Entrevista. Vicente Valentim: “Há uma perceção clara, nas elites políticas, de que em Portugal se pode ter sucesso tendo uma retórica de direita radical”
Vicente Valentim é Cientista Político na Universidade de Oxford. A sua tese de doutoramento foi publicada em livro, “O Fim da Vergonha – Como a Direita Radical se Normalizou” (ed. Gradiva), em Abril deste ano e consiste na ideia de que “o rápido avanço da direita radical é, em grande parte, movido por pessoas que já tinham ideias de direita radical, mas que não mostravam por temer repercussões sociais”.
Ao longo do seu livro, Vicente Valentim descreve as três fases que levam a esta processo de normalização, sendo a primeira a fase de latência, em que há fortes normas sociais contra a ideologia associada à direita radical. A segunda será a fase de ativação em que os políticos apercebem-se de que há em privado mais apoio a ideias de direita radical e mobilizam as pessoas nesse sentido. Por último, a fase da revelação, em que as pessoas que já tinham estas ideias sentem-se mais à vontade para o fazer, havendo também mais políticos dispostos a aderir a partidos com essa ideologia.
Foi numa entrevista por videochamada que falámos com o Cientista Político sobre o seu livro, a forma como a direita radical tem moldado o sistema político-partidário, bem como temas da atualidade mais recente num ano tão marcado por eleições. Tendo sido a primeira parte desta entrevista gravada no dia 11 de julho, não demorou muito tempo até que os acontecimentos mais recentes nos EUA, tendo o ex-Presidente Donald Trump sofrido um ataque a tiro num comício da Pensilvânia, exigissem uma segunda curta parte da entrevista sobre a atualidade mais recente naquela que é talvez a eleição mais decisiva e quente deste ano.
Segundo a tese defendida no teu livro, o avanço da direita radical é em grande parte movido por pessoas que já tinham estas ideias, mas que não as mostravam por temer repercussões sociais. Havendo este conjunto de crenças e valores na sociedade associadas à direita radical, qual foi então a particularidade nesta última década para que houvesse uma transformação tão grande do sistema partidário, com estes partidos a ganharem mais lugares em Parlamentos, e em alguns casos, a fazerem parte de soluções governativas?
O argumento no livro é que, dado que estas ideias já existiam, faltava um político que fosse percecionado como sendo competente, e que fosse capaz de mobilizar os votos das pessoas que já tinham estas ideias. Por isso grande parte daquilo que explica o motivo pelo qual os partidos cresceram nos últimos anos tem a ver com a oferta das elites partidárias, ou seja, até que ponto é que há essa pessoa que é percecionada como competente.
Para que essa pessoa competente se aperceba que pode ter sucesso eleitoral com uma plataforma de direita radical, precisa de haver algum tipo de despoletador que a faça perceber que essas ideias são mais difundidas na sociedade do que antes parecia. Nesse sentido, tem havido alguns acontecimentos que têm causado essa perceção como por exemplo, a crise de refugiados em 2015/2016. Estes são acontecimentos que afetam vários países de forma semelhante, e como tal podem funcionar como esse despoletador nos vários países ao mesmo tempo. Acho que isso explica porque é que vimos nesse momento a direita radical a ter sucesso pela primeira vez em vários países.
Mas também queria por um bocadinho de água na fervura em relação a essa ideia de que há uma vaga de direita radical, no sentido em que, é verdade que há cada vez mais países que têm este tipo de partidos a ter sucesso a entrar para o parlamento, mas não acho que isso esteja a acontecer em todo o lado ao mesmo tempo. Começou a acontecer nos países nórdicos ou em França nos anos 80, e em Portugal aconteceu em 2019. Temos aí um período de quase 40 anos. Tenho alguma dificuldade em ver isso como uma vaga porque se pensarmos que um período de 40 anos é uma vaga, então quase tudo é uma vaga. Acho que não há propriamente um processo de contágio. O que há são acontecimentos como a crise de refugiados, que acabam por afetar vários países da mesma forma, e como tal, podem levar a este desenvolvimento nesses vários países, mas não é que eles se afetem necessariamente uns aos outros.
“Não há nenhum fenómeno social ou político que tenha só uma causa.”
