Estágio para a morte
Quando era criança, só os velhos morriam. Era uma coisa natural, eram velhos. Às vezes era até uma coisa bondosa: depois de anos a sofrerem avcs até perderem o mais básico controlo dos seus corpos ou carcomidos pelo cancro, o acontecimento da morte acabava por ser o momento pelo qual uma luta inglória e injusta encontrava finalmente o seu fim. Embora ninguém o dissesse abertamente, sob pena de censura social, era um alívio para quem ficava.
A morte, quando eu era criança, ainda estava em processo de mudança para os lares de terceira idade e era-nos mais próxima. Aparecia nos velhos com a boca ao lado, vítimas das tromboses que agora inspiram outro cuidado hospitalar e um desfecho bastante menos incapacitante. Aparecia nas estradas secundárias portuguesas, repletas de carros em terceira mão (antes do dinheiro da Europa) e de condutores incapazes de recusar o quinto digestivo e agarrados à ideia de que o cinto de segurança era uma mariquice passageira. A morte, apesar de não vir por mim, andava muito mais na rua.
Neste jogo em que participamos simplesmente por assistir à passagem do tempo vemos a morte acercar-se todos os dias cada vez mais. Toda a gente conhece as regras: à medida que o tempo decorre, as hipóteses diminuem. Não dá para protelar nem desistir. Desistir é, aliás, entregar o jogo e antecipar o desfecho.
Mas a morte está muito diferente. A massificação dos lares de terceira idade transformou a experiência da morte para a família dos velhos e moribundos. Há quarenta anos não havia tantos lares; as famílias eram ainda mais remediadas do que agora. Na maior parte dos casos, os velhos eram cuidados em casa até chegar a sua hora. Não subjazia a este hábito nenhum princípio humanitário: apenas não havia dinheiro para ser de outro modo.
A omnipresença dos lares e a imperiosa necessidade do trabalho feminino (eram as mulheres e as crianças sob supervisão das mulheres que cuidavam do acamado) acabaram por introduzir uma espécie de estágio para a morte. Já é muito raro os velhos passarem os últimos anos das suas vidas em casa ou na casa dos seus filhos, cuidados por estes. E, provavelmente – não tenho números, apenas a evidência anedótica de estar atento ao que me rodeia – cada vez mais cedo. A morte vai acontecendo cada vez mais longe: na cama do lar, no leito do hospital.
Teoricamente, não tenho nada contra o conceito dos lares. Até sei – todos sabemos, pelas migalhas de notícias cândidas que intervalam os desastres em série que são os o grosso dos telejornais – de histórias enternecedoras de velhos que foram para lares e que se apaixonaram e tiveram direito a uma última e inesperada volta no carrossel antes de serem expulsos da feira.
A especificidade desta pandemia global – cuja mortalidade é directamente proporcional à idade de quem vai infectando – revelou sem margem para grandes dúvidas aquilo que todos sabíamos sem o querermos admitir: que a maior parte dos lares, dos mais baratos aos mais caros, são verdadeiros entrepostos de corpos frágeis e mal cuidados alternando períodos semi-comatosos resultantes da sobremedicação com intervalos de rara lucidez desesperada. Não há nada de bondoso no lar, nada que o redima. Os velhos são postos lá para morrer e tudo corre contra eles.
Os filhos lá vão cuidando das suas vidas, uns visitam os pais nos lares, outros só lhes ligam de duas em duas semanas, outro nem isso. Até um dia chegar a notícia da morte. E porque os filhos são pais e os pais têm filhos e o tempo passa, de espectadores mais ou menos interessados acabamos por passar todos a utentes.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.