA

É um reflexo da nossa sociedade envelhecida?

Acho que sim. Há qualquer coisa neste país que faz com que os jovens não sejam a prioridade. Parece-me evidente. As decisões são tomadas em função dos interesses das pessoas mais envelhecidas. Basta ver a escola pública. Tudo se resolve com mais dinheiro, é uma questão de prioridades. Na escola pública nem tudo é um problema de dinheiro, porque há um problema de falta de professores, tens de os formar e isso leva o seu tempo até se concretizar, até as pessoas estarem prontas para entrar no ensino. Mas se melhorasses as condições de trabalho, não só mas também salariais, haveria mais pessoas a entrar e resolvias o problema a prazo. E porque é que o dinheiro não vai para aí? Isso seria uma mega prioridade. E o dinheiro surge para outras coisas quando é preciso. Para a TAP e para outras coisas. É um bocado estranho. Portanto, acho que a nossa democracia é má a incorporar os interesses das camadas mais jovens, isso parece-me evidente. Tendo quotas para jovens poderia ser uma boa maneira. E também seria importante dar mais voz aos jovens. Mas este enviesamento não existe só no sistema político, é em todos os lugares de poder, incluindo mediáticos. Os jovens acabam por falar pouco, infelizmente.

E isso também se nota na altura das eleições, quando se vê os temas que são discutidos nos debates. E mesmo os idosos.

Não, é terrível. No caso dos idosos, os cuidados são um problema enorme. É outro caso em que preferimos não olhar para esse problema, claramente. Desse ponto de vista, a falta de planeamento a longo prazo que temos para criar, no fundo, uma economia que permita cuidar das pessoas que estão dependentes, isso é outra das dimensões em que somos muito maus a olhar a longo prazo.

“Não somos nada os melhores do mundo. Somos os melhores do mundo em quê? Este presidente já pediu desculpas pelo comércio de escravos, também é importante reconhecer, mas fizemos isso, tivemos uma guerra colonial extemporânea, não sei quantos anos depois dos outros países todos… O que é isto? Somos muito maus com isso. Construímos um condomínio de luxo na sede da PIDE… Há uma vontade de varrer todos os esqueletos para debaixo do tapete.”

Há um mês, foi inaugurado o memorial de homenagem às vítimas do incêndio de Pedrógão Grande de 2017. Nessa altura, foi noticiado que o Presidente da República não estaria presente, embora depois acabasse por ir à cerimónia de inauguração com o primeiro-ministro. Face a isso, acabaste por criticar a forma como em Portugal se lida com a memória, mesmo de coisas muito recentes. Também é um sintoma grave do nosso sistema político?

Acho que Portugal é um país emocionalmente infantil [risos]. Nós temos muita dificuldade em lidar… em fazer processos, no fundo. Talvez, para isso, se devesse entrevistar um psicólogo, mas a minha ideia é que vivemos numa espécie de presente permanente e temos muitas dificuldades em ir buscar coisas negras do nosso passado. A escravatura, a guerra colonial, a pobreza em que se vivia em Portugal… É um problema de muitos países, é um bocado do ser humano, mas apesar de tudo há países que fazem esse trabalho de memória e de uma maneira mais sistemática. É um trabalho super doloroso, é como quando vamos escarafunchar nas memórias dolorosas do nosso passado, coletivamente é um bocado semelhante. E tens que ter processos e vontade para isto. Desse ponto de vista, acho que somos um desastre. Ainda agora tiveste o Presidente da República, já não sei em que país, a dizer que os portugueses são o melhor povo do mundo… Esta coisa do ‘nós somos ótimos’, queremos viver muito disto. É tristíssimo dizer isso, não é verdade. Não somos nada os melhores do mundo. Somos os melhores do mundo em quê? Este presidente já pediu desculpas pelo comércio de escravos, também é importante reconhecer, mas fizemos isso, tivemos uma guerra colonial extemporânea, não sei quantos anos depois dos outros países todos… O que é isto? Somos muito maus com isso. Construímos um condomínio de luxo na sede da PIDE… Há uma vontade de varrer todos os esqueletos para debaixo do tapete. E os esqueletos quando estão debaixo do tapete transformam-se em monstros. E acho que Pedrógão foi exatamente isso. Foi um passado extremamente recente que não deveria ter acontecido, foi um falhanço monumental do estado no mais básico. No mínimo dos mínimos, o estado deve providenciar segurança aos cidadãos. E uma catástrofe daquela dimensão, com as pessoas a morrerem, uma falta de coordenação, pessoas que saíram de casas, que não arderam, para irem morrer na estrada… E, de facto, estamos nesta era dos unicórnios e queremos sempre deslumbrar-nos com estas coisas e não fazer esse processo com as partes mais negras do nosso passado. Acho que isso é o sintoma de uma sociedade profundamente infantil e, no fundo, quando não consegues fazer esse processo, não evoluis. Porque esse passado é como um peso que te puxa para baixo. Também escrevi há pouco tempo sobre os emigrantes, quando morreu a Linda de Suza e a minha tia. Acho que é exatamente a mesma coisa. Ou seja, os portugueses não se querem confrontar com esse passado da emigração, esta nossa sobranceria com que olhamos para a diáspora portuguesa, como criticamos a pronúncia e os hábitos, é porque, no fundo, essas pessoas remetem-nos para a história de Portugal nos anos 60, que era um país pobre, de crianças descalças, de falta de vacinação, de poliomielite… 

E é um passado recente.