Um dos fatores que também falas no livro, e que também é usado como explicativo do crescimento destes partidos, são os fatores culturais. Neste século, falando mais no caso europeu, houve um conjunto de direitos a nível legislativo, que ou foram aprovados, ou também ganharam espaço na disputa política, como por exemplo a IVG, o direito ao casamento entre casais do mesmo sexo, ou a autodeterminação de género. De que maneira é que estas questões surgiram como motivo de backlash? E havendo também o fator das transformações económicas associadas à globalização, qual o peso que ambos os fatores tiveram para o crescimento da direita radical?
Quero começar por fazer a ressalva de que, apesar de eu defender esta tese no livro, não há nenhum fenómeno social ou político que tenha só uma causa. Pelo facto de o livro se estar a focar nesta explicação baseada em ideias que as pessoas já tinham mas não expressavam, não quer dizer que isso explique toda a dimensão do fenómeno. Explica uma parte, e é compatível com outras explicações também serem verdade.
Na literatura na Ciência Política, há muito esta ideia do backlash em relação a alterações culturais como este tipo de direitos de legislação no sentido de ser mais inclusivo de minorias. Eu acho que isso acaba por definir mais em que temas é que os partidos se focam, do que propriamente o sucesso destes partidos. Se olharmos para a direita radical em toda a Europa, quase a única coisa que ela tem em comum é a oposição às minorias, principalmente a minorias nacionais e étnicas. Tudo o resto, acaba por depender um bocadinho do contexto do país em que estão.
Há partidos de direita radical que são abertamente anti-feministas, mas também há partidos de direita radical que dizem defender os direitos das mulheres. Podemos discutir se o fazem ou não, mas pelo menos na sua perspetiva dizem isso. A mesma coisa em relação a minorias sexuais, por exemplo. É possível que haja um sentimento de reação em relação a estes direitos adquiridos nestas últimas décadas, mas acho que isso acaba por ser mais um after thought depois de esses partidos terem ganho sucesso com base nessas preferências mais próximas da direita radical.
No caso do Chega, ou do Vox em Espanha, ambos os partidos têm componentes deste tipo de retórica, mas quando pensamos naquilo que os fez crescer no momento inicial teve sempre a haver com minorias étnicas. Foi só depois de terem crescido que começaram a adicionar estes outros temas, por isso é que eu acho que acaba por ser mais uma segunda camada, mais do que o cerne do motivo pelo qual eles tiveram sucesso inicialmente.
Muitas vezes a própria retórica feminista, até por exemplo no caso da Georgia Meloni, também é muito usada para dar ênfase a uma lógica de proteção contra os imigrantes…
Há um livro da autora Sara Farris onde ela chama a isso o femonacionalismo, ou seja, a ideia de usar a bandeira do feminismo para ter ideias contra minorias. A ideia de que as nossas sociedades têm vindo a fazer progresso no campo do direito das mulheres, e se abrimos à imigração, vamos perder todo esse progresso. Há uma retórica às vezes parecida no que diz respeito à comunidade LGBT. Isto acontecia muito na Holanda com o Pim Fortuyn que foi o primeiro político de direita radical que teve sucesso que era abertamente homossexual, e cuja retórica era no sentido de que há todos estes direitos que ganhamos na nossa sociedade, e se abrirmos à imigração de repente, vamos perdê-los. Tanto no que diz respeito às minorias sexuais, como ao feminismo, há muito este tipo de retórica, de que todos estes direitos que se têm vindo a adquirir podem estar em causa se abrirmos às minorias.
“Se olharmos para a direita radical em toda a Europa, quase a única coisa que ela tem em comum é a oposição às minorias, principalmente a minorias nacionais e étnicas. Tudo o resto, acaba por depender um bocadinho do contexto do país em que estão.”
Quando se dá a fase da revelação e há uma maior abertura para ter este tipo de discursos, e sendo a questão da imigração tão forte nestes partidos, de que forma é que as próprias perceções sobre esta questão acabam por aumentar gerando um ciclo vicioso?
Um dos argumentos no livro é precisamente o de que esse processo é mais ou menos irreversível. Não é possível fazer engenharia inversa e voltar para trás. Se quisermos combater a direita radical tem que ser através doutros processos, porque o processo de normalização vem muito desta noção de que se passou de uma situação em que estas ideias estavam bastante difundidas na sociedade em que o eleitorado e os políticos não sabiam, para uma situação em que tanto o eleitorado como os políticos têm a noção de que estas ideias são bastante difundidas na sociedade.
