Entrevista. Valete: “Sinto que estou na segunda adolescência, quero fazer muita coisa”
Keidje Torres Lima, mais conhecido pelo mundo e os seus ouvidos como Valete, é um artista incontornável no hip hop português. A sua caminhada começou em 2002, quando apresenta uma Educação Visual que nos mostra em palavras a destreza de um jovem cronista dos subúrbios. Segue-se Serviço Público, em 2006, mais musculado mas com a mesma afinidade para a caneta, em que fica claro o tipo de rapper que Valete é: um eterno agente da contra-cultura e do politicamente incorrecto, como disse há quase um ano.
É com isso em mente que a carreira do rapper tem crescido. Em 2019, com grande pujança, apresentou “Colete Amarelo”. O ano seguinte foi especialmente difícil para os artistas e profissionais do espectáculo: 2020 ficou marcado pela pandemia mas também pela morte de George Floyd, um dos acontecimentos que inspirou os cinco temas que lançou no final de 2020, entre os quais se destacam “Rua do Poço dos Negros” ou “Ilha de Honshu”.
Em 2022, Valete chegou aos 20 anos de carreira. O marco foi no ano que passou e a celebração será no ano que está agora a despontar, com dois concertos no Coliseu de Lisboa e do Porto. A festa musical foi o mote para a conversa, mas o diálogo foi além disso. Depois de uma falsa partida, fruto de um fã arrebatado e de um momento para a fotografia e a sentida felicitação, a Comunidade Cultura e Arte sentou-se com Valete para falar sobre os concertos que se avizinham, novos temas, colaborações com ídolos e beats assinados pelo próprio.
Papillon, Xeg, Phoenix Rdc, DJ Ride… porquê estes convidados e não outros?
Número um, podes ter surpresas [risos]. E número dois, não forçar muito. Eu não estou a ver os nomes, estou a ver a setlist. Eu estou a ver que canções é que fazem sentido, a sequência… Eu penso nas músicas antes de pensar nos convidados. E gosto de fazer coisas diferentes. Até te posso dizer que há um tema do Papillon que fica bué bem no meu concerto, leva o concerto para outra direcção. É pensar numa viagem, é tudo em função do concerto. A ideia é fazer uma apresentação bonita, não quero que o meu concerto seja unidimensional. Quero que seja uma apresentação das várias facetas que o hip hop tem. O hip hop gravita pelas artes plásticas, pela dança, pela música, e eu quero fazer essa tentativa em cima do palco.
Por falar na questão das facetas do hip hop, a ideia de teres uma batalha antes dos concertos é nesse sentido da cultura ou é uma espécie de homenagem às tuas origens?
As battles são das coisas mais importantes que eu vou ter nesses eventos, por duas razões: é um momento irrepetível, tu só vais vê-lo ali, e eu quero dar experiências às pessoas que elas só podem ver uma vez. Depois, actualmente é muito difícil para um novo rapper aparecer, há muita música e há poucas plataformas que fazem destaque a novos artistas. E ninguém nasce grande rapper, precisas de 15 anos para seres um grande letrista, é uma construção. Numa geração do Gson, do ProfJam, do Holly Hood, do Papillon, muitos deles vieram das batalhas. E outros já faziam rap há vários anos, numa altura em que a numerologia, as views do Youtube, não eram uma coisa tão castradora.
As batalhas são a tua forma de dar espaço a uma plataforma que tu achas que merece.
Tem de ser porque não há outras. Se os novos rappers não aparecerem ali, dificilmente vão aparecer noutro lado. Quando eu comecei, um rapper com potencial tinha o programa do [José] Mariño, o programa do D-Mars, tinhas revistas de hip hop, lojas de hip hop, tinhas o programa do Rui Unas, iam-te chamar para concertos. Hoje um rapper iniciante não vê nada, e ele precisa de estímulos. E do que eu estou a observar, a única plataforma que permite o aparecimento de novos rappers são estes movimentos de batalhas.