Super recente, foram os nossos pais. E houve um crescimento, houve a Europa, houve isso tudo, que é maravilhoso… e agora temos os unicórnios e a Web Summit, um deslumbramento… Mas acho que não podes ser o que és sem reconheceres o teu passado, sem saberes “daqui é donde vimos”. Nós somos este povo que viveu isto, que fez isto, e não temos nenhuma capacidade para fazer esse trabalho de memória. A guerra colonial é uma vergonha nacional, não se fala disso. Como é que é possível? Foi na geração dos meus pais. O meu pai, por acaso, felizmente, não foi à guerra. Mas tenho amigos que os pais não estão bons da cabeça, todos nós conhecemos pessoas… E não se fala disso, como é que é possível? Acho que este país precisava de um mega processo analítico: precisávamos de pôr o país no divã.

Susana, também apresentaste recentemente o relatório do Portugal Balanço Social 2022, um trabalho feito com o Bruno P. Carvalho e o Miguel Fonseca, com o apoio da Fundação “La Caixa”. Obviamente, são documentos super importantes para percebermos o país que temos, a vários níveis. Houve conclusões que foram particularmente surpreendentes?

Neste momento, pudemos finalmente analisar os micro dados da pandemia. Ou seja, do que aconteceu em 2020, do ponto de vista dos apoios. E uma das coisas que não estávamos à espera que fosse tão enviesado é a prevalência dos apoios da pandemia, como ela chegou sobretudo… Não tenho aqui agora os números, mas quando vês a distribuição de apoios por quartil de rendimento — ou seja, os 25% mais baixos, os 25% seguintes, etc. — vês que os apoios não estão concentrados nas pessoas mais pobres… Mas, depois, quando vais ver quem é que perdeu mais rendimento, ou que perdeu mais emprego, foram, obviamente, os mais pobres. O desenho dos apoios da pandemia, muito baseado no lay-off simplificado, foi, na verdade, bastante enviesado socialmente. Porque o lay-off simplificado vai às pessoas que têm uma relação estável e formal com o mercado de trabalho. Não vai às outras, que são também as mais frágeis…

“Quando vais ver, por exemplo, os valores de confiança nas instituições entre as pessoas de maior e menor rendimento, também mostra que as pessoas de menor rendimento têm menor confiança nas instituições. E isso tem a ver com os problemas de representação.”

E que são muitas.

São muitas. Foi interessante ver isso em números e não estávamos à espera que fosse tão enviesado. E, depois, também fizemos uma análise para antecipar a crise do custo de vida, de vermos as taxas de esforço e assim. E havia a parte da segurança alimentar, que era super assustadora. A percentagem de pessoas em Portugal que sentiu fome e que não comeu por falta de dinheiro, e nas famílias com crianças e idosos… Há ali vários elementos que, mesmo para nós que estamos habituados a trabalhar com os dados, de repente vês aquilo e pensas: há muitas bolsas de fragilidade económica no nosso país. No nosso e nos outros, mas pronto, nós estamos mais preocupados é com o nosso.

E por isso é que também é importante fazer este tipo de trabalho, de analisar com dados, chegar a conclusões, antecipar o futuro ou resolver eventuais problemas que muitas vezes são crónicos.

Sim, ajuda-te a identificar, a pôr números no debate. Porque às vezes o debate tem falta de números… E nós tentamos trazê-los através destes micro dados, com os inquéritos. Quando vais ver, por exemplo, os valores de confiança nas instituições entre as pessoas de maior e menor rendimento, também mostra que as pessoas de menor rendimento têm menor confiança nas instituições. E isso tem a ver com os problemas de representação sobre os quais já falámos.

Susana Peralta / Fotografia de Rui André Soares – CCA

E muitas vezes esses problemas alimentam-se uns aos outros, não é? Uma pessoa sem confiança na classe política terá uma menor participação política e cívica.

Claro, e fica ainda menos representativo para essas pessoas. 

Num pequeno exercício de futurologia, estamos a caminhar, em termos económicos e, obviamente, está tudo relacionado para chegarmos ao patamar que tínhamos pré-pandemia, com a grande retoma do turismo? Ou há diferenças muito grandes, tendo em conta este período de intervalo que houve?

A economia já ultrapassou o período pré-pandemia. A nossa economia teve uma taxa de crescimento…

Mas as pessoas, em geral, podem não estar a sentir esse crescimento. 