Agora que as pessoas e os políticos já sabem, é difícil voltar para uma situação em que escolhem não saber. É por isso que acho que é difícil voltar para trás, e que esta última fase do processo se autorreforça. E se pensarmos em alguém que é agora adolescente e está a interessar-se pela política pela primeira vez, o facto de estar a ser socializado politicamente num contexto em que estas ideias são tão faladas abertamente, pode também acabar por afetar as suas preferências políticas e torná-las mais próximas da direita radical, por isso, claramente isto é um equilíbrio que se autorreforça.
No caso português, em 2019, o partido Chega elegeu pela primeira vez um deputado à Assembleia da República. Nas eleições legislativas de 2022 aumentou o seu grupo parlamentar para 12 deputados, e após as eleições deste ano conta com 50 deputados. Julgas que este partido tem mais margem de crescimento?
A direita radical pode crescer por motivos diferentes. Muitas das vezes, pelo menos no início, cresce muito por este processo de normalização, e esse processo por si só, naturalmente tem um teto. Diria que tendo em conta a expressão eleitoral do Chega, esse momento já chegou. Isso não significa que o partido não possa crescer mais através de outras estratégias, que parecem-me ser principalmente duas. Uma é que o partido pode-se moderar, chegar um pouco mais para o centro e alcançar um eleitorado que é menos radical. O outro processo através do qual o partido pode crescer no longo prazo, é não só angariar os votos das pessoas que já tinham estas ideias, mas conseguir progressivamente ir mudando as ideias de outras pessoas, e torná-las mais próximas da direita radical.
Mesmo que já tenha esgotado este eleitorado que já tinha estas ideias mas não as expressava, continua a haver outras maneiras de o partido crescer. São um bocadinho mais lentas e têm um bocadinho mais de riscos, principalmente a questão da moderação, porque abre o espaço para que apareça um partido mais extremista que ganhe os votos extremistas. Mas até isso acontecer, são estratégias que o partido pode usar, e parece-me que, pelo menos nas últimas eleições, o Chega tentou chegar-se um bocadinho mais para o centro. Houve muito menos incidência na questão da comunidade Roma, por exemplo, foi muito mais na questão dos subsídios. Acho que houve alguma tentativa de fazerem a imagem do partido ser um bocadinho menos extremista com esse objetivo talvez de chegar a um eleitorado um bocadinho mais moderado.
“Neste momento, há uma perceção clara, nas elites políticas, de que em Portugal se pode ter sucesso tendo uma retórica de direita radical.”
Nas últimas eleições europeias colocou-se a ideia do resultado do Chega ter sido baixo por terem um candidato fraco, ou pelo facto do candidato da Iniciativa Liberal ser forte, contendo o seu eleitorado. Quais julgam ter sido os fatores que levaram a este resultado?
Acho que teve muito a ver com o candidato, e é preciso ter em conta que foi a primeira vez que o Chega concorreu com um candidato que não fosse André Ventura. Aliado a isso, e talvez também como consequência, a questão da abstenção. Agora já há dados para saber que o Chega cresceu muito nas legislativas por angariar votos de pessoas que antes se abstinham, e nas europeias tendencialmente a abstenção é mais alta, por isso é possível que algumas das pessoas que votaram no Chega nas legislativas não tenham ido votar nas Europeias. Acho que é um bocadinho prematuro dizer que o facto de o Chega ter tido um mau resultado significa que o Chega não está aqui para ficar, porque é preciso ter em conta estes dois fatores, e é também preciso não olhar para a árvore desde a floresta. O facto de o partido ter um resultado ligeiramente pior numas eleições, não quer dizer que depois não possa recuperar nas eleições seguintes.
Acho que o importante a salientar é que o Chega está aqui para ficar. Claro que pode ter um resultado um bocadinho pior numas eleições, mas isso não significa que o partido vá decrescer da mesma maneira que cresceu, e mesmo que isso aconteça, vai haver abrindo as portas a que outro partido apareça com a mesma ideologia, porque neste momento há uma perceção clara, nas elites políticas, de que em Portugal se pode ter sucesso tendo uma retórica de direita radical. Se o partido que agora tem essa retórica deixar de ter sucesso, o mais provável é que apareça outro partido que acabe por apelar ao mesmo eleitorado.
Há quem como a ex-candidata à Presidência da República Ana Gomes defenda que partidos como estes devam ser ilegalizados. No entanto, quais seriam as consequências desta ação, até nesse sentido de haver a possibilidade de outros atores políticos conseguirem ganhar esse espaço eleitoral?
