Entrevista. Tó Trips: “Não gostaria de voltar aos sítios onde já estive, prefiro ficar com a ideia do que vivi”
A história da música portuguesa dos últimos 30 anos tem vários nomes imprescindíveis e um deles é Tó Trips. O músico lisboeta fez parte de bandas tão importantes como Lulu Blind e Dead Combo, mas ao longo dos vários anos de carreira tem colaborado com diversos músicos de áreas distintas, demonstrando não só a sua versatilidade, mas também o seu enorme talento e paixão pela música. Nos últimos anos, além dos Dead Combo, Tó Trips tem tocado em projectos como Timespine, Guitarra Makaka, Club Makumba, entre outros.
Neste mês de Julho, encontrá-lo-emos a apresentar o seu novo álbum Surdina, lançado pela Revolve e banda sonora do filme de Rodrigo Areias com o mesmo nome, nos dias 9 (Porto), 10 (Guimarães), 15 (Lisboa) e 16 (Aveiro). Adicionalmente, o músico fará outros espectáculos a solo, estes nos dias 12 (Santo Tirso), 18 (Coimbra), 25 (Tondela) e 26 (Ponte de Lima).
Numa pequena viagem no tempo, conversámos com Tó Trips sobre os tempos da tropa com o Camané, a sua viagem de sonho, o seu percurso enquanto músico e a sua paixão por Portugal.
O que é que mudou na Covilhã desde o teu tempo de infância até agora?
A família da parte da minha mãe era da Covilhã e ainda tenho lá tios e primos, portanto vou mantendo contacto com eles. Os meus avós eram os chamados rendeiros, ou seja, tinham uma casa que pertencia a uma fábrica e eles basicamente eram os rendeiros dos terrenos da fábrica. Quando construíram aquela fábrica de lanifícios, compraram uma grande propriedade e, como não sabiam o que é que haviam de fazer com ela, entregaram-na a uma família, neste caso aos meus avós, que depois fizeram uma quinta daquilo, mas logicamente quando morreram nada restou disso e, entretanto, a fábrica fechou.
Quando era puto ia lá passar Setembro e Outubro, um pouco antes de a escola começar. Eu sempre vivi em Lisboa e gostava muito de ir para lá, por vezes ia logo a meio de Agosto. Os meus avós tinham animais, eu ia com os meus tios cortar milho, andar em cima de uma carroça; isso para um puto da cidade era fixe, ir ao rio, tinha tudo isso que não havia na cidade. Entretanto a Covilhã mudou bastante, no final dos anos 80 as fábricas começaram todas a fechar, não só na Covilhã, mas também noutros grandes centros de lanifícios. Se não tivesse ido para lá a universidade, a cidade tinha morrido. Aliás, a cidade passou um mau bocado antes de a universidade aparecer, antes de a malta nova ir para lá dinamizá-la e dar-lhe vida. Por exemplo, os meus tios mais novos saíram todos de lá, tenho primos mais novos que também saíram e agora, entretanto, voltaram. A cidade pode agradecer muito à universidade. As cidades sem malta mais nova não têm vida.
O que é que São Tomé tem que o torna tão único e especial para ti?
Foi especial porque eu não sabia que aquilo ainda existia, ou seja, aquela selva, aquela natureza. Muito honestamente, sempre gostei de coisas exóticas e tropicais. Um sonho que tenho na vida é ir às ilhas Fiji, sempre gostei daquele universo do desconhecido que podemos ver no “Mutiny on the Bounty” com o Marlon Brando, um dos meus filmes preferidos. Só que, em relação às ilhas Fiji, um amigo meu já me disse que aquilo é só turismo. As coisas mudam, às vezes para pior, mas para a economia do país provavelmente para melhor. Em relação a São Tomé, foi incrível ver as selvas de coqueiros até ao mar. Apesar de ser um país pobre, tem esse lado de liberdade, meio inexplorado — lógico que já há resorts, mas ainda é selvagem e já não estava à espera de ver isso.
Portugal tem sido um dos pontos turísticos de eleição dos últimos anos. Na tua opinião, o que é que vale mesmo a pena conhecer em Portugal?