Nós tivemos uma taxa de crescimento estrondosa em 2021/2022, que no fundo era o rebound de 2020. Mas agora continuamos a crescer a taxas maiores às da pré-pandemia e a verdade é que já ultrapassámos esse período. A nossa economia está melhor. O que não quer dizer que não haja grupos da população que não estejam a sofrer bastante. Nomeadamente, com a crise da inflação, que também é muito enviesada socialmente. Há um ano tínhamos feito uma análise dos orçamentos das famílias, e mostrávamos isso mesmo. No fundo, qual é o peso da alimentação, por exemplo? E há pessoas que gastam mais de 30% do seu rendimento na alimentação e, depois, nos meios ricos vai até menos de 5% ou 6%. E como a alimentação foi uma das categorias que teve um maior aumento de preços, isso também mostra que, no fundo, a taxa de inflação que enfrentas… Na verdade não há uma taxa de inflação, há 10 milhões de taxas de inflação no país. Cada pessoa tem uma taxa de inflação consoante a composição daquilo que compra, do seu cabaz de bens e serviços. 

“A nossa economia está melhor. O que não quer dizer que não haja grupos da população que não estejam a sofrer bastante. Nomeadamente, com a crise da inflação, que também é muito enviesada socialmente.”

E da sua situação em relação à habitação, por exemplo.

Agora, a nossa economia claramente está a crescer porque o turismo está outra vez nos píncaros, provavelmente já estamos com o nível de dormidas pré-pandemia, no primeiro trimestre do ano já estávamos quase, quase lá. Agora, e o Fernando Alexandre tem escrito sobre isso no Observador, há uma dinâmica na nossa economia, que se tornou mais exportadora do que alguma vez foi. Temos as exportações a pesar mais de 50% do PIB e não são só as exportações do turismo que estão a crescer. Há exportações de bens que também estão a crescer. Portanto, é possível que esteja a acontecer alguma coisa, que a nossa economia tenha mudado alguma coisa, que possa ser o efeito culminado das crises, que levou as empresas a quererem apostar em mercados exteriores… Também há efeitos de empresas que morrem, que não conseguem resistir às crises, e isso não é mau. Ou seja, nós não podemos mudar uma economia sem deixar cair empresas. Desse ponto de vista sou bastante liberal. E é possível que estejamos aqui noutro ciclo, mas a verdade é que não sabemos. Neste momento, do ponto de vista macro, parece que está a correr bem. Agora, a Alemanha, que é o grande motor da União Europeia, já está em recessão. A China esteve realmente bastante parada mas agora está a voltar, largaram a maluqueira da Covid.

E a guerra deverá continuar.

A guerra vai continuar e tem impacto na nossa economia. Não sei, é muito difícil. Para já, os economistas são péssimos a fazer previsões. E eu sou, certamente, pior ainda do que a maior parte dos economistas. Os economistas são mesmo maus, há uma estatística da Esther Duflo, uma economista prémio Nobel, em que mostra que a média da margem de erro dos economistas — recolhendo dados de todo o mundo — é superior a se nós pusermos um gerador aleatório de taxas de crescimento com alguns limites razoáveis. Por isso, os economistas são mesmo maus a fazer previsões e então num momento destes na economia, com a incerteza, com uma guerra, o pós-pandemia, a inflação… Até ver, está a correr melhor do que esperávamos. Isso parece-me evidente. Todas as instituições, nacionais e internacionais, reviram em alta as previsões para Portugal. E isso é incrível e não era suposto. Eu andava sempre a dizer que estávamos a ter o rebound da pandemia e que íamos ver o que aí vinha. E o que veio é melhor do que estávamos à espera. Agora, se podemos, daqui, esperar que os próximos trimestres sejam semelhantes ou se vem aí alguma má notícia, não sei… Não consigo prever. A crise inflacionista chegou a Portugal num momento em que a economia está a crescer, e isso é bom. Apesar de tudo, há um aumento de rendimento na economia que permite, de alguma forma, amortizar o impacto do aumento do custo de vida. Agora, claro que estas coisas são sempre muito mal distribuídas. Mas se compararmos isto com a crise das dívidas soberanas, em 2012, em que o nosso desemprego chegou aos 17%… O nosso mercado de trabalho está ótimo, dentro daquilo que normalmente ele é. 

Certo, não existe de momento uma elevada taxa de desemprego.

Nada, nem um aumento de contratos temporários. Pelo contrário, eles diminuíram desde a pandemia… Portanto, há coisas que realmente são boas. 

“Neste momento estamos claramente numa era de desglobalização… Há uma lógica de blocos muito mais forte do que há 10 anos.”

Obviamente, hoje — olhando paraum passado recente, para as últimas décadas temos uma economia globalizada e os fatores e as dinâmicas são muito complexos, daí também ser tão difícil fazer previsões. Mas é estimulante para uma economista viver este momento, em comparação com a época em que os países viviam mais fechados sobre si mesmos?