Há duas questões relativamente a essa pergunta. Uma é uma questão mais normativa que tem a ver com: é legítimo uma democracia proibir um partido ou não. Depois temos outra questão mais empírica e consequencialista que é: se uma democracia fizer isso, funciona ou não? Dum ponto de vista normativo, enquanto cidadão estou perfeitamente em paz com a ideia de uma democracia proibir um partido cujas ideias atentam contra a segurança de minorias e contra ideais de inclusão. Ao mesmo tempo também sou bastante consequencialista. Acho que só se devem ter essas medidas se elas efetivamente funcionarem, e é aí que eu tenho algumas dúvidas. Temos algum trabalho num contexto diferente e com um partido diferente, mas que sugere que quando se proíbem partidos, não se acaba por mudar as ideias das pessoas que votavam nesses partidos, simplesmente elas ficam sem partido em que possam votar. Mas se aparecer um partido que as representa, acabam por votar nesse outro partido.
Por isso, embora acho que sejam perfeitamente legítimas num contexto democrático, tenho algum receio que esses tipos de políticas acabem por não funcionar e talvez até criar mais backlash, principalmente num momento em que o partido já cresceu tanto e está tão implantado na sociedade portuguesa.
Talvez fosse uma questão diferente ter agido quando o partido ainda era pequeno, e não tinha um eleitorado tão grande. Mas num momento em que o partido já tem os canais de comunicação, os membros, a representação no parlamento, acho que estar a proibi-lo ia só deitar gasolina para o fogo, no sentido de potenciar ainda mais esta retórica de que as elites estão contra nós.
Uma outra coisa que referes, que acontece depois na fase da revelação, é que há uma reação do sistema partidário a esses partidos, havendo por vezes uma apropriação das suas ideias numa lógica de esvaziamento eleitoral da direita radical. Quais são as consequências do uso destas retóricas nos partidos tradicionais?
Há um estudo que não é meu, mas de um colega meu aqui de Oxford, que mostra isso. A partir do momento em que a direita radical tem sucesso os outros partidos tendem a mover-se mais para perto destas ideias de direita radical. Esse colega também tem outro estudo que mostra que apesar de isto tender a acontecer, a verdade é que não funciona.
Quando o centro-direita se move mais para perto da direita radical, não só não ganha mais votos, como aumenta ainda um bocadinho mais o voto na direita radical. Numa perspetiva de normalização, nós temos um estudo que não está no livro, em que o que mostramos é que quando o centro-direita diz o tipo de retórica que é comum da direita radical aumentam ainda mais a perceção de que questões como a xenofobia, são legítimas, do que quando é a direita radical a fazer as mesmas declarações.
Numa perspetiva puramente instrumental não funciona para o centro-direita ganhar votos à direita radical, e numa perspetiva de qualidade da democracia, acaba por ter consequências bastante negativas no sentido em que acaba por criar a perceção de que estas ideias são mais aceitáveis porque de repente há um ator que não está associado à direita radical que é percecionado como mais legítimo.
Na Alemanha, por exemplo, e neste caso falamos de um partido de centro-esquerda, o chanceler Olaf Scholz tem vindo a adotar uma retórica cada vez mais restritiva relativamente às políticas de migração ao longo do seu mandato. Esta estratégia contribuiu também para o resultado eleitoral nas europeias, em que o SPD ficou atrás do partido de direita radical AFD?
Quando eu dizia que este estudo mostra que os outros partidos tendem a mover-se na direção da direita radical, não é só o centro-direita, é também o centro-esquerda. Nós vemos também aqui no Reino Unido onde na campanha das eleições da semana passada, o partido Trabalhista também tinha uma retórica anti-imigração. É difícil dizer se isso contribuiu para aquele caso concreto, ou seja, o que nós podemos fazer na Ciência Política é traçar padrões, mas é difícil saber num caso concreto, se as coisas tivessem sido diferentes, se o resultado teria sido diferente. Mas o que o trabalho deste meu colega sugere é que de modo geral essa estratégia não funciona, por isso é plausível pensar que uma das causas do mau resultado desse partido nas eleições europeias tenha sido a aproximação, mas poderá naturalmente ter havido outras causas.
“Normalmente, na Ciência Política, diz-se que a política é bidimensional, no sentido em que há uma dimensão económica de esquerda e direita, e há uma dimensão cultural que tem a haver com o conservadorismo ou liberalismo.”