Epá, eu acho que tem aquilo que te estava a dizer em relação a São Tomé. Vou-te dar um exemplo: em pleno Agosto, um turista que venha de onde vier pode estar numa praia completamente nu, com meia dúzia de pessoas. Na costa alentejana, há praias com meia dúzia de pessoas; isso de certeza que já não encontras no resto da Europa. Uma coisa que eu sinto neste país é que ainda tens um lado de muita liberdade e o pessoal não liga muito a isso; só liga quando vai lá fora. Ainda há um grau de liberdade que se calhar, para os gajos do norte da Europa, ainda não é civilização. Há muito a ideia de que dos Pirenéus para baixo a malta não gosta de trabalhar, não paga impostos, é desorganizada. Há um certo preconceito, mas eu acho que o Erasmus foi das melhores coisas que aconteceu na Europa, porque veio ajudar a malta do norte a ter amigos no sul e vice-versa, assim como a terem maneiras de ver as coisas diferentes dos pais e dos avós.
Sinceramente eu só viveria no Sul, Portugal, Espanha, Grécia, nunca viveria no norte, antes de mais por causa do clima, em segundo lugar pelas pessoas, nós temos muito esta cena de rua e uma certa liberdade, por exemplo vais a Londres a um clube e tens um local exterior para fumar, mas se não estás exactamente no sitio já não podes fumar aí, há muito a cena das regras que cá não é tão rígido. Mas há coisas cá em Portugal que me lixam, que nunca são resolvidas, eu tenho 54 anos e durante anos deparo-me com situações que me questiono porque é que não fazem nada, com tanta gente inteligente, de esquerda, de direita, não interessa, porque é que não fazem? Pronto, Portugal tem isso, se calhar no norte da Europa já não é assim. Como país pequeno tínhamos se calhar mais obrigação, ou seria mais fácil, sermos mais organizados.
O Camané refere várias vezes que tomaste conta dele na tropa. Como foi fazer a tropa com o Camané?
Eu ia lá sempre salvar o Camané aos balneários (risos). Nós pertencíamos ao quartel da Graça, mas trabalhávamos os dois na direcção de armas e artilharia — o edifício ainda existe, fica ao pé da Feira da Ladra e do Panteão Nacional, mas entretanto já foi abandonado. O Camané no outro dia foi entrevistado e chamou-me para irmos lá visitar o espaço e foi assim uma viagem no tempo. Eu trabalhava no piso de cima a tirar fotocópias, como soldado, e o Camané era escriturário, só que o Camané na altura passava muitas noites nas casas de fado — estamos a falar no final dos anos 80, para aí em ’87. Nós éramos uns tipos que iam dormir a casa, não comíamos lá, portanto tínhamos um soldo — aliás, o meu primeiro amplificador foi comprado com o dinheiro da tropa. Tínhamos que estar lá as 9 da manhã e saíamos creio que às 5 da tarde, era como um emprego. Nessa altura, o Camané cantava nas casas de fado e aquilo era até às quinhentas, muitas vezes saía de lá de directa e ia para a tropa. Antes de entrarmos no edifício, havia os balneários, onde trocávamos de civil para a farda, e muitas vezes andavam à procura do Camané às 10, 11 da manhã e quando eu ia lá aos balneários, lá estava o Camané encostado a dormir. Entretanto ajudava-o a vestir-se, metia-o debaixo do chuveiro para ele ir trabalhar (risos), por isso é que ele sempre disse que eu lhe salvei a vida na tropa. Quando eu os ouvia à procura dele, já sabia que ele estava lá em baixo deitado num banco corrido.
Quando fui com o Camané visitar as instalações, para esse programa de TV que fizeram recentemente, contámos algumas histórias que se passaram lá, embora o edifício já esteja abandonado. Sentimo-nos mesmo cotas; até gostei de ir lá, mas ao mesmo tempo essas viagens no tempo fazem-nos sentir o tempo que passou, parece que és de outro tempo. Se houvesse uma máquina do tempo, não gostaria de voltar aos sítios onde já estive, prefiro ficar com a ideia do que vivi do que realmente voltar lá.
Como funcionou o processo de composição para o filme “Surdina”? Começaste a compor a partir do guião ou de imagens do próprio filme?