Pois, não sei. Eu era uma criança quando Portugal aderiu à CEE. Ou seja, tornei-me economista e adulta numa era de globalização e integração dos mercados. Não sei como é que era antes, para mim é muito difícil. Embora ache que neste momento estamos claramente numa era de desglobalização… Há uma lógica de blocos muito mais forte do que há 10 anos. Acho que esta época é super interessante. Temos imensos desafios para resolver, como o climático. O desafio geopolítico é imenso e para esse tenho muito poucas contribuições a dar. Temos a construção europeia, que é assim a grande agenda, é aquilo que eu gostaria de deixar aos meus filhos: uma Europa mais federalista e unificada, com maior partilha entre ricos e pobres na União Europeia. Não sei se o vou ver, mas gostava que os meus filhos tivessem isso. Mas acho que é uma época super estimulante para um economista. Agora, se é melhor… Houve economistas que viveram o pós-guerra mundial ou assistiram ao nascimento da moeda única. Eu lembro-me de ela surgir, mas os debates… Recordo-me deles com bastante nevoeiro. Houve economistas que assistiram ao nascimento da União Europeia, isso também deve ter sido super interessante. De todas as maneiras, eu não poderia ser outra coisa que não fosse ser economista. O que sei é aquilo tudo que me frustra: gostaria de ter uma União Europeia mais federalizada; uma maior coordenação de impostos a nível europeu e, provavelmente, da OCDE; gostava de ver um registo centralizado de ativos para não termos a escandaleira das offshore; gostava de ver mais impostos sobre a riqueza. Há imensa coisa com que me sinto super frustrada por não ter, isso consigo imaginar. Houve uma altura em que criaram impostos sobre o rendimento, se calhar gostaria de ter vivido esse momento. Ou a criação dos estados de bem-estar modernos, nos anos 60, a guerra à pobreza do presidente [Lyndon B.] Johnson. Devem ter sentido que estavam a fazer algo completamente novo.

Susana Peralta / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Estávamos a comentar há pouco a retoma do turismo, e basta dar aqui um passeio pelas ruas de Lisboa para verificar que voltou em força. Recentemente houve uma série de notícias sobre os nómadas digitais estarem a abandonar, de alguma forma, Portugal ou Lisboa, especificamente, porque afinal os preços são mais caros do que achavam, as pessoas não são assim tão simpáticas ou existe demasiada burocracia. Isto é o mercado a funcionar?

Sim, sei lá… Acho, sinceramente, quando uma pessoa vai viver para outro país — e já vivi em três países além de Portugal —, há sempre coisas boas e más, coisas de que uma pessoa gosta mais e outras de que gosta menos.

Expetativas correspondidas e frustradas.

Exatamente. E isso é normal. E a decisão de emigrar ou de ir viver temporariamente para outro sítio é o resultado de pesar prós e contras, e há sempre dos dois. Não dou assim grande importância a isso. Estou mais preocupada com as ONG que se dedicam aos imigrantes que vivem amontoados em armazéns ou em rés-do-chão sem ar. Tenho imenso respeito pelas preocupações dos nómadas digitais, mas não estou muito disponível para dar muito da minha atenção às lutas deles — e acho bem que eles tentem defender os seus interesses, como é óbvio, têm todo o direito e são certamente muito bem-vindos em Portugal. Tenho alguma dificuldade com o facto de oferecermos vantagens fiscais aos imigrantes de maior rendimento quando destratamos os de menor rendimento, isso eu acho mesmo mal. Já para nem falar dos vistos gold, que é uma porta de entrada a dinheiro sujo, corrupto, de sangue, de países com instituições fracas. 

“Gostaria de deixar aos meus filhos uma Europa mais federalista, unificada e com maior partilha entre ricos e pobres.”

E trata-se de uma política profunda e assumidamente desigual.

Exato, e isso acho horrível. Acho que toda a gente é bem-vinda, os nómadas digitais são bem-vindos, acho mal quando lhes damos vantagens fiscais, sem nenhuma base empírica para mostrar que de facto trazem coisas assim tão boas para o país ao ponto de lhes querermos oferecer vantagens, sobretudo nesta discriminação relativamente aos imigrantes menos privilegiados. Agora, mesmo para nós que cá vivemos, Portugal tem coisas boas e coisas menos boas. E é verdade que temos falta de infraestrutura, uma rede de transportes decrépita para uma capital europeia do século XXI, temos imensos carros na rua e não devíamos, o estacionamento é caótico… Compreendo que essas pessoas se sintam defraudadas. Aliás, eu, que vivo no centro da cidade, partilho muitas dessas críticas. Acho que eles têm todo o direito de se queixar, acho que o país não vai acabar por causa disso, não tenho nada a certeza de que isso seja muito representativo da maior parte das pessoas que cá vive nessas condições. Porque, enfim, as pessoas que mais se expressam são as mais descontentes. Da mesma maneira como vieram, podem ir embora sem qualquer espécie de acrimónia ou ressentimento. E, quando quiserem voltar, serei a primeira a dar as boas-vindas. Mas custa-me um bocado que se dê tanta importância às queixas dessas pessoas quando, por exemplo, há umas semanas encontraram-se aquelas pessoas a viver num armazém no Samouco — atenção, houve uma onda de indignação e certamente que houve uma intervenção pronta das autoridades — mas essas pessoas não têm páginas no Instagram e têm queixas muito maiores. Prefiro canalizar a minha energia para esses. Mas é importante dizer isto porque às vezes no Twitter vêm dizer que só quero imigrantes pobres. Não: quero imigrantes pobres, remediados, ricos… Eu sou casada com um estrangeiro! Toda a gente é super bem-vinda, com direitos e obrigações iguais, e aí acho que falhamos imenso. 