No caso das eleições no Reino Unido, assistimos a uma grande derrota do partido Conservador que ficou a quase 300 lugares dos conquistados pelo Partido Trabalhista. Tendo havido uma apropriação de todo o sistema partidário relativamente às políticas de migração com o partido Conservador sobre a liderança de Rishi Sunak com políticas severamente restritivas à imigração aproximando-se da direita radical, e o Partido Trabalhista adotando também uma retórica mais restrita, ainda que não como o Partido Conservador, este teve bastante sucesso eleitoral. Isto não demonstra que esta estratégia pode afinal funcionar?
Acho plausível pensar que essa estratégia funciona de forma diferente para os partidos de esquerda, de como funciona para os partidos de direita. Normalmente, na Ciência Política, diz-se que a política é bidimensional, no sentido em que há uma dimensão económica de esquerda e direita, e há uma dimensão cultural que tem a haver com o conservadorismo ou liberalismo, e já há muito tempo que há um conjunto de estudos que têm vindo a mostrar que, se pensarmos nisto como bidimensional há quatro quadrantes, e há um que é o quadrante à esquerda económica mas conservador culturalmente, onde há uma porção significativa do eleitorado, e tipicamente não há partidos nesse quadrante. Já há muito tempo que se diz que é uma questão de tempo até que os partidos de esquerda possam ganhar votos movendo-se para esse quadrante. Por isso, acho plausível pensar que os partidos de esquerda têm mais eleitorado a ganhar com políticas mais restritivas à imigração porque se movem para esse quadrante onde há eleitorado, mas ainda não há partidos.
Há também muitas coisas que acontecem em simultâneo e estamos a tentar analisar o que aconteceu numa eleição, mas há muitas outras coisas que estão a acontecer ao mesmo tempo, e uma coisa que não podemos deixar de ter em conta é que o sistema eleitoral no Reino Unido faz com que basicamente só haja dois partidos viáveis em que se possa votar. O que isso fez foi que o eleitorado que estava muito desiludido com o Partido Conservador, por um conjunto de questões, e como alternativa, votasse no Labour. Isso acaba por acontecer independentemente de qual é a posição no que diz respeito à imigração. Outra questão que também gostava de salientar que é, em termos do número de votos concretamente, o Labour teve qualquer coisa como 33% da votação, ou seja, não é uma vitória assim tão landslide como isso, a questão é que depois o sistema eleitoral acaba por fazer com que eles tenham uma maioria gigantesca no que toca a deputados, mas no que toca a votos propriamente isso não foi assim tão expressivo como se fosse a pensar. É também verdade que o Labour se tornou mais conservador na questão da imigração, mas, ainda assim é claro que o Labour era muito menos restritivo no que diz respeito à imigração. Por isso, se nós pensarmos em alguém que é pró-imigração, e que está desiludido com o Partido Conservador, por muito que esta pessoa seja pró-imigração, se calhar acaba por ter um incentivo para votar no Labour porque é a alternativa viável, é um bocadinho mais pró-imigração, e votar em partidos mais pró-imigração talvez não acabe por ser um voto falhado. Mas gostava de salientar aquilo que disse no início: que é possível que funcione de forma diferente para os partidos de esquerda e para os partidos de direita, por isso, é possível que tenha sido um dos esses outros fatores que estava agora a falar.
No fim-de-semana passado deu-se a segunda volta das eleições francesas após um sucesso eleitoral do partido de Marine Le Pen nas europeias e uma vitória na primeira volta. A Nova Frente Popular acabou por ficar em primeiro lugar, e a direita radical em terceiro. Ainda assim há três blocos com assentos parlamentares bastante semelhantes, e se olharmos em retrospetiva, o bloco da direita passou de seis lugares em 2017, para 88 em 2022 e 143 no último fim-de-semana. Consideras que estas eleições foram um sucesso para o partido de Le Pen, ou por outro lado também há de alguma forma uma demonstração que os anticorpos a esta força política dificilmente permitirão que esta ganhe mais terreno?
Acho que as duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo, e acho que se calhar tem faltado um bocadinho essa nuance na forma como essas eleições têm sido lidas. Quando discutimos se isto foi um bom resultado ou não, depende sempre do termo de comparação.