Comecei a compor já a partir de imagens do filme, já com uma montagem não-final. Eu normalmente componho sempre com guitarra, mas desta vez pensei em introduzir piano. Para a próxima posso criar novamente, mas acho que vou convidar pessoas para tocar, porque sei lá, aquela melodia tocada por alguém que seja pianista seria muito melhor e faria aquilo crescer mais. Foi um desafio e é uma coisa que gosto de fazer. Eu optei pelo piano, porque o filme trata da velhice e também há uma história de amor numa idade que tu pensas em que isso já não existe, uma história de solidão também.
A velhice é uma grande merda, não há nada de bom. Ser mais velho não significa saber mais coisas. Lembro-me de estar a falar com um gajo, um guitarrista inglês muito mais velho, que deve ter quase 70 anos, que disse “Eu tenho filhos com quase 30 e tal anos que às vezes me falam de coisas das quais eu não faço ideia e eu às vezes falo de coisas que já não se aplicam à realidade deles” e a verdade é que nunca tinha pensado nisso. Isso é verdade, eu vejo pelos meus filhos, a minha filha de 19 anos às vezes fala-me de coisas das quais eu não faço a mínima ideia (risos).
Outra das razões pela qual me lembrei do piano, talvez meio cliché, é porque o piano é um instrumento nobre, mais ligado com alguém mais maduro, associo a alguém mais velho.
Esta banda sonora é bastante melancólica, inspiraste-te nos locais onde o filme foi filmado?
Sim, a minha inspiração foi a velhice e também os locais. Aquilo passa-se em Guimarães, mas também nos arredores da cidade, há ainda muito a coisa do campo, das propriedades, ou seja, há um lado urbano e um lado rural. É uma cidade muito ligada à terra, às aldeias à volta e achei que era fixe ter um lado popular na composição, mais de memória, um lado português.
Ao longo da tua carreira tiveste inúmeras bandas e colaborações. O que é que te motiva a fazer música com outras pessoas?
Bem, eu já toquei com imensa gente. Eu não sou gajo de olhar muito para trás, mas às vezes penso em fazer uma lista, nem que seja só para mim, das pessoas com que já toquei. Eu já toquei com desde, sei lá, o Sei Miguel ao Allen Halloween, ao Zé Pedro… pá, imensa gente de áreas completamente fora, que não têm nada a ver umas com as outras, mas fico muito feliz porque é uma cena eclética e fico naturalmente feliz pelas pessoas me convidarem de áreas com as quais à partida eu não teria nada a ver. O que me leva a aceitar isso foi uma coisa que aprendi bastante com os Dead Combo: um gajo aprende bastante com os outros, é algo que me farto de dizer aos meus putos. Tu, se partilhares um trabalho com alguém, vens de lá sempre mais rico. Pá, até pode correr mal, mas ficas sempre com uma experiência, se calhar algo bom ficou, ou pelo menos sabes que não podes fazer assim. Normalmente venho sempre muito mais rico, porque as pessoas pedem-me coisas que eu nunca iria pensar em fazer.
Vou dar um exemplo, a Adriana Sá uma vez convidou-me para organizar umas coisas ali na Vizinha (um bar na Bica), que eram os “Sabaduos”, onde convidava pessoal mais da linha dela: improviso, electro acústica. E um dia convidou-me a mim porque me conhece há muitos anos e somos da mesma geração, e eu tinha que convidar alguém e acabei por convidá-la a ela (risos). Quando fui ensaiar com ela, cheguei lá com a afinação na guitarra normal, standard, e aquilo era um bocado lixado de encaixar com a afinação do Zither dela, então vi qual era a afinação e apliquei-a na guitarra, ou seja, quando tocávamos estávamos os dois afinados. Conclusão, a partir daí fizemos uma banda mais o marido dela. Eu explorei depois essa afinação em casa e fiz o Guitarra Makaka com essa mesma afinação, ou seja, aprendi uma coisa sem estar a pensar nisso e ainda hoje toco com essa afinação em muitos tempos. Uma vez, os Dead Combo fizeram uma residência numa aldeia perto de Braga e Guimarães e eles pediram-nos para fazer música popular. À conta disso, acabámos por explorar muitas malhas que eu e o Pedro provavelmente nunca iríamos experimentar e alguns desses temas foram parar a discos de Dead Combo. O pessoal fica sempre mais rico trabalhando com outras pessoas, fazem-te até ver coisas do teu próprio trabalho em que nunca tinhas reparado.