Especial Motelx 2021

por David Bernardino,    19 Setembro, 2021
Especial Motelx 2021
Motelx / DR
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The Feast: Este foi o grande vencedor do prémio de melhor longa de terror europeia. Uma proposta do denominado novo género de eco-terror, The Feast dá a conhecer a uma família economicamente favorecida na sua casa de campo uma cozinheira ajudante para servir um jantar com convidados. Algures entre a lição moral ecológica e o subgénero de terror de possessão por forças do mal, é certo que o realizador Lee Haven Jones sabe o que pretende fazer, apresentando um filme slow burn, talvez por vezes demasiado lento e vazio, para entregar um terceiro acto que se pretendia arrebatador mas que acaba por ficar aquém das expectativas, principalmente a nível narrativo. The Feast tem várias ideias que pretende explorar, desde a desigualdade social à emergência climática, que acabam por ser apenas sugestionadas em 90 minutos de tentativa de equilibrismo mensagem vs terror. Nenhuma das vertentes do filme acaba por sair beneficiada. Ainda assim a sua componente técnica consegue absorver essas falhas, tornando The Feast um objecto fílmico interessante.

Um Fio de Baba Escarlate: É bom ver que Portugal começa a acordar para o cinema de género com novos cineastas interessados a explorar essa linguagem. Depois de Gonçalo Almeida em 2019, com Faz-me Companhia, é Carlos Conceição que apresenta Um Fio de Baba Escarlate, uma bela sátira que coloca um serial killer nas bocas do Mundo pela positiva após ter aparecido num video viral. Sem diálogo, talvez por motivos de internacionalização, mas que acaba por resultar num filme semi-mudo com uma linguagem cinematográfica algo nostálgica, Conceição leva-nos numa viagem com visuais normalmente associados ao giallo italiano. Com uma fotografia e um sentido estético e de ritmo que impressionam, Um Fio de Baba Escarlate eleva-se dentro do género, consciente da limitação da sua narrativa, o que o levou a optar por suprimir técnicas narrativas de forma a obter uns redondos 60 minutos de filme. Apesar de personagens estereotipadas, a estética do filme consegue colocá-las num plano misto de fantasia e realidade, o que lhes assenta que nem uma luva. Um Fio de Baba Escarlate só fica manchado pelo seu último terço, no qual parece que o seu realizador perdeu a sobriedade e segurança que tinha demonstrado até então a favor de preencher uma lista de elementos associados ao género de terror de forma algo imatura.

Coming Home in the Dark: Não há grande coisa a dizer sobre esta produção neozelandesa, um thriller de vingança algo comum acerca de um fim de semana de família na natureza que corre mal quando dão de caras com dois homens mal intencionados. Ainda assim decide arriscar uma ou outra ideia mais ousada, nomeadamente a da cumplicidade perante a inacção face a actos de violência, ou omissão de auxílio. Não há dúvida que Coming Home in the Dark é eficaz na forma como manipula o suspense no espectador, e o seu protagonista vilão é carismático o suficiente para nos manter interessados, no entanto não é um filme que irá deixar memória.

Run: Um dos filmes mais aguardados desta edição do Motelx é também um dos que menos arrisca em ideias e execução, e que mais se assemelha à linguagem de um certo tipo de thriller mais comercializável, como Don’t Breathe, Ma, 10 Cloverfield Lane ou mesmo Split. Sarah Paulson é uma mãe possessiva e controladora que domina a vida da sua filha de 17 anos afligida por diversas doenças incapacitantes, até que algo corre mal. A filha, Kiera Allen, é uma actriz a ter em atenção para o futuro. Paulson, como sempre, está brilhante, uma espécie de Jack Nicholson no feminino, entre o doce e o psicótico, entre a segurança e o medo. Run é um thriller de horror sobre relações tóxicas bem executado, tal como já fora Searching do realizador Aneesh Chaganty, e eficaz, mas que acaba por cair nas armadilhas do género, desde os recortes de jornal escondidos que revelam a temível verdade, a plot holes infantis e imperdoáveis. Run entretém, mas podia ter feito muito, muito mais.