Tendo em conta que havia a possibilidade da direita radical ter ganho estas eleições, se o termo de comparação for a perspetiva de que iam ganhá-las, isto foi um mau resultado porque não ganharam e ficaram em terceiro. Em contrapartida se pensarmos que o termo de comparação é a evolução dos votos e dos mandatos deste conjunto de partidos, a verdade é que claramente, eles sobem bastante. Claro que eu acho que o facto de não terem ganho estas eleições teve muito a ver com a campanha de mobilização desses anticorpos. A grande questão que fica em aberto para o futuro é até que ponto essa estratégia é sustentável no longo prazo. Porque quando a direita radical começa a crescer, isso viu-se em França, mas vê-se também por exemplo na campanha presidencial nos Estados Unidos, há cada vez mais uma tendência para os outros partidos dizerem: votem em nós, não votem neles porque isto é uma eleição existencial para a democracia. Há muitas pessoas que são democratas convictas e acabam por votar movidas por esse medo. Acho que isso aconteceu em França agora, mas não sei até que ponto é que se consegue ganhar eleições atrás de eleições com base nesta retórica. Chega a um momento em que é preciso mobilizar as pessoas de uma forma mais positiva, propondo algo em vez de por oposição a qualquer coisa.
No longo prazo, ou até no médio prazo, numas próximas eleições em França a grande questão é essa, até que ponto é que se consegue transformar este voto mais negativo de rejeição da direita radical em qualquer coisa positiva de votar num determinado partido porque se acredita na visão que esse partido tem para a sociedade. Isso é uma coisa que só vamos saber nas próximas eleições, mas eu pessoalmente estou um bocadinho cético de que seja impossível parar a direita radical em França para sempre, mas obviamente enquanto cidadão estou contente que isso tenha acontecido agora.
Na mesma medida em que houve um processo de normalização da direita radical associada a um conjunto de normas sociais que antes não eram aceites, que outro espaço pode não estar a ser aproveitado no sistema político-partidário, cujas ideias não têm ainda empreendedores políticos a catapultá-las e mobilizar eleitorado?
Acho que isso está a acontecer noutro campo político. Estava numa conferência a semana passada, e havia uns autores que estavam a apresentar um artigo muito interessante, que mostra que a maior parte do eleitorado das democracias ocidentais é a favor da imigração. O que acontece é que para as pessoas que são a favor da imigração, esse não é o tema com que se importam mais, enquanto que para as pessoas que são contra, esse normalmente é o tema com que se preocupam mais. Isso faz com que os partidos de direita radical, por exemplo, possam pegar neste tema para mobilizar e ter sucesso, enquanto que é mais difícil para os partidos que são pró-imigração. Mas eu acho que isto é um sinal de que há muito espaço para mobilizar o eleitorado com base numa plataforma que seja inclusiva, a favor da imigração. O que é preciso é mostrar às pessoas que este é um tema importante, e fazer com que elas votem com base neles, porque o apoio a estas ideias existe, é só uma questão de não ser o tema com que as pessoas se importam mais.
Uma das figuras mais relevantes no crescimento deste fenómeno foi Donald Trump, eleito em 2016 como Presidente dos EUA. Tendo havido uma derrota eleitoral do mesmo em 2020, deu-se também uma normalização das suas ideias na sociedade norte-americana, sendo que a sua reeleição pode vir a acontecer em novembro deste ano. A seguir da fase da revelação, havendo uma polarização já instalada, e com a possibilidade de uma nova fase de avanço neste projeto político, quais são as expectativas sobre o que pode vir a seguir tanto no caso específico dos EUA, mas em termos de como é que o sistema político-partidário pode transformar-se com a sua potencial reeleição?
Em termos gerais uma das coisas que segue essa fase da revelação, é como dizias, uma maior polarização da sociedade. Há alguns estudos recentes da Ciência Política que mostram que ao mesmo tempo que se dá essa normalização, no sentido em que pessoas que já tinham ideias de direita radical se sentem mais à vontade em expressá-las, também tende a ver algum movimento à esquerda no sentido de tentar garantir que essas normas se mantêm, e as duas coisas ao mesmo tempo o que levam é a uma polarização maior na sociedade. Há alguns estudos recentes que demonstram que quando a direita radical tem sucesso, enquanto há esta normalização, no sentido de pessoas que já tinham ideias de direita radical se sentirem mais à vontade em expressá-las, há também à esquerda um movimento no sentido contrário, no sentido de tentar garantir que estas normas se mantêm no mesmo lugar, e os dois movimentos ao mesmo tempo dão esta polarização.
