Esse homem já morreu
“Esse homem já morreu”, bradou senhora do terceiro andar, assim fulminando de tristeza o transeunte que lhe perguntara se fulano ainda morava naquele prédio. No meu regresso (temporário) a Lisboa, algo que ouço muito dizer é que certa pessoa já morreu. O mundo antigo está a extinguir-se: a barbearia onde me esfregavam álcool etílico nas bochechas e no pescoço é agora um apartamento moderno onde pernoitam turistas, a vizinha que passeava a cadela “Princesa” deixou de ser vista e o engraxador munido de chapéu da seleção nacional de futebol, que vendia livros de poesia por cinquenta cêntimos e um euro, é recordação do início do século, relíquia de museu que somente existe dentro daqueles que lembram as fábulas que ele contava acerca de políticos que o convidavam para cargos diplomáticos em Zanzibar. Os lisboetas estão a morrer, e os que não estão a morrer sabem que a morte paira como abutres aguardando pelo último suspiro do animal ferido. E os que ignoram a morte mudaram de país, praticam engenharias em França, dedicam-se nesciamente a amealhar numerário para um dia voltarem a sítios onde não encontrarão ninguém.
Na churrasqueira da Graça, onde comia o melhor frango assado, perguntei pelo antigo dono do estabelecimento e a resposta que obtive foi que o senhor David havia morrido, levando consigo a receita daquele molho divinal que despertava sensações esotéricas no freguês. A partir de certa altura, o viajante tantas vezes é confrontado com a resposta “essa pessoa já faleceu” que deixa de perguntar, assume ao confrontar-se com pastelaria transformada em bar de cocktails com nomes em inglês que a antiga gerência partiu desta para melhor. “Que é feito do doutor Serafim?”, pergunto, assolado por tolice genética. “Então não sabes que faleceu vai para quatro anos?”, dizem-me, no mesmo tom do professor zangado com o estudante que olvidou a lição da véspera. Descubro que o doutor Serafim, mestre de filosofias e conhecido por quem com ele bebia cerveja em Alfama, morreu de repente, talvez do coração, e que depois lhe morreu o genro, e que no ano passado zarpou o primo, e que hoje resta o cortiço em que vivia, sem herdeiros, à espera que o Estado lhe pegue.
Sentado em esplanada, deslizando o dedo indicador pela quarta chávena de café do dia, conta-me Armando, profissional do choro avulso, que “isto” (Portugal) está cada vez pior para os portugueses, que António Costa e o Partido Socialista “cantam bem, mas é sempre o mesmo folclore”, com o Zé Povinho quase a ter que roubar para encher o depósito de gasolina. Roga-me, antes de pedir o quinto café ao garçom, que nunca regresse, que “isto” é o degredo, que razão tinham Herculano, Sena, e todos os outros que falavam da tragédia que é estar umbilicalmente ligado a “isto.” Não lhe dou crédito, visto saber que, após criticar o país, o meu interlocutor criticará a sogra, a esposa, e até o filho que está para nascer daqui a uns meses. Porém, quando ele me diz que nem sabe porque fala “disto e daquilo” porque “nada vale a pena e um dia, mais cedo do que achamos, morreremos todos”, intuo que o incessante azedume lhe advém da crença na inutilidade da vida ou, por outras palavras, da certeza de que a sucessão de charlas e queixumes que compõem a sua existência é uma distração da morte, da sua e dos outros.
No restaurante do David, que para mim será sempre do David, mesmo que se tenham passado vinte anos da sua morte, levo uma perna de frango à boca, esforço-me por convencer quem me acompanha que estamos perante repasto digno de imperador. Mas minto sabendo que a carne que mastigo tem o sabor das outras, não guarda vestígios do molho do mestre dos grelhados. Minto por, ao contrário do niilista Armando, precisar de uma missão para seguir a jornada, de sentidos para as cabeçadas na parede e desilusões, para aceitar que, apesar de nada se passar como imaginava, de nada ser como nas fantasias com perpétuas felicidades, a realidade é a melhor que poderia ser. Ignoro se as pessoas do meu antigo quotidiano lisboeta faleceram para reencarnar noutro corpo, se viraram terra, se flutuam invisíveis pela cidade. Mas sei que, enquanto me lembrar, todos continuarão vivos e Lisboa será lugar onde “esse homem já morreu.”