Three: Um thriller de serial killer vindo do Cazaquistão, com escola e linguagem cinematográfica dos thrillers modernos Sul Coreanos, bem executado por Pak Ruslan. Three traz-nos uma adaptação da história verídica de um assassino em série canibal que foi notícia no Cazaquistão em 1979, em pleno regime da União Soviética. A sua localização no tempo acaba por ser o mais interessante de Three, com uma construção de cenários e linguagem social que transportam o espectador para esta realidade cazaque de há 40 anos atrás. Dotado de interpretações fortes, desde o seu protagonista, um estagiário na força de investigação criminal, passando pelo chefe autoritário mas de moral inquestionável, terminando no seu aterrador vilão, o que acaba por faltar a Three é desenvolvimento de personagem e suspense. O filme que começa de forma intrigante e cheia de promessas, acaba por não cumprir, deixando-se arrastar de mini clímax em mini clímax, em duas velocidades.

Cross the Line: Apelidado de um dos melhores thrillers espanhóis dos últimos anos, Cross the Line coloca o típico trabalhador de colarinho branco certinho e cumpridor perante uma série de decisões que terá que tomar à medida que uma noite aparentemente normal se transforma num pesadelo após conhecer uma bela jovem tatuadora num bar. Cross the Line é um daqueles filmes que se coloca a si próprio nos píncaros do que “deve ser um thriller interessante”, pintando a tela de neons e cores aguerridas que tanto estão na moda num certo cinema comercial mais rebelde que nos trouxe filmes como Nerve, Mandy ou Drive. É verdade que a interpretação de Mario Casas é boa, mas não basta isso e uma camera a seguir o protagonista com long shots para fazer um bom filme. Cross the Line simplesmente não é assim tão interessante.

In the Earth: Foi provavelmente o ponto mais alto desta edição do Motelx. Ben Wheatley, realizador de filmes como Kill List ou a Field in England, traz-nos este eco-terror recheado de ideias onde um cientista e uma guia florestal se aventuram até um acampamento de uma outra cientista numa floresta densa, enquanto o Mundo se depara com uma pandemia. In the Earth é um híbrido que mistura o terror slasher, com folk, humor negro e ficção científica com um equilíbrio impressionante, procurando fugir sempre dos rótulos de género, sendo quase sempre bem sucedido. Com interpretações que vão desde o low key à total expansividade, e com alguma dose de humor negro, Ben Wheatley coloca o realismo dos seus protagonistas na irrealidade do seu cenário ironicamente naturalista, numa viagem visualmente alucinogénica que poderá causar ataques de epilepsia ou dores de cabeça a alguns espectadores. In the Earth joga de forma hábil com as ansiedades do Mundo contemporâneo: o isolamento, o contacto com os outros, o desconhecido, a ausência de tecnologia, o medo de algo que nos irá eliminar a todos. Uma trip herética original que irá satisfazer parte dos espectadores, mas cuja audácia visual suscitará sem dúvida o afastamento de outros. 

The Sadness: Orgulhosamente apresentado como o filme mais violento desta edição do Motelx, The Sadness é um filme taiwanês, realizado pelo canadiano Rob Jabbaz. Um take original no subgénero zombie, The Sadness é um filme transgressor, provocatório e híper violento, preterindo zombies que cambaleiam sem consciência a favor de infectados que correm e falam e cujo único propósito é praticar o que de pior existe na mente humana, desde canibalismo a violações. É um filme altamente provocatório que só irá satisfazer um tipo específico de público, e que se balanceia entre o gratuito e a sátira social. The Sadness acaba por ser um pau de dois bicos: se por um lado é violência gratuita e provocatória, por outro está bem patente uma certa sátira social sobre valores morais, e tudo isso acaba por ter eficácia no filme. Fica apenas um amargo de boca perante um argumento que podia e devia ter sido superior, com personagens unidimensionais que saltam de situação em situação, priveligiando o splash sanguíneo em detrimento de qualquer tipo de drama. Ainda assim não há dúvidas que The Sadness é um bom filme, original, que sabe o que quer e que entrega sem espinhas.