Acho que isto é muito visível em muitas democracias europeias, em que a direita radical tem vindo a ter sucesso, mas é principalmente visível no caso norte-americano. Outro desenvolvimento que pode começar a acontecer agora que a direita radical tem cada vez mais sucesso em cada vez mais países, é uma maior possibilidade de haver colaboração internacional por parte de países em que a direita radical está no governo. Parece-me que aquilo que vimos acontecer no Parlamento Europeu na campanha para estas eleições em que claramente havia uma campanha para a direita radical parecer menos tóxica, protagonizada principalmente por Georgia Meloni, a primeira-ministra italiana, parece sugerir que a forma como a direita radical encara o projeto europeu está a mudar no sentido em que havia uma altura em que a direita radical era pequena e como tal a sua posição em relação à integração europeia era de se opor a essa integração.
Agora talvez a direita radical comece a ter sucesso suficiente para tentar ter uma abordagem diferente e tentar começar a mudar as coisas por dentro. Acho que isso pode começar a acontecer mais no seio de outras organizações internacionais. A partir do momento em que mais países têm líderes de direita radical, e acho que, se principalmente Donald Trump for eleito em Novembro, como parece ser muito provável, pelo menos com base nas sondagens neste momento, isso dará ainda mais força a este tipo de coligações internacionais de países que têm primeiros-ministros ou presidentes de direita radical.
No sábado passado, o ex-Presidente Donald Trump foi atingido num ataque a tiro num comício na Pensilvânia. Quais as consequências que este acontecimento pode ter no desenrolar das eleições nos EUA?
Acho que é plausível assumir que isto vai ajudar a campanha de Donald Trump. Grande parte da retórica de Donald Trump, e dos partidos de direita radical de um modo geral, parte da premissa de que estes partidos são outsiders, toda a gente está contra eles, o sistema, os media. Uma tentativa de assassinato obviamente torna muito mais fácil esse tipo de retórica. Mas para além disso, também ajuda a outra faceta da retórica destes partidos que é a ideia deles como salvadores da pátria. Há qualquer coisa, pelo menos nas últimas declarações que Donald Trump deu, em que ele fala muito de ter sido um milagre, que nunca se tinha visto nada assim e dá a ideia dele como o escolhido e de uma coisa um bocado mítica, que de forma mais implícita ou mais explícita estes partidos muitas vezes têm, da direita radical como representante do povo, e que vai fazer com que a voz do povo seja ouvida novamente. Efetivamente parece um golpe de sorte inacreditável que dá mais fogo a essa retórica, por isso é possível que se a campanha o souber utilizar bem, que acaba por lhe dar mais força, mas ainda falta muito tempo, há muita coisa que pode acontecer, principalmente do lado democrata que ainda é muito pouco claro até que ponto é que Joe Biden se vai manter como candidato, se não se mantiver, quem é que vai ser o substituto e em que condições é que vai ser feita essa substituição. Há muita água que ainda vai correr até às eleições.
“A partir do momento em que há uma nova geração que é socializada num contexto em que estas ideias estão completamente normalizadas, é mais provável que essa própria geração se aproxime dessas ideias.”
Estão também em cima da mesa durante as eleições, quatro crimes de Donald Trump, incluindo a responsabilidade do mesmo por perturbar o normal funcionamento das eleições de 2020 para derrubar Joe Biden, bem como a sua responsabilidade perante o ataque ao capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, no qual o ex Presidente referiu erradamente no debate com Joe Biden como ter envolvido apenas um pequeno grupo de pessoas. Estamos também a assistir a um processo de normalização da violência e da ilegalidade como meios de disputa política dentro de democracias?
