Esta crónica dá fome
Anthony Bourdain disse certa vez sobre Portugal qualquer coisa como: “aquele país onde se almoça durante quatro horas, passadas as quais sempre alguém pergunta: e para o jantar, o que vai ser?”
Fica o aviso — esta crónica poderá provocar-vos um sentimento descrito na literatura clássica como: larica, ráfia, galga ou fomeca. Se preferirem, “apetite” — caso sejam daquele tipo de gente que usa talheres.
Não tenho a pretensão de afirmar que a cozinha portuguesa é a melhor do universo (sei lá o que se come em Kepler-186f) mas é sem dúvida a mais rica que eu conheço. Por isso costumo dizer que os pratos nacionais de outros países são notas de rodapé das ementas lusas.
O bruto Haggis, originário das Terras Altas escocesas, não é mais do que um aperitivo para a malta da Beira Baixa. Os finórios escargots gauleses escorregam, por cá, com uma imperial fresca numa qualquer esplanada, num fim de tarde, enquanto se decide onde se vai a seguir encher o bandulho. Por falar em lanches, as tapas, tão queridas dos nossos vizinhos ibéricos, não são mais do que pedaços de fome com pão que serviam aos bêbados (nada contra), tal era a miséria; se nuestros hermanos acham que umas entradinhas podem ser um prato nacional, joder… E até o famosíssimo Fish and Chips teve que ser inventado por um português, fritando uma posta de peixe para matar a malvada àqueles desgraçados ingleses. Lá está, uma alínea no menu do Manjar do Marquês, em Pombal, passe a salivante publicidade.
Há um par de anos, perguntei a um grupo de turistas italianas o que achavam da comida portuguesa. “Ah e tal, o peixe é molto buono e sim senhor…”, disseram-me enquanto mexiam as mãos com gestos que indicavam poder estar perante gente com boa capacidade para vindimar. Ó mulheres, respondi, vocês estão bem a ver o potencial de comida maravilhosa que têm à vossa disposição? É que isto aqui não vai só de pão espalmado com tomate e queijo… Ainda no outro dia comi um pato assado com um arroz de miúdos que dava para dois pratos diferentes no vosso país. “Então o que é que aconselhas?”. Até me engasguei. Como é que eu lhes explicava, em inglês, o que era um cabrito estonado? Ou uma açorda de sável? E que “açorda” no sul é diferente do que é no norte? Como descreveria eu todo o inventário de um cozido à portuguesa? Ainda ensaiei dar-lhes algumas dicas: “for example, peas with escalfated eggs“, mas elas olhavam para mim com fome, de certezinha, e sem perceber la punta di un corno. Ofereci-lhes um conselho do Miguel Esteves Cardoso: perguntar ao empregado de mesa qual seria a sua escolha. Não falha.
Outra vez, aconselhei um restaurante a um casal de alemães. Já augava quando lhes perguntei se tinham gostado, imaginando-os ainda a lamberem as teutónicas beiças à conta de um costoletão de carne maturada dos Açores que lá costumam servir com uma porçãozeca de legumes salteados. Responderam-me num sms que cito: “pedimos uma salsicha… meh”. “Meh”? “MEH”? Não consegui conter-me, que fiquei logo com maus fígados: “Isso é como pedir sardinha assada na Alemanha, pá!”. Enfim, países ricos, comida pobre — valha-nos o Alentejo, pela razão inversa.
A magnitude da cozinha portuguesa fala por si: chegou ao Japão (o Tempura é talvez o exemplo mais conhecido, mas há outros como o Konpeito — o nome vem de confeito — ou o Castella ou Castilla, um tipo de pão de ló), passou pela Índia (Vindaloo vem de “Vinha de Alho” — perdoem a aliteração, parece que estou a comer pevides), e obviamente alcançou África, o Brasil e todo e qualquer local onde os famintos descendentes de Viriato pararam para fazer uma buchinha. Até a laranja é chamada “Portugal” ou “Portuguesa”, numa série de países do mundo. Sim, também comemos frutinha.
Não é menos interessante, com certeza, decompor as influências de outras paragens na comida nacional, mas não me façam estar a ler a wikipedia agora, que tenho que ir jantar entretanto.