Lançaste músicas há dois anos. Vais estrear alguma coisa?
Eu de há dois anos para cá escrevo todos os dias, três horas por dia. Reflexões, crónicas, novelas… Esse processo de escrever todos os dias tem afectado as minhas músicas de rap. E eu gostava de mostrar um bocado do que eu estou a fazer e – também para dar às pessoas coisas que elas só vão ver ali – curtia no concerto cantar qualquer coisa nova. Nas [músicas] que eu vou lançar, vai-se sentir um melhor casamento da palavra com a musicalidade. Fui-me desleixando, estava desligado, mas 20 anos dão-te muita experiência. E eu tive o Sam [The Kid], professor e dos meus melhores amigos, o Dino [d’Santiago], estive no estúdio com o Slow J, foi meu técnico de som durante dois anos. E aprendi bué e agora tenho mesmo a capacidade de fazer canções. Há um som que vai sair em breve com o primeiro beat produzido por mim.
E gostaste dessa experiência?
Adorei, quero repetir e quero até começar a produzir outros artistas.
Tens alguém com quem gostavas de colaborar?
Para mim, em Portugal, as melhores vozes portuguesas não são as que mais brilham. Eu gostava de fazer isso com algumas das grandes vozes que existem em Portugal e ninguém conhece. Há duas raparigas em específico com quem eu gostava de trabalhar, a Sílvia Barros e a Nayr Faquirá, mais a nível de mentoria, ajudá-las a escolher beats, a opinar sobre as músicas delas… São cantoras na área do R&B, minhas amigas, e quero ajudá-las ao máximo. Os artistas que têm vingado são artistas que têm muito investimento de editoras. Dificilmente uma pessoa que está a fazer demos e a lançar é contratada por uma editora. Aconteceu com o Ivandro, é um super talento mas não é de hoje. O Ivandro faz músicas há dez anos, mas como não tinha os números, ninguém pegava.
Ao longo da tua carreira, tu sentes que muita coisa mudou e não mudou no público?
Eu senti uma mudança brusca no pós-pandemia. Estivemos ali quase dois anos sem tocar e quando voltámos em 2022 já era só o público novo. Os meus temas antigos já não funcionavam. Tirando a “Roleta Russa”, há um ou dois que funcionam sempre [risos]. Mas no Coliseu vais ter uma coisa muito bonita que costuma acontecer nestes concertos, vem pessoal de Leiria, do Alentejo, de Setúbal, vai ter essa variedade geográfica também.
Já conheceste alguém que veio de fora de Portugal para te ver?
Sim, de África.
Já lá estiveste a actuar?
Estive em São Tomé, Angola e Moçambique, e vou a Moçambique em Março. Surgem convites e tenho muito público lá. Angola e Moçambique têm 30 milhões de pessoas, são países gigantes, mas a Internet deles ainda é muito precária. Quando eles tiverem as velocidades de Internet que temos aqui, tudo o que diz respeito a streams em Portugal vai ser afectado. Os artistas portugueses com mais público africano vão ser os artistas com mais números, porque eles são 60 milhões. Eu acredito que daqui a cinco anos já vai ser diferente. Isso vai mudar e isso vai revolucionar o mercado português.
Falaste de algumas coisas que tens reservadas para este ano: novos temas, um concerto em Moçambique… o que é que podemos mais esperar para Valete em 2023?
Eu quero fazer muita música. Sinto que estou numa fase em que sinto que consigo fazer qualquer coisa a nível de rap. Eu comecei a fazer rap por causa do Gabriel O Pensador, foi o meu primeiro grande ídolo, mudou a minha vida. E vou finalmente lançar um tema com o Gabriel O Pensador, está para breve. Acredito até que é o primeiro de muitos, estamos a criar uma química muito fixe. E este tema é muito específico, quero fazer outras coisas diferentes, ele é muito versátil. Sinto que estou na segunda adolescência, quero fazer muita coisa.