E, como estavas a dizer que vives no centro de Lisboa, na zona de Alfama, há cerca de 15 anos, certamente assististe a uma transformação grande dessa parte da cidade e de outras zonas do centro histórico. Certamente houve coisas que melhoraram, outras que pioraram, como é que olhas para a evolução?

É positivo, está muito mais agradável. Quando me mudei, vivia em frente do rio mas não tinha acesso a ele. Agora tenho um passeio enorme à beira-rio, posso ir lá sentar-me a ler um livro, está muito mais agradável. 

A cidade preocupou-se em proporcionar essa ligação ao rio nos últimos anos.

Claro, muito mais. Mas isso também é resultado desta dinamização e da gentrificação dos bairros históricos. Aliás, eu sou uma agente dessa gentrificação. Seria muito hipócrita da minha parte queixar-me da gentrificação quando eu, obviamente, sou uma gentrificadora de Alfama e não o contrário, não é? Não faço parte da população típica de Alfama, mudei-me para lá já neste século e já numa lógica de substituição da população tradicional que lá estava. Sobre o turismo, eu não sei se temos turismo a mais ou a menos. 

Obviamente, é um setor económico super importante para Portugal. Mas é sobrevalorizado?

Acho que é um setor que gera emprego de má qualidade, e isso viu-se durante a pandemia, porque foi um dos setores que mais perderam com a pandemia. E há uma prevalência de salários mais baixos do que a média nacional, uma taxa acima da média de mão de obra imigrante no setor do alojamento e restauração, que obviamente está sempre mais fragilizada perante o estado social por razões várias, uma prevalência de contratos temporários… Pelo menos antes da pandemia, geravam postos de trabalho de menor qualidade. E isso é um problema. Acho que Portugal não pode ser apenas um país exportador de serviços ou de turismo, até porque isso são setores muito arriscados, como se viu com a pandemia. Ou seja, a primeira coisa que acaba quando há uma crise é o transporte de pessoas — quando há um problema climático, uma catástrofe natural, um ato terrorista… A primeira coisa que acontece é as pessoas deixarem de se mover. Os bens tu continuas a transportar. 

“Gostaria de ter uma União Europeia mais federalizada; uma maior coordenação de impostos a nível europeu e, provavelmente, da OCDE; gostava de ver um registo centralizado de ativos para não termos a escandaleira das offshore; gostava de ver mais impostos sobre a riqueza.”

E haver toda uma economia sustentada nisso é arriscado.

Por isso é que deveríamos, obviamente, diversificar a economia. E aparentemente é o que está a acontecer, segundo o Fernando Alexandre. Eu não sei se há turismo a mais ou não no centro de Lisboa, o que eu acho é que houve um investimento em infraestrutura barata — lá está, renovar os espaços públicos, e a gestão Costa-Medina nisso é inegável, não tínhamos parques em Lisboa e hoje em dia temos vários espaços super agradáveis ao ar livre — mas isso é infraestrutura barata. A infraestrutura cara, que é esventrar a cidade para construir uma rede de metro a sério, isso não temos. Estamos super atrasados e isso é um problema. Esta coisa de muito ou pouco turismo, sinceramente não sei nem gosto muito desse discurso. Gosto imenso de viajar, também tenho uma família estrangeira que vem cá, não gosto desta diabolização do turismo e acho até borderline xenófobo. Agora, não podemos é querer ter uma cidade muito virada para o turismo e não investirmos na infraestrutura necessária, desde logo transportes mas também de fiscalização e do próprio espaço público em termos de utilização para os residentes poderem estacionar os seus carros, etc… Tem de haver fiscalização do uso do espaço público de acordo com a lei. E aí acho que estamos a falhar muito, mesmo. E isso é mau, porque gera a tal acrimónia que, a vários níveis, não é positiva. 

E outro setor que naturalmente queríamos abordar nesta entrevista é o da cultura. Além de todo o valor imaterial que tem, também é um setor económico e que movimenta muito dinheiro e muitas pessoas, de várias áreas. Tendo em conta isto, é um setor bem tratado pelo nosso estado, valorizado o suficiente até em termos económicos?

Não tenho muito conhecimento sobre o setor para falar, mas, ao ler as pessoas que percebem do assunto, julgo que há um problema de subfinanciamento da cultura em Portugal. No fundo, acho que é muito semelhante ao da ciência — sendo que, apesar de tudo, acho que a ciência é generosamente mais financiada do que a cultura. E há uma falta de estabilidade no quadro institucional: a pessoa nunca sabe em que momentos é que abrem os concursos, se as regras são ou não semelhantes de um ano para outro, se calhar há uma certa tendência para financiar um certo favorecimento de incumbentes, digamos assim… Acho que isso é mau. E Portugal tem um problema grande na cultura, que é um problema que também tem nos meios de comunicação social, que é tu seres um país pequeno, pouco educado — ainda temos a população adulta menos educada da União Europeia —, que faz com que o mercado cultural seja muito pequenino. Para o mercado ser substancial, tens de ter educação e dinheiro. Que é uma coisa que falta em Portugal. E tens muita dificuldade em exportar produtos culturais. Porque há o problema da língua — podes fazer coisas em inglês, mas isso também tem as suas limitações, porque uma pessoa nunca é tão poética como na sua língua, existe uma ligação emocional à tua língua. 