Os portugueses tratam a comida como os brasileiros os jogadores de futebol: com carinho. Atentem nos diminutivos utilizados em qualquer tasca: sai um bifinho!, vai um franguinho?, hoje há peixinho. Arrozinho malandrinho com o pastelinho? Uma saladinha a acompanhar. Hoje tem que ir um docinho… No final vem o cafézinho com cheirinho e faz-se o sinal para a continha. Fica completa a refeiçãozinha que dava para uma casa de família.
E o número de festivais gastronómicos que existem neste país? Temos alguma terra que não seja a capital de qualquer coisa que se trinque? Que interessa ter o poder central, se podemos ser a capital do Chícharo? Ou do Maranho?
Quase todas as semanas descubro no telejornal um prato típico deste país, que desconhecia por completo. E olhem que estou atento à temática.
Estou até desconfiado que a pressão exercida pela população de Lisboa para que o governo invista numa terceira travessia rodoviária sobre o Tejo tem menos que ver com a fluidez do trânsito automóvel do que com a do intestinal, porquanto muitos deles nem automóvel têm: querem a ponte para ver se pinga mais uma feijoada.
Esta relação de um povo com a comida não é um exclusivo nosso, bem o sei. Há países onde isso é visível até numa simples saudação: na Tailândia, por exemplo, “já comeste arroz hoje?” é uma espécie de “bom dia”. Aqui não temos isso, até porque arroz é mero acompanhamento. Seria como perguntar se o dia estava a ser mais ou menos. Em alternativa, distribuímos bacalhaus (estava a ver que não falava nele, o peixe que cozinhamos de mil formas diferentes, aquele a quem decidimos apelidar de “fiel amigo” — e agora deixo esta expressão repousar…com um fiozinho de azeite).
Para confirmar a dimensão da gastronomia do país de Zé do Pipo, proponho um jogo que fiz há uns anos, com dois amigos quando regressávamos a casa de uma longa viagem de automóvel desde Barcelona. A páginas tantas, para combater o sono, começámos a nomear, à vez, pratos típicos nacionais. Ao início o jogo era rápido: saíam “iscas com elas” ao ritmo de uma “punheta de bacalhau”. Depois foi ficando mais compassado. De vez em quando lá vinha um “ensopado” de borrego ou de enguias. Certo é que o jogo durou umas boas 5 horas. Semanas depois, ainda enviávamos uns aos outros mensagens com nomes de pratos que não nos havíamos lembrado. De notar que não incluímos no jogo a doçaria, porque não queríamos ir parar a Marrocos.
Embora haja quem não goste da forma, “comer” é, neste país, utilizado como nome e como verbo: “o que é o ‘comer’?”. A utilização nominal do verbo indica ação, que se antevê prolongada. Antecedido do verbo ser, que lhe dá permanência, demonstra de forma eloquente que a comida não é para ser tratada aqui como um objeto. “O comer” é uma necessidade básica, sim senhor, mas também um prazer. Pelo menos, neste jardim à beira mar esfomeado.
Regresso a Bourdain — o contentamento geral pela validação da nossa comida por um estrangeiro é tão português como o pastel de nata. Num dos seus programas ouvi-o lamber as seguintes palavras: “em Portugal até a má comida é boa” — degustava uma singela bifana numa roulotte. Aposto que se este homem vivesse no nosso país ainda hoje estava entre nós. Perdoem-me este parágrafo: não se brinca com coisas sérias. Mais respeitinho por aquele suculento pedaço de carne de porco, do qual escorre um fiozinho de gordura que pinga do molho de vinha d’alhos no papo-seco torrado, delineado com a mostarda que transborda da carcaça… (engulo em seco).
Nem por acaso, acabo de receber uma mensagem de um dos meus amigos com quem fiz aquela viagem. Diz apenas: “Rancho à moda de Viseu”. Nenhum de nós se lembrara desta. E parece-me o folclore ideal para começar a jantar. Vamos a isso que a escrita não enche barriga e o único escritor que me matou a fome foi o Bulhão Pato.