Gaia: Mais uma proposta de eco-terror, desta feita acerca de uma ranger florestal que acaba acolhida por um pai e um filho que vivem isolados da sociedade em veneração ao planeta Terra. Monique Rockman é protagonista, aventureira, femme fatale e matriarca, tudo ao mesmo tempo, num thriller de horror cheio de ideias que nem sempre passam para a tela. Entre criaturas desinspiradas (ou antes plagiadas do videojogo The Last of Us) a desenvolvimentos de personagem pouco naturais, o mais interessante de Gaia acaba por ser o seu cenário e os seus practical effects, dignos de instalação artística. A técnica de Jaco Bower por vezes é amadora, com truques de continuidade narrativa repetitivos tais como o pesadelo que afinal não passava de um sonho, ou plot holes redondos tais como a imunidade perante a infecção presente em Gaia. É sem dúvida e um bom esforço e a prova como o eco-terror veio para ficar, mas as suas mensagens de consciencialização ficam pela rama e acabam por se tornar meros arquétipos sem impacto.

Knocking: Um dos filmes em competição para melhor longa de terror europeia, Knocking é um eficaz filme de terror psicológico acerca do trauma e do preconceito perante a doença psiquiátrica. Molly é uma mulher que tem alta de uma clínica psiquiátrica após um evento traumático e decide recomeçar a sua vida num apartamento arrendado onde noite após noite ouve batidas no tecto. Frida Kempff, a realizadora sueca, move-se habilmente entre a estética narrativa mais rígida inicialmente, terminando numa estética delirante e claustrofóbica que consegue com sucesso acompanhar as emoções do espectador. Cecilia Milocco está óptima como protagonista. As influências de Bergman e as suas análises psíquicas são inegáveis, com referências directas a Persona (talvez Em Busca da Verdade fosse mais apropriado), resultando num filme de baixo orçamento com uma boa execução e uma melhor mensagem. A forma como Kempff termina o seu filme é questionável, acabando por talvez forçar essa tal mensagem anti preconceito desnecessariamente. Apesar de todas as suas qualidades, Knocking acaba por infelizmente ser um filme pouco original, limitando-se a seguir o caderno de encargos do subgénero, arriscando pouco ou nada. Acaba por ficar um sentimento de incompletude.

Willy’s Wonderland: Nicolas Cage mais uma vez presente no Motelx, desta vez em sessão da meia noite, num filme trash série Z delicioso e consciente de si próprio. Cage é um homem que viaja sem destino até que se vê forçado a enfrentar um grupo de bonecos robots de peluche que ganham vida de forma sanguinária num parque de diversões infantil abandonado. Com uma estética do trash dos anos 70/80, um argumento ridículo e uma presença digna de Cage cheia de one liners físicos (Nicolas Cage não tem qualquer fala durante todo o filme) e adolescentes rebeldes, estão presentes todos os ingredientes necessários para um belíssimo filme de entretenimento nocturno. Ainda assim Willy’s Wonderland limita-se a ficar à superfície do seu conceito ridículo, e faria muito melhor se tivesse soltado as amarras que ainda prendiam algum do seu amor próprio, abraçando o trash a 100%. É divertido, mas podia ter sido ainda mais. Willy’s Wonderland parece um filme retirado de um episódio de uma má série televisiva, mas a mera presença do seu protagonista, que foi de um dos melhores actores da sua geração (ainda o é mas enfim) até se tornar num meme, é suficiente para encher as medidas de quem quer apenas passar um bom momento com um filme. Não é afinal para isso que os filmes também servem?

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