E o autor pode não ter qualquer interesse em alterar o seu trabalho para tentar a exportação.

Nem é claro que consiga. E não é falta de competência. É que as subtilezas da língua tu percebes na tua, não percebes nas outras, só se falares mesmo bem as outras. Não quer dizer que não haja pessoas a ter sucesso a cantar em inglês…

E português, também.

Não digo que não haja exceções. Mas não podes exigir a um criador que crie noutro idioma. Depois há artes que não passam pela língua e, se calhar, à nossa escala, aí até temos criadores com bastante sucesso. Mas para exportar é difícil. No mercado de língua portuguesa, tens um gigante que domina…

Culturalmente focado em si próprio.

Sim, como é que vais chegar a esse mercado do Brasil? E os outros mercados são ainda mais pobres, ainda menos educados, e sobretudo têm censura de estado — a não ser Cabo Verde, que é a única democracia decente da África lusófona. As grandes indústrias culturais do mundo sobrevivem muito à custa de escala, não é? A indústria cultural tem um enorme custo fixo e rentabiliza-se vendendo muitas peças — seja do livro, da peça de teatro, da obra cinematográfica, seja do que for… Ela rentabiliza-se pela escala. E nós temos um problema de escala e não sei muito bem como é que o podemos resolver. Desse ponto de vista, sinto que se o estado tivesse um papel mais generoso, com regras mais claras de transparência e escrutínio nos concursos, seria bom. Parece-me que este ministro da cultura — não sendo eu especialista — está a fazer coisas. Se são boas ou não, vou abster-me de comentar, mas pelo menos está a fazer coisas. Se calhar, até paradoxalmente, sendo alguém que vem um bocado de fora, até pode ser bom. Como a questão de os museus terem autonomia para terem receitas próprias… Como é que isso não existia? Por exemplo, vais a um museu em Londres, entras ou sais e tens máquinas automáticas onde podes doar dinheiro… Só tens de pôr o cartão e dás o que pudeste ou quiseste ou nada… E lembro-me de, uma vez aqui em Portugal, ir visitar uma coisa num parque natural, e nem se pagou a visita. Tudo bem. Mas no fim perguntei: como é que podemos fazer uma doação ao parque, uma vez que não pagámos para esta visita? Éramos umas 15 pessoas, se cada um de nós desse uns 10 euros era uma doação que fazíamos. E eles disseram que não podiam receber, que não tinham enquadramento legal para isso. Isto não lembra a ninguém. E o Pedro Adão e Silva querer criar esta possibilidade para os museus é bom… Acho que há algumas coisas que nem precisas de muito dinheiro para mudar e que melhoravam as coisas. Mas é um pouco como na ciência. Tens ideias boas e más, à partida não sabes qual é que é qual. E quando vais financiar, sabes sempre que vais estar a deixar ideias que, potencialmente, até poderiam vir a ser boas — e deixar entrar ideias que, mesmo que possam aparentemente ser boas, depois serão uma merda. Isso vai sempre acontecer. O que acho é que, quanto mais generoso for o financiamento, maior a probabilidade de não deixares de fora ideias… Quando tens um financiamento muito pequenino, estás só a apanhar a nata da nata, de certeza absoluta que estás a deixar ideias que tinham um elevado potencial. A única maneira de não deixares de fora ideias ou pessoas extraordinárias é financiares generosamente. Há dois tipos de erros: financiar ideias que afinal eram más, e não financiar ideias que afinal eram boas. Acho que o que deves querer é minimizar este segundo erro, e para isso precisas de dar muito dinheiro, e esse muito dinheiro não existe. É como na ciência, e aí temos um problema, sim.

Também falta interesse das entidades privadas para agirem como mecenas, como financiadores em parceria ou não com o estado? Em Portugal não existe muito essa cultura.

Quando comparo com outros países, claramente. Na minha visão de observadora pouco especializada no tema, claramente isso vê-se. Mas, lá está, mesmo eu, quando vou visitar um parque natural, quero dar alguma coisa e não posso… Imagino que o quadro institucional e legal para permitir esse tipo de coisa tem de ser facilitado a vários níveis. E também poderá ter a ver com um certo conservadorismo do país, as pessoas não se quererem associar a produtos que talvez possam ser menos consensuais… Não sei.

E também poderá ter a ver com escala. Por exemplo, em França, para um filme ser financiado pelo estado, uma fatia do orçamento tem de vir de fundos privados.