É possível ver isso como o resultado de uma certa situação social que foi ela própria potenciada por Donald Trump. É óbvio que a retórica de Donald Trump é muito agressiva, ofensiva, muitas vezes raia os incentivos à violência, por isso é natural que isto cria um ambiente na sociedade que pode ser mais propenso a este tipo de ações. Se para além disso tivermos em conta a questão de ser um país muito polarizado, tudo isso parece mais provável. Dito isto, é preciso também ter em conta que há algumas características dos Estados Unidos que fazem com que isto não seja tão extraordinário. Já no passado houve outras tentativas de assassínio de Presidentes no país, houve algumas que foram bem-sucedidas, e de modo geral é um país que tem muitas armas, há muitas incidências de violência e, tanto quanto sabemos, este ataque na verdade foi elaborado por uma pessoa que estava inscrita como Republicano, por isso não sei o quão isso terá sido potenciado por polarização ou por ódio a Donald Trump, ou meramente uma tentativa de ter um momento na ribalta. Não sabemos ainda nada disto porque não sabemos quais foram os motivos do crime, só saberemos nos próximos dias ou semanas, se viermos a saber. É verdade que a retórica de Donald Trump normaliza muito a violência, a ilegalidade, mas, por outro lado, os Estados Unidos são um país onde esse tipo de coisas já acontecia bastante, mesmo antes de Donald Trump ter ganho as eleições em 2016.
Julgas que há uma quarta fase que poderíamos elencar a seguir, para além da própria polarização que também referiste? Que alterações podem acontecer a longo prazo no sistema político-partidário?
É plausível falar de uma quarta fase depois daquilo que eu descrevo no livro, e acho que essa quarta fase é muito caracterizada pelo movimento no resto do sistema partidário. Apesar de haver esta polarização que nós falávamos há pouco, acho que pelo menos na parte do centro-direita, e em muitos casos também no centro-esquerda, há um movimento para a direita, principalmente em tema de imigração e minorias. Algum tempo depois da direita radical começar a ter sucesso, o que vamos provavelmente começar a ver é aquilo que vimos em países como a Dinamarca, aquilo que agora vemos no Reino Unido, que é um movimento do sistema partidário todo na direção de posições mais contra a imigração. E acho que isso pode ter consequências muito diretas e práticas no desenho das nossas democracias, por exemplo, no que diz respeito a ser muito mais restrito em relação à imigração. Basta pensar que no Reino Unido o Partido Conservador esteve no governo nos últimos 14 anos, mas com esta última liderança pelo menos, a implementar políticas que eram políticas típicas de direita radical, não só no conteúdo de ser ostensivamente contra a imigração de uma forma quase sádica, mas também a própria forma, o tipo de retórica. Era impossível diferenciar as políticas desse partido das que seriam as políticas de um partido de direita radical, e o próprio partido trabalhista que é um partido de centro-esquerda, nestas últimas eleições também se opôs bastante à imigração, e isso é algo que se via bastante na Alemanha.
Uma das principais características de uma eventual quarta fase é este movimento todo do sistema partidário, de forma que posição mediana passe ela própria a ser contra a imigração. Acho que outra característica de uma eventual quarta fase é um crescimento ainda maior da direita radical. Comecei a escrever este livro numa altura em que o bom senso era de que estes partidos tendiam a crescer muito depressa, e ia tornar-se uma parte indiscutível do sistema partidário, e depois tendiam a estabilizar à volta de 10, 15, 20 % dos votos, dependendo um bocadinho de país para país. À medida que fui escrevendo o livro pareceu-me que no momento posterior, que já não estou a analisar no livro, estes partidos acabam por conseguir quebrar um bocadinho esse número em que pareciam estar mais ou menos estagnados, e acabam por ganhar eleições. Pense-se por exemplo no caso da Holanda, em que a direita radical já existe há muito tempo, já é parte do sistema partidário há muito tempo, e de repente consegue ter ainda mais votos e ganhar eleições. Há cada vez mais países em que isto parece acontecer, o caso de França é outro, em que a direita radical já existe há muito tempo, ainda não ganhou eleições este ano, mas está muito perto de o fazer.
Para esse último salto, há algumas coisas concretamente que contribuem para isso. Uma é a moderação da direita radical, a outra era de que a partir do momento em que há uma nova geração que é socializada num contexto em que estas ideias estão completamente normalizadas, é mais provável que essa própria geração se aproxime dessas ideias, mas outra também é a maior capacidade destes partidos chegarem a eleitorados tipicamente que não votavam neles, e um dos casos é o voto feminino. Tipicamente, estes partidos eram partidos de homens, e cada vez mais, essa divisão de género no voto da direita radical começa a ficar cada vez mais pequena ou até a desaparecer, e por isso contribuiu muito a própria estratégia dos partidos de ter mulheres candidatas por exemplo, como em França, na Itália, e isso permite de repente chegar a um eleitorado que antes votava muito menos nesses partidos, e ganhar aquele último empurrão para de repente os tornar partidos que podem não só influenciar o sistema partidário mas efetivamente ganhar eleições e governar.