Sim, e quando não consegues garantir que a tua obra chega a um determinado número de pessoas, isso também diminui o instinto do privado para patrocinar, como é óbvio. E isso também é um problema. Acho que é um problema de pequeno país periférico, não muito educado nem rico, e que de facto não tem uma língua extremamente exportável… Na verdade, o português é super falado, mas sobretudo porque existe o Brasil, e eles é que são os incumbentes desta coisa. Eles é que exportam. E é muito difícil tu, que és o underdog, entrares nisto. Muitas vezes, e isto também é uma questão de escala, o facto de nos nossos projetos artísticos haver pessoas que acumulem muitas funções também faz com que não haja uma pessoa ou uma equipa apenas focada em angariar financiamento privado, que é uma especialização e é algo que leva muito tempo… As pessoas que contactam potenciais financiadores, que preparam os dossiers de apresentação.

Só para terminar, e mudando de assunto, queríamos abordar o caso de Boaventura Santos. Devia-se discutir muito mais este tipo de casos de assédio? É um problema sistémico da academia?

Acho que isso até tem a ver um pouco com aquilo de que falávamos há bocado de pôr o país no divã. Porque foi o que foi com os abusos sexuais na Igreja. Não havia, não havia. 

“Eu não quero um povo extraordinário. Quero um país com instituições fortes, que garantam que quem é extraordinário possa fazer a sua vida, mas que nos proteja dos que não são.”

Embora agora esteja a ser bastante discutido.
Sim, lá está, graças ao facto de haver dois psiquiatras na equipa — um dos quais a liderar. Daí dizer que o país precisa de um divã [risos]. E foi possível entrar nesse trabalho de memória, que é duro mas também um trabalho libertador… Seja como for, acho que o problema dos assédios sexuais e morais na academia e noutras instituições é exatamente o mesmo. Lá está, como somos o tal país que queremos acreditar no sermos uma exceção — a tal coisa do presidente dizermos que somos o melhor povo do mundo e não sei quê… Disparate completo. Não existe essa coisa de melhores povos do mundo. A maior parte de nós, em princípio, é boa pessoa. Há pessoas mal intencionadas e pessoas bem intencionadas. Mas mesmo dentro das pessoas bem intencionadas, se os mecanismos e o desenho institucional não estiver suficientemente poderoso, nada te garante que, num momento de tentação, não vás fazer coisas que são contra os interesses de terceiros. Eu não quero um povo extraordinário. Quero um país com instituições fortes, que garantam que quem é extraordinário possa fazer a sua vida, mas que nos proteja dos que não são. Tem muito a ver com esta infantilidade, de estares a confiar na boa venturança das pessoas. E o problema do assédio na academia é exatamente esse: não há mecanismos.

E é muito provocado pela questão da hierarquia, tal como na Igreja?

É, claro. Em todo o lado onde há relações de poder há tendência para abusar do poder. Nas grandes empresas é igual. Se fores ver uma multinacional nos Países Baixos ou nos países nórdicos, terá uma política para lidar com a questão do assédio. Haverá uma carta de princípios, será dada formação às pessoas, e os mecanismos de reporte e de seguimento a dar. Mesmo aí não protege, mas pelo menos existe um trabalho institucional, de chafurdar nas partes mais negras da organização ou dos seres humanos, e permitir minimamente criar algumas garantias, sendo que nunca vai ser perfeito e o mundo não é perfeito, somos humanos. E eu também não quero um mundo perfeito… Há um limite para teres uma espécie de distopia, de observares as pessoas e de lhe dares pontos, como no regime chinês… Prefiro correr o risco de ser violada.

Mais valem os perigos da liberdade.

Completamente. Agora, dentro das instituições temos que ter algumas garantias a dar às potenciais vítimas, porque isso também dá sinais aos potenciais abusadores de que isso não é aceitável e é preciso informar as pessoas, porque por vezes pisam o risco sem saberem que o estão a pisar. Não parece ser o caso de Boaventura Sousa Santos. Apesar de tudo, o que ele veio dizer… Nem vou falar daquele mea culpa dele, foi uma coisa totalmente disparatada. Como disse a Fernanda Câncio, é mea culpa sem culpa. É provável que a academia tenha mecanismos mais perversos do que, por exemplo, as empresas, porque, de facto, há um grande poder hierárquico. Porque tens provas, diplomas, um grande grau de subjetividade… Mas há práticas para lidar com isso e Portugal não lida com isso. A própria ministra é uma desilusão, porque, sendo uma mulher académica, poderia ter tido uma atitude muito mais contundente, e depois veio dizer que não tinham chegado queixas ao ministério… Como é que hão-de chegar queixas ao ministério se não há mecanismos? As pessoas não se vão queixar de uma coisa dessas assim… Isso tem de ser com muitas garantias, tem que haver uma coisa extremamente bem tipificada, e não há nada disso em Portugal. Hoje em dia já se fala destes casos — houve o problema na Faculdade de Direito, o problema dos assédios morais e da saúde mental dos alunos no Técnico — mas as hierarquias lidam pessimamente com isso. Aliás, a Faculdade de Direito o que fez foi mover um processo disciplinar ao Miguel Lemos, o professor que promoveu a montagem do canal de denúncias. No Técnico também me parece que as hierarquias negaram completamente. Na minha universidade, há uma iniciativa para a promoção da igualdade de género, de um grupo de pessoas bastante motivado, do qual faço parte, mas que, na verdade, ainda não trouxe frutos — porque ainda não temos os tais mecanismos de reporte. Acho que o caminho se está a fazer, mas está-se a fazer muito mais devagar do que deveria.

“Em todo o lado onde há relações de poder há tendência para abusar do poder.”

Mas é uma questão de tempo?

Não sei… Mas isto é urgente, já deveria estar… Se a lentidão for mesmo muito lenta, só acaba no infinito, não é? Sempre que optamos por não agir rapidamente, não só em punir estes comportamentos transgressores, como depois ao criar os mecanismos para os minimizar no futuro, estamos a escolher um lado enquanto sociedade. E não é o lado das vítimas. A nossa academia, desse ponto de vista, está podre. Não fazer nada ou fazer muito devagar é escolher um lado. Que não é o lado que eu escolho.

Eventualmente, num futuro a curto, médio ou longo prazo, aceitarias envolver-te na política de forma direta? Ou ocupar um cargo público?

Não, não, tenho isso bastante claro. Bem, uma pessoa pode mudar de ideias. Mas não me vejo mesmo a fazer outra coisa do que aquilo que faço. Não me consigo imaginar. 

Nem ministra da Economia?

Não, jamais. Que horror, coitados. Tenho imenso respeito por aquelas pessoas, por fazerem aquele trabalho, porque é um trabalho horrível. Não, não, não. 

É uma questão mais pessoal ou profissional?

Acho que são as duas. É uma questão pessoal — valorizo imenso a liberdade que tenho para a gestão do meu tempo, de também ter tempo para a família; e, num desses cargos, as pessoas obviamente têm muito menos liberdade para gerir o seu tempo e acho que eu seria muito infeliz. A segunda coisa é que, apesar de tudo, isso é uma restrição da tua liberdade de dizeres o que pensas, que não estou nada disposta [a perder]… E a terceira é que gosto imenso do meu trabalho. Por que é que haveria de abandonar as aulas, a investigação, esta coisa maravilhosa de ter colegas jovens que gostam de trabalhar comigo e que me obrigam a produzir coisas mais ou menos interessantes? Não tenho mesmo interesse nenhum. Posso mudar de ideias, mas acho mesmo muito improvável, conhecendo-me e a minha maneira de viver, a maneira como gosto de ser dona do meu tempo…

E também existe alguma aversão à política mais partidária?

Sim, isso também, nunca fui de nenhum partido e não percebo bem… Mas também tem muito a ver com esta coisa de perderes um bocado a tua liberdade de dizeres o que pensas. Se calhar faz sentido, mas não é para mim. Acho que os partidos fazem imensa falta, tenho imenso respeito pela generalidade das pessoas que dão o corpo ao manifesto na causa pública.

Alguém tem de o dar.

E é um trabalho horrível. Eu detestaria, mesmo. Não estou mesmo nada disponível para isso.

“Os partidos fazem imensa falta, tenho imenso respeito pela generalidade das pessoas que dão o corpo ao manifesto na causa pública.”

Existe o argumento de que, na verdade, as funções políticas ao contrário do que, muitas vezes, os populismos defendem até são bastante mal pagas tendo em conta o tipo de funções, a responsabilidade, a exigência e o escrutínio de que são alvo. E por isso é que também não conseguem atrair muitas pessoas que trabalham no setor privado. Porque é que uma pessoa haverá de querer ser ministro ou secretário de estado se pode receber o quádruplo e talvez esteja a ser simpático numa empresa? É uma questão a resolver?

Acho que é um problema, sim. Mais uma vez, deveríamos ter um debate sobre isso. Mas que se prende um bocado com esse artigo que escrevi sobre o setor público. Não é apenas dos políticos, tem que ver com os quadros superiores no estado, que são objetivamente mal pagos… Temos pessoas, que acredito genuinamente serem a maioria, que vão para lá porque gostam daquilo e têm um genuíno apego à causa pública e também querem mudar o mundo, cada um à sua maneira e isso é super legítimo; e depois temos outros que, certamente, vão lá para tentar ganhar dinheiro de outras maneiras. Acredito que sejam uma minoria, mas podem fazer muito mal. Acho que deveríamos ter um debate. Os quadros superiores da nossa infraestrutura pública, seja ela técnica ou política, são mal pagos. Isso parece-me evidente, em comparação com o privado. Também temos muitas dificuldades em mexer nisso e parece que os incentivos políticos estão pouco alinhados. Precisamos de ter um setor público vivo, eficiente, com pessoas motivadas e claramente não estamos a caminhar nesse sentido, em vários domínios. Não é só na saúde e na educação, isso é um problema enorme. E nós só vamos conseguir isso tornando aquilo numa coisa mais desempoeirada — que não